sexta-feira, 23 de abril de 2010

A Náusea

(originalmente publicado em)
Itabuna, sábado, 11 de fevereiro de 2006

"Será isso a liberdade? Por baixo de mim os jardins descem languidamente em direção à cidade e em cada jardim se ergue uma casa. Vejo o mar pesado, imóvel, vejo Bouville. O dia está bonito.
Sou livre: já não me resta nenhuma razão para viver, todas as que tentei cederam e já não posso imaginar outras. Ainda sou bastante jovem, ainda tenho força bastante para recomeçar. Mas recomeçar o quê? Só agora compreendo o quanto, no auge de meus terrores, de minhas náuseas, tinha contado com Anny para me salvar. Meu passado está morto. O Sr. De Rollebon está morto, Anny só retornou para me tirar toda esperança. Estou sozinho nessa rua branca guarnecida de jardins. Sozinho e livre. Mas essa liberdade se assemelha um pouco à morte.
Hoje minha vida chega ao fim. Amanhã terei deixado essa cidade que se estende a meus pés, onde vivi durante tanto tempo. Ela passará a ser apenas um nome, atarracado, burguês, bem francês, um, nome em minha memória, menos rico que os de Florença ou de Bagdá. Chegará uma época em que me perguntarei: "Mas afinal, quando estava em Bouville, o que era mesmo que fazia durante o dia?" E desse sol, dessa tarde, não restará nada, nem mesmo uma lembrança.
Toda a minha vida está atrás de mim. Vejo-a inteiramente, vejo sua forma e seus movimentos lentos que me trouxeram até aqui. Há pouco a dizer sobre ela: é uma partida perdida, eis tudo. Faz três anos que entrei solenemente em Bouville. Tinha perdido o primeiro jogo. Quis jogar novamente o segundo e também perdi: perdi a partida. Concomitantemente aprendi que se perde sempre. Só os Salafrários pensam que ganham. Agora vou fazer como Anny, vou sobreviver a mim mesmo. Comer, dormir. Dormir, comer. Existir lentamente, suavemente, como essas árvores, como uma poça d'água, como o banco vermelho do bonde."

(Jean Paul Sartre - fragmento de "A Náusea")

Nenhum comentário:

Postar um comentário