terça-feira, 12 de março de 2013

Reminiscências

Era o típico garoto desajustado. Com poucos amigos, de poucas palavras, tinha um universo girando em ritmo alucinante dentro de si, tão rápido que nunca conseguia pará-lo. Em seu mundinho solitário sentia-se deslocado. Tudo de si sobrava em si próprio. Sentia-se incômodo para si mesmo. Não sabia onde pôr as mãos, como caminhar sem parecer flutuar – até hoje não aprendeu –, nunca acertava o tom da própria voz: tinha receio de suavizar sua fala e parecer excessivamente delicado, de um modo como não se enxergava; tinha insegurança de torná-la grave e revelar sua farsa, tornando-se ridículo. Seu maior receio era que soubessem quem era.

E assim, desaprendendo a sentir o mundo que o cercava, trancou-se em sua própria prisão. Cumpriu sua pena resignadamente sem sequer ter certeza se praticara de fato algum crime. A única vez que tentara tinha sido infrutífera. Mas, jamais conseguiria tirar das mãos a culpa pelo ato não finalizado. Todo cumprimento de pena se lhe afigurava ínfimo e mesmo quando teve oportunidade de se ver livre, não soube de imediato o que fazer do vasto mundo que se apresentava sob seus pés.

Daquele passado então não bastante remoto, lembrava-se de um par de amigos. Gente que admirava em silêncio, pelo simples fato de viverem, de respirarem sem culpa. Admirava-se de que em seus pares existisse vida. E agora, via diante de si a oportunidade de começar sua própria vida. Não sabia direito o que fazer com ela. Tudo lhe soava novo e isso o assustava. As pessoas certas agora estavam todas ali e o desajustado, que já não era mais tão garoto, foi se encaixando lentamente em algum nicho onde se sentia inteiro... Onde sentia a si mesmo e ao qual poderia talvez pertencer.

Quando o garoto cruzou a fronteira que separava o menino do homem, o homem chorou. Chorava por saber que o garoto jamais voltaria e que a vida jamais lhe traria de volta a chance de ser outra vez menino. Tinha agora que olhar para frente. Via-se um homem – e agora já sabia como modular sua voz, que o tempo revelou ser grave. Ainda assim, sentia-se um farsante. Tudo em si lhe sobrava. Não soube o que fazer de si quando garoto, como aprenderia o que fazer de si como adulto? Em criança, achava que o mundo dos adultos seria desgastante. Em adulto, adquirira a certeza.

Mas, nada mais lhe restava a fazer, senão crescer. O que tinha de mais importante se perdeu. E o que mais lhe doía era perceber que só sabia que o que se fora faria falta por já ter perdido. Comera da maçã e não conseguiria voltar atrás. Mas, tivera sorte de encontrar, ao longo do caminho, outros desajustados. Aquela gente estranha, tão estranha, tão perturbada, tão retorcida, tão desviada que era tudo o que mais parecia consigo.

Finalmente estava livre. Não havia mais um garoto desajustado. Havia um mundo em completo desajuste que não se coadunava com o garoto, que sempre estivera certo e havia se tornado um homem, este sim, indefectível.

Novas leis norteavam seus passos, mas como não podia deixar de ser, teria que dar adeus. E deixar para trás – o que quer que fosse – soava injusto. Não tinha muito. Não juntara. Não colecionara. Tudo o que tinha eram lembranças de um atormentado vazio que, por mais que se esforçasse, jamais conseguiria preencher. O passado ficou para trás e aquele espaço deixado vago pelo dia de ontem não poderia ser coberto pelo de hoje. E o de amanhã lhe causava temor. Aprendera a detestar surpresas. Aprendera a odiar o desconhecido.

Lentamente, porém, o que lhe era familiar passava a ser desinteressante. Paredes que outrora lhe davam segurança, agora lhe pareciam claustrofóbicas. Queria sair da zona de conforto. Sempre que pode, acende uma vela àquele garoto desajustado. Faz uma prece e pede para que descanse em paz. Seu tempo acabou e a idéia de que seu espectro desorientado ronde seu mundo não o agrada.

Hoje ele já sabe onde colocar as mãos. E nada lhe sobra de si. Tudo é falta. Não a falta árida da escassez, mas a falta doce, a ausência do que pode vir a ser. A perspectiva. Deseja que cada dia seja diferente e vislumbra com certa paz um porvir. Em verdade, aguarda-o, com a certeza de que todo o tempo que lhe resta no mundo não será o bastante. Porque tem dentro de si todo um universo em movimento. E espera que não pare enquanto respirar.