domingo, 6 de janeiro de 2019

O dia em que explusei um bolsominion da minha cama


(Originalmente publicado no meu Facebook em 07.07.2018)

Numa noite qualquer de verão, estava com quase tudo arranjado para momentos incríveis de sexo, carinhos e - quem sabe? - algo que pudesse vir a se desenvolver para um relacionamento.

Mas, num dado momento, falando sobre política, o rapaz me disse que iria votar naquele fascista, cujo nome prefiro não mencionar para não lhe dar moral. Fiquei um pouco chocado. Fui tomado de surpresa, afinal, era alguém com quem eu vinha mantendo contato há alguns meses, a quem já tinha, inclusive, levado para a cama.

Minha primeira reação foi rosnar involuntariamente: "Porra! Você é viado! É candomblecista e portador de HIV, como votar num cara desses? Ele é homofóbico, condena minorias e fala que vai cortar investimento público no tratamento e prevenção do HIV, porque diz que AIDS – ele chama de AIDS! – é doença de viado!" E só depois foi que eu decidi perguntar o porquê desse disparate. Sempre sou inclinado à orientação antes do descarte. Conversamos um pouco sobre política e, ao final do papo, ouvi, num tom que me pareceu honesto um "não tinha parado para pensar sob esta ótica, talvez você tenha razão".

Ufa! Aquela alma tinha salvação! Voltamos à programação habitual. Uns pegas daqui, uns pegas dali, não para, não para agora, puxa cabelo, morde pescoço, me dá sua língua aqui, ah! Naquele estado entre cansaço e relaxamento, cada um olha o próprio celular, fala algumas trivialidades e, não lembro como a Pabllo Vittar foi parar naquela cama.

- Você não acha ridículo esse sucesso todo para uma travesti?
- Oi?! - o tom de voz já tinha saído com vontade própria, sem muito controle da minha parte, e soou como de alguém cuja paciência nunca foi uma marca registrada - Ridículo por quê?! Travesti, transexual, Drag Queen, não podem fazer sucesso? Não, não acho ridículo! Não gosto da sua música, mas acho extremamente importante que sua imagem seja mostrada de forma positiva, o máximo possível, como vem sendo. - e descambei a metralhar meu discurso sobre a importância da representatividade da diversidade nas mídias, no quanto isso me fez falta durante uma adolescência conturbada numa cidadezinha medieval do interior da Bahia nos anos 90 e no quão importante é para pessoas se sentirem representadas e, com isso, evitando os elevados índices de suicídios entre jovens LGBT.

Ali, eu já tinha certeza de que meu crush tinha acabado. Só estava me perguntando então como faria para dizer que não ia rolar mais nada. Eu estava num conflito interno entre a vontade de pedir que ele fosse embora, depois que eu mesmo o convidara (e insistira para que ele viesse) e no quanto seria rude da minha parte fazer isto. Provavelmente permitiria que ele dormisse ali e, no dia seguinte, conversaríamos sobre isso e eu lhe diria que, por questões de princípios inconciliáveis, não conseguiria mais ter qualquer envolvimento com ele.

Mas, já estava um climão instaurado no ar, quase 2h da madrugada, um silêncio constrangedor no quarto. Polêmica sobre o cabelo da modelo negra Yasmim, racismo e preconceito no programa da Fátima Bernardes pipocando em todas as mídias, ele tenta puxar papo:

- Olha isso! Vai dizer que um cabelo desse é bonito?! Esse povo negro é engraçado! Vitimista, tudo agora é racismo!

Estourei. Paciência acabou. Na minha cabeça tinha ficado claro que eu não precisava ser um gentleman com alguém que estava disposto a destruir ideais igualitários de um mundo melhor, alguém que estava pronto para votar num candidato que chancelaria a violência contra mim, contra meus amigos, contra si próprio.

- Cara, olha só, não vai mais rolar nada comigo e com você. Nem hoje, nem amanhã. Não vai. Pode se vestir e ir embora? Eu chamo seu Uber.

Ao sair, depois de ser expulso da minha casa, disse que eu era intolerante:

- Vocês de esquerda são um bando de hipócritas. Falam tanto em igualdade, mas não toleram uma opinião diferente da de vocês. Eu convivo com gente de direita e de esquerda, mas vocês não. Só por causa de uma divergência de opinião!

Saiu. Bloqueou-me de todas as redes sociais. Nunca mais vi. Nunca mais tive notícias. No fundo eu estava orgulhoso para caralho por ter tido pulso firme e ter decidido não ser um cavalheiro com alguém que pauta a existência na segregação.

***

Numa noite qualquer de inverno, durante um papo descontraído com um outro pretendente.

- Não sei o que você viu em mim, mas seja lá o que for, gosto que tenha visto.
- Além de tudo o mais, a sua visão política foi um fator determinante para manter meu interesse. Acho até confortável estar com alguém com interesses e gostos parecidos, mas não é essencial. Respeitadas as liberdades individuais e o espaço de cada um, acho tranquilo lidar com alguém gostar de pop e eu gostar de jazz, alguém gostar de viver em casa e eu gostar de pedalar e fazer trilha. Mas, ao contrário, acho essencial estar com alguém alinhado pelos mesmos ideais. Eu namoraria alguém baladeiro, que detesta praia e odeia contato com a natureza, mesmo sendo o oposto disso. Mas, não namoraria alguém que achasse legal o homem ser explorado pelo homem.

***

Percebo como é fácil para pessoas que têm uma visão conservadora de mundo dizerem que nós, "de esquerda", somos intolerantes quando queremos nos manter distantes deles.

Sem adentrar a seara daqueles que têm má-fé mesmo e acham correto espancar homossexual, negro e mulher,  vejo, em sua grande maioria - e digo aqui apenas com base em conhecimento empírico fundado numa observação do mundo à minha volta, não se podendo levar em conta como dados estatísticos confiáveis - que são pessoas pouco inteligentes e não enxergam a política como uma alavanca capaz de mudar o mundo.

Para estas pessoas, política é um universo paralelo, que não alcança os meros mortais. Então, não faz diferença em quem votam, já que em sua mente limitada, seu voto no candidato homofóbico não vai agredir seu vizinho bicha, porque a violência está na rua e não no Congresso. Para estas pessoas, você não é o mesmo negro de quem aquele candidato defende que se pode falar mal e fazer piada, você é brother, pô. "Eu sou seu amigo, negão, então não sou racista!"

Esse tipo de gente não entende o significado de democracia representativa e que, ao dar ao candidato seu voto, está lhe conferindo um poder parar agir em seu nome,  fazendo aquilo que não tem condições de fazer sozinho. Estas pessoas não parecem levar em conta que estão legitimando o candidato para lhes representar. Se não acham correto bater em criança, e mesmo assim dão poder a alguém que defende que crianças devem apanhar, estas pessoas não têm coerência. São, talvez, as que tenham salvação. Ignorantes, pouco inteligentes, nada engajadas. Se forem bem orientadas, talvez possam abrir os próprios horizontes e se tornarem mais conscientes.

Outro tipo, que não exclui o anterior, é o de quem não tem uma visão sistêmica, de que o discurso de um candidato pode ser uma influência ao cidadão comum. O candidato que diz que a mulher merece ser estuprada se estiver usando decote está chancelando a prática do mero mortal para cometer esse tipo de violência.

Cortei relação com um parente depois que me mandou uma montagem na qual homens sorridentes ao redor de uma mesa de sinuca seguram armas em vez de tacos, na qual se lia "Eu e meus amigos quando meu candidato for eleito". Naquela ocasião, antes de bloqueá-lo e limá-lo do meu convívio, enviei a foto de um rapaz gay brutalmente assassinado, espancado a pauladas até a morte. E escrevi na última mensagem que lhe enviei: "Eu e meus amigos quando seu candidato for eleito. Quando acontecer comigo, lembra da escolha que você fez e não venha dizer que me ama".

Entendo porque parece tão fácil para essas pessoas conservadoras conviverem com gente que tem uma "opinião diferente" e porque elas não compreendem como anseio por igualdade e por liberdade o nosso afastamento.

Porque em seu mundo, a opinião diferente de uma minoria continuará sendo apenas uma opinião diferente de uma minoria, que, por ser minoria, jamais será uma ameaça aos seus privilégios. O mundo ideal do conservador é aquele em que sua posição de destaque permanece inalterada. Então, ok vc ser negro, ok vc ser viado, ok vc ser mulher. Você continuará sendo discriminado, continuará sendo explorado, continuará sendo submissa ao patriarcado e nada disso afetará a condição de homem, heterossexual, branco, de classe média alta. Ao passar a manteiga no pão que tem em sua mesa pela manhã, não irá mesmo se lembrar que em lugar do planeta, uma legião estará passando fome. Então, sim, "convive" com todos numa boa!

No meu mundo não cabe esse tipo de gente. No meu mundo eu quero derrubar os privilégios e dar oportunidades iguais a todas as pessoas. Todas as pessoas que não se utilizarão dessa oportunidade para crescer sobre as outras e viver privilégios que as outras não têm.

Então, você que é descartado deste meu mundo, não ache que estou sendo intolerante. É fácil demais para você, cujo mundo ideal é um mundo de intolerância, achar que as minorias devem querer conviver contigo, já que você mesmo não enxerga a falha no seu sistema e não se interessa em dar um boot para reiniciar de outra forma.

Amizades desfeitas e a Democracia representativa II

Nesta semana um idiota voltou a me provocar no WhatsApp, mandando-me uma imagem na qual se viam alguns rapazes sorridentes ao redor de uma mesa de sinuca. Na tosca montagem, os tacos do jogo haviam sido substituídos por espingardas e fuzis, e sua legenda dizia "EU E MEUS AMIGOS QUANDO BOLSONARO FOR ELEITO EM 2018".

Antes de bloqueá-lo, depois dessa sua terceira provocação, devolvi a mensagem. Enviei-lhe a foto de um rapaz morto de forma violenta, com dentes quebrados, hematomas no rosto inchado e sangramento na boca e no nariz e fiz questão de legendá-la com a mensagem "EU E MEUS AMIGOS SE BOLSONARO FOR ELEITO EM 2018 POR GENTE COMO VOCÊ E SEUS AMIGOS".

Tempos atrás, tive uma ligeira indisposição com um amigo querido porque eu disse que alinhamento político diverso ao meu era um fator limitante para determinar meu interesse ou não por uma pessoa, ao que fui interpelado com o argumento de que opiniões divergentes são fundamentais para o crescimento e que não se deve perder a chance de descobrir pessoas interessantes por causa de política, já que os candidatos "estão lá" e "nossa vida segue por aqui", como se nossa existência fosse indiferente às políticas do nosso país.

Incomodo-me demais com esta visão de que política é uma coisa alheia à nossa vida, como se fosse um universo paralelo incapaz de nos afetar.

É claro que opiniões divergentes geram debates e enriquecem as ideias. Concordo em absoluto com esta premissa, o que não significa que eu deva ser aberto a toda e qualquer opinião. Especialmente se a manifestação dessa opinião for contrária a valores que trago como essenciais.

Disse-lhe que eu jamais conseguiria me envolver afetivamente com alguém que votasse num candidato como o Bolsonaro e fui tachado de radical por este posicionamento. "Uma pessoa pode ter outras qualidades". Sim, pode! Mas, conferir um voto a um candidato totalmente desalinhado com os valores que tomo como diretrizes para a minha própria existência faz dessa pessoa alguém diametralmente oposto a mim, anulando qualquer outro valor que porventura esta pessoa venha a ter.

Política é algo muito mais perto de nós do que imaginamos. E podemos extrair isto do artigo 1º, Parágrafo único, da Constituição Federal, que diz: "Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente". Significa que vivemos em uma democracia representativa, ou seja, que conferimos ao nosso candidato o poder que nos cabe, para que ele tome, em nosso nome, as medidas que nós mesmos tomaríamos. Por isso, são chamados de representantes eleitos. Porque eles representam aquilo que somos.

Assim, se alguém confere a um candidato como Jair Bolsonaro o poder para que ele venha restringir direitos das minorias, fazendo-as se curvar à maioria, como já declarou inúmeras vezes, este eleitor está dizendo que concorda com esta política e se sente representado por quem a exerce. Se alguém confere a este candidato o poder para agredir homossexuais, mulheres, negros, índios, não cristãos, está dizendo a mim que faria isto tudo se lhe coubesse. Como não cabe, outorga a um representante seu que o faça em seu lugar.

Uma pessoa que faz tudo isso está dizendo a mim que a minha existência é um erro e valida qualquer tentativa de corrigi-lo, ainda que eu venha a ser massacrado na rua com a chancela do seu candidato. Uma pessoa desta definitivamente não é digna da minha consideração, da minha amizade, do meu afeto, tampouco de qualquer laço existente meramente por consanguinidade.

O imbecil que me provocou reiteradas vezes pelo meu WhatsApp ao longo dos últimos dias já foi devidamente freado do meu convívio com um bloqueio no meu aplicativo. Se ele quiser jogar a sinuca dele com seus amigos, usando armas de fogo em lugar de tacos, que fique à vontade. Mas, quando um dos seus disparos me atingir, que não lamente pela escolha que fez. Ele escolheu me alçar à qualidade de alguém que pode deixar de existir.

Amizades desfeitas e a Democracia representativa

(Originalmente publicado no meu Facebook em 26.03.2017)

Não vale a pena se afastar das pessoas por causa de candidato político?

Nosso sistema político é representativo, o que significa que quando damos nosso voto a um candidato, estamos conferindo-lhe que nos represente. A isto damos o nome de democracia representativa: o poder exercido pelo povo, através de seus representantes. Estamos dizendo que seu pensamento é alinhado com o nosso e esperando que ele faça em nosso nome aquilo que não temos como fazer. É como passar uma procuração para alguém exercer um poder que me cabe.

E aí, você pensa que não vale a pena se afastar daquele seu "amigo" que apoia um Bolsonaro, por exemplo, qualquer um daquela famigerada tradicional família racista, misógina e homofóbica. Ou aquele parente que acha lindo o discurso homofóbico que fala em Jesus e em Deus com uma naturalidade incrível para quem defende o preconceito, do Ezequiel Teixeira, aquele pastorzinho da igreja da cara de leão, que veio, com a voracidade da fera, devorando os direitos humanos ao assumir sua secretaria no Estado do Rio de Janeiro, de forma similar ao que Marco Feliciano fez em nível nacional quando foi alçado à presidência da comissão.

Ora, se meu "amigo" diz que apoia um Bolsonaro, está me dizendo que apoia a violência contra gays, a discriminação contra negros e o estupro de mulheres. Sua mensagem é clara: "estou dando ao meu candidato a representatividade para atuar em meu nome, fazendo por mim aquilo que eu faria, mas não posso". Estou ouvindo do meu "amigo" que ele apoia um candidato que se dispõe a brigar contra quem eu sou, que está verdadeiramente disposto a empreender um embate para combater não só a mim, mas todos aqueles que me são semelhantes.

Mas, em nome da camaradagem, devo aceitar que meu "amigo", meu tio, meu primo ou meu avô concedam a um candidato disposto a transformar a minha vida num inferno, poder para atuar e colocar em prática seus planos doentios?

Não, obrigado. Se alguém se dispõe a dar a um candidato poder para fazer isso tudo, não devo lhe outorgar minha amizade, tampouco devo lamentar se a política me tirar esse tipo de "amigo" do caminho.

Postura profissional?

(Originalmente publicado no meu Facebook, em 22.08.2018)

Cursei Direito em uma universidade pública. Localizada em cidade à beira do mar, com aulas muitas vezes oferecidas em horário de verão, à tarde, depois de meses de greve. Nessas ocasiões, muitas vezes, fugi do calor e fui assistir às aulas trajando bermuda, camiseta, sandália. Estava longe de me formar, longe de ingressar no mercado de trabalho e mais preocupado em alimentar meus sonhos de acadêmico a pensar em "traje adequado" ou "postura".

Muitas vezes, fui alertado sobre a minha suposta falta de "postura profissional", em razão de entrar nas aulas de bermuda, camiseta e chinelos. Meu professor de Direito Tributário, um dos piores que já tive na vida inteira, foi um deles: não dava aula, era um péssimo profissional e se sentia no direito de me alfinetar a cada vez que me olhava, com meu ar de quem estava pronto para ir à praia, e não para a aula.

Quando apresentei meu TCC, fui de terno e gravata. Foi a primeira vez em que usei terno durante a vida acadêmica. No corredor, tive o desprazer de esbarrar com aquele professor. Olhou-me de cima até embaixo, com ar de desdém comentou: "nem o reconheci agora que parece um bom profissional". Não deixei por menos e retruquei, com um sorriso cínico de quem estava, na verdade, controlando uma vontade de socá-lo: "pois é, professor, como pode pode ver, não foi a falta de um terno que me impediu de chegar até aqui". Saí, irritado, com a percepção de que para parecer um bom profissional era mais importante estar alinhado nas vestes que mostrar competência.

Passei no TCC com 9,5.

Na vida profissional, já soube de caso em que serventuário de cartório telefonou para uma chefe minha, apenas para lhe alertar de que um advogado do seu escritório estava diligenciando em fórum com trajes inapropriados à dignidade de sua profissão. Eu havia ido de calça, sapatênis e camisa de gola polo tirar fotocópia de um processo.

Na ocasião, comentei que se o péssimo profissional do fórum estivesse menos preocupado em fazer fofoca e mais ocupado em fazer seu trabalho, talvez os processos não fossem tão morosos naquela Vara de Família.

Noutra ocasião, uma chefe me disse que eu escrevia mal, que minhas petições não eram técnicas e que eu "viajava demais, filosofando tanto na escrita, de forma desnecessária", já que, de acordo com suas palavras, duvidava que o juiz fosse entender. Delicadamente, respondi que o fato de ela não acompanhar o raciocínio do meu texto não lhe dava o direito de presumir que todos os juízes fossem pouco inteligentes como ela.

Não foram poucas as vezes em que fui "alertado" sobre usar brinco, sobre não viver de terno e gravata para cima e para baixo, sobre sentar em rodinhas de estagiários em vez de rodinhas de chefes, por não suportar ser chamado de "doutor" e por me recusar a chamar colegas pelo mesmo título, por expor aspectos da minha vida em redes sociais, sobre não ter "postura de advogado".

Ao longo da minha vida profissional, consegui alguns feitos que poucos profissionais conseguem num Judiciário tão engessado como o do Rio de Janeiro. Sempre briguei contra este conservadorismo que impera no mundo jurídico e que fomenta esta visão de que você só será bom se seu sapato for o mais brilhante e seu terno for o mais caro.

E sempre fui a favor de que o bom profissional é aquele que investe em conhecimento aplicável e não em roupa. E por conhecimento aplicável não me refiro a decorar artigos de lei, prática desnecessária, já que a lei está ali sempre à disposição de uma consulta, mas a entender a relação entre o Direito e outros campos do conhecimento, como Filosofia, Sociologia, História. É dominando o discurso lógico que se constroem bons argumentos, ferramenta necessária ao trabalho de um bom advogado. É saber usar as palavras e mostrar a desconstrução de um raciocínio, etapa por etapa, para demonstrar sua formação, evidenciando os possíveis erros e acertos em suas premissas. Assim, faz-se o convencimento.

Então, quando você tiver alguns Recursos Especiais admitidos de primeira pela Terceira Vice-Presidência, remetidos ao STJ sem necessidade de interposição de Agravo; quando você conseguir, na lábia, despachar tutela de urgência e antecipar em uma tarde uma tramitação que levaria cerca de um ano, garantindo o direito do seu cliente; quando você conseguir impugnar laudo de IML sem ser médico, mas valendo-se do conhecimento que adquiriu em suas aulas de Medicina Legal; quando você conseguir reverter condenações homéricas para improcedência em seus recursos de Apelação; quando você conseguir fazer muitas testemunhas mentirosas se contradizerem durante audiências, apenas com perguntas; quando você tiver trechos das suas petições transcritos nas decisões proferidas pelos desembargadores que acolheram seus argumentos ali apresentados; quando você conseguir analisar riscos, antecipar derrotas e evitá-las oferecendo e firmando acordos muito mais vantajosos ao seu cliente, aí sim você vem falar comigo sobre postura profissional.

Jair Bolsonaro e a velha opinião formada sobre tudo


(Originalmente publicado no meu Facebook, em 09.10.2018. Ainda não havia o resultado das eleições presidenciais. Infelizmente, só confirmaram minhas previsões)

Vou falar novamente numa outra língua que você talvez entenda.

Você é mulher. Se tiver de passar por uma rua deserta sozinha, do que você mais tem medo? E sempre tiver de entrar em um carro de um homem estranho? Como um motorista de táxi de uma empresa que você não conhece? E se estiver sozinha em casa e for obrigada a receber um prestador de serviço, tipo um instalador de internet ou um encanador? O que mais te assusta nessas circunstâncias? Violência sexual? Medo de ser estuprada?

Eu sou homem. Eu poderia dizer que isso é mimimi. Eu não tenho a menor ideia do que é este medo. Não vislumbro a menor possibilidade de ser sexualmente violentado por um taxista, um pedreiro, um transeunte qualquer de uma rua vazia. A figura de outro homem, pelo simples fato de ser homem, perto de mim não se afigura uma ameaça. Não tenho nenhum receio pela minha integridade física. Tenho 1,85 de altura e poderia dizer que me sinto até bastante seguro quanto à minha integridade física. O máximo que eventualmente poderia me causar algum temor seria o receio de algo a ser feito contra meu patrimônio: assalto, perder meu celular ou minha carteira. Isso faz de mim parte legítima para desdizer o medo que você, mulher, tem, de ser vítima de violência sexual? Não, não faz. Faz de mim alguém que ignora completamente o seu sentimento. E no máximo, faz de mim alguém que tenta ter empatia com o que você diz passar. Eu poderia muito bem dizer que é um medo infundado, porque não faz parte da minha realidade. Em vez disso, prefiro pensar que o fato de eu ignorar um sentimento não significa que ele não exista e não tenha algum fundamento.

Pois é isso que o seu candidato fascista e aqueles que o seguem não fazem. Por desconhecerem o temor alheio na própria pele, passam a minimizá-lo.

Você nunca terá ideia do que é ter medo de andar de mãos dadas na rua com a pessoa que ama como as pessoas LGBT sentem. Da mesma forma que nós, homens, não saberemos o que é ter medo de outra presença masculina como uma ameaça à nossa integridade física e sexual apenas por estarmos no mesmo ambiente junto com ele.

Você não sabe o que é ser cercada na rua com palavras ofensivas por andar de mãos dadas com seu namorado, e posso apostar que nunca tentaram bater em você por isso.

***

Em meados de 2005 ou 2006, eu e um amigo fomos cercados por um grupo de rapazes. Eu e um amigo. Não éramos namorados. Não andávamos de mãos dadas. Não trocávamos carinhos em público. Apenas andávamos juntos. E nossa existência incomodava tanto um grupo de pessoas, a ponto de nos cercarem, ofenderem e tentarem nos bater. Assim, gratuitamente. "Vocês são gays, logo têm que apanhar". E nos cercaram. E socaram o rosto do meu amigo. E tentaram socar o meu. Nossa sorte era que nesta época eu corria cerca de 20 km diariamente e praticava musculação, andando no auge da minha resistência física. Consegui esmurrar um deles, joguei seu rosto contra uma árvore e o empurrei sobre os demais, para conseguir tirar meu amigo do meio daquela roda de violência e sairmos ambos correndo para longe. Eu saí ileso. Meu amigo ainda teve uns hematomas. "Ileso", quer dizer... assim, entre aspas. Fisicamente saí ileso. Internamente, eu estava devastado, constatando que minha existência era algo que podia ser relativizado, minimizado e extinto.

***

Jair Bolsonaro, a pessoa, o Seu Jair para algum dos seus vizinhos, não é uma ameaça. É um senhor idoso. Um velho, decrépito, burro e fraco. Mesmo hoje, não mais correndo 20km por dia, nem praticando musculação como há doze ou treze anos, eu me garantiria se algum disse esse velho se atrevesse a me bater como declarou em entrevista que o faria se visse dois rapazes se beijando. Quem me dera, inclusive, se ele tentasse! A satisfação de lhe arrancar um dente com um soco não teria preço! Não, esse corpo velho não é uma ameaça. Suas ideias são.

Jair Bolsonaro forma opiniões. Tem uma legião de seguidores, tão limitados quanto o alcance dos seus cérebros, simplista, que se vale de uma dúzia de frases de efeito, e espalha sementes. Planta o ódio na cabeça dos seus seguidores e deixa que o restante dos seus trabalhos seja feito pela massa anencéfala.

Quando você ouve uma horda de seguidores dessa pessoa gritando a plenos pulmões, em tom de comemoração, quase como torcida organizada "o Bolsonaro vai matar viado", você pode perceber a influência que este velho decrépito tem. Você não se importa, você não é viado. Você não sabe o que é o medo de ser pego olhando para um rapaz que ache bonito, não sabe o que é beijar de olho aberto na rua, para poder ver se virá um ataque de algum lugar e poder se precaver. E aí você diz que não é homofóbica, que tem amigos gays, que ama seu amigo gay, mas que eleger um homem que confere validade a este discurso violento "é apenas é uma opinião, mas ainda sou sua amiga".

Dias atrás assisti, chocado, a uma "amiga" de um "amigo" viado, dizer a mim os maiores desaforos, numa postagem deste "amigo". O motivo? Desmenti com fotos e argumentos umas notícias falsas que ela compartilhava. O meu "amigo", mesmo sendo gay, mesmo estando inserido na categoria que aquela mulher decidiu ofender, mesmo sabendo que é a sua existência que também corre risco com o candidato que aquela mulher decidiu escolher, limitou-se a curtir uma a uma cada uma das respostas malcriadas que ela me deu. Sabe como é, né? É vizinha. É tia. É prima. Conheço desde pequeno. Ela me ama, sim. Está elegendo um cara cujos defensores alardeiam em vídeo que irá matar o grupo dentro do qual eu estou inserido, foi extremamente grosseira com um amigo meu, sem nenhuma razão de ser, mas, poxa, tadinha, vou clicar aqui no botãozinho "curtir" da sua resposta, por que, você sabe, não vou me indispor. Tudo bem, a escolha é sua. Quando levar a primeira paulada na rua, espero que se lembre de sua omissão.

Eu vou me indispor, sim. Tempos atrás perdi um parente. Morreu. Parente mesmo, não família. Havia declarado voto ao candidato que se acha no direito de me bater se me vir beijando meu namorado na rua. Só pude me sentir grato por ter morrido antes das eleições. Um voto a menos para um fascista. Cortei conversa com outros tantos parentes que, infelizmente, foram às urnas conferir poder a esse candidato desprezível. Felizmente posso me orgulhar dos meus pais e irmãs, que ainda defendem a democracia.

Não, você não sabe o que é ter que soltar as mãos do seu marido na rua apenas porque vem vindo alguém.

***

Dias atrás, peguei o metrô. Eu estava sozinho, mas o vagão estava cheio. Um grupo de quatro homens estava perto e eu podia ouvi-los falar sobre o quanto havia sido divertido terem zoado um "casalzinho de viados" e sobre a frustração de um deles sobre outro casal porque "porra, os cara era lutador! Dois homi tudo forte, cara, eu vou zoar?" (sic)

Muito frequentemente, pego o metrô com meu namorado. Neste dia, infelizmente, eu estava sozinho. Queria poder entrar no vagão abraçado, ou de mãos dadas, ou trocando qualquer tipo de carinho, porque eu estava disposto a desbancar um grupo de marmanjo problemático que se sentisse no direito de se intrometer na minha vida afetiva. Segui a viagem sozinho, pensando que deveriam ser proibidas manifestações de estupidez.

Seu candidato é essa ideia entranhada na cabeça vazia de quem o segue. Ele não me bateria no metrô, tampouco me cercaria numa rua com um amigo. Mas, daria a força que essa gente precisa para destilar seu ódio. Se esses homens praticam essa violência, que há muito deixou de ser simbólica, mesmo quando têm contra si todo um sistema legal que coíbe a discriminação, o que farão quando se sentirem representados, refletidos e chancelados pelo Chefe de Estado, pelo representante máximo de uma nação?

Então, não, eu não sei o que é ter medo de ser estuprado numa rua deserta. Mas sei que meu afeto incomoda um mundo ao meu redor, que você com seu voto está disposta a colocar em prática. Não peça minha empatia se você não se dispõe a dar a sua. A propósito, o candidato que tem seu voto também defende que mulher é cadela que deve ser alimentada em tigela. Você acha mesmo que estará segura numa rua deserta em um governo que ele vier instaurar?

Algibeira

Algibeira

Guarda memórias na tua algibeira 
Quando é noite e o frio te abraça.
Posto que, ao veres vazios teus bolsos,
Sentirás plena tu'alma, imersa
Nas lembranças de olhos que sorriem.

Guarda e rememora: feliz encontro
Entre o pretérito perfeito
E o conjugar dos verbos todos,
Em tempos, modos e pessoa singular.

Tira do bolso a paz e a doce ausência,
Pois te ronda o sono e faz-se tarde.
Sonha! Quando a saudade te contorna,
Põe-te vulnerável: emoção eruptiva
Como gêiseres que brotam.

Deixa te enlevar, do forro da casaca
Trazido à tona por dedos curiosos,
Alegria vaga de quem traz consigo
Recordações, desvarios, devaneios
Que felicidade alguma ousa pôr fim.

Rio, 11 de julho de 2018.

Antítese do Tempo

Antítese do tempo

Dias que gotejam
Em lento arrastar de passos
Desejo de que avancem
E que do futuro se faça presente
Quando o maior presente
São as horas que os sonhos
Insistem em querer congelar

Contraponto dos ponteiros
Que correm distante
E apontam avante
Do presente que se faz pretérito.
Fiquem! Mas, vão!
Paradoxo de sorrisos longevos:
Anseiam pelo amanhã
E querem no hoje o eterno,
Posto que o passado se esvai
Mas, não aparece o porvir.

Ah, se me trouxesse a noite
Horas sonolentas!

Que olhos cerrados aos dias vindouros
Almejam apagar o brilho
De segundos preciosos que foram a galope?

Iroko, planta aqui tua gameleira
E guarda os minutos que já foram,
Dentro dos quais sorrisos se fizeram.
Devora, Cronos, as manhãs que não vieram,
Digere a ansiedade e ao fim do dia sexto
Regurgita a pacatez
Do abraço que tempo algum
Intenta separar.

Rio, 03.08.2018

Pedido

Pedido

Quando fores mata funesta,
Deixa-me ser rio que te atravessa,
Margem enternecida que perpassa
Os meandros do teu solo ferido.

Deixa-me ser colarinho
Quando fores gravata.
Em teu nó, abraça-me forte!
Traze algum sentido à minha destinação.

Mas, quando fores mão, outra mão serei.
Deixa-me pôr ao teu lado,
Posto que dedos trançados
Traduzem o verbo aninhar.

E quando fores sorriso, fica!
Deixa-me ser esperança.
Não te vás a brilhar noutros olhos
Não permitas que eu seja saudade.

Rio, 05 de julho de 2018.

Mas, eis que chega a roda vida...

(Originalmente postado no meu Facebook em 22.08.2018)

"Tô de olho em você, que estava dizendo que não queria nada sério com ninguém, mas uma semana depois apareceu namorando."

"Tô só manjando esse povo que ontem estava me mandando nude e hoje aparece colocando foto de casal apaixonado em rede social."

"Sem saco para quem diz que quer um relacionamento estável, mas não sai do aplicativo de pegação, pegando geral."

Então, migx, senta aqui, bora levar dois dedinhos de prosa: cuida da tua vida, sim? Pronto. Era só isso mesmo que eu queria te dizer.

Em vez de reclamar de quem enxerga a vida de forma dinâmica e agarra as oportunidades que aparecem, por que você não tenta fazer o mesmo?

Para com essa chatice de reclamar de quem te mandou nude ontem, ou que não queria nada sério com você, ou que semana passada te deu mole (e cá pra nós, aposto que você ficou fazendo cu doce e, por conta disso, a pessoa encheu e foi ciscar noutro terreiro).

Ontem foi ontem, passado, ficou pra trás. Ideias mudam todo dia. Pessoas mudam todo dia. Como é que você esperava que um bicho mutável como é gente, que carrega um troço mutável como é ideia, ficasse à mercê do seu capricho de quem prefere ver a vida passar pela janela em vez de vivê-la?

Aquilo que tu chama de piranha, eu chamo de pessoa com senso de oportunidade. É gente que não é obrigada a planejar uma vida ao teu lado, mas que, numa piscada de olhos, descobre alguém que a instiga e vira tudo de cabeça pra baixo. A pornografia que te mandaram semana passada é o coração que estão entregando a outrx hoje. Aceita. E não entra nessa chatice de aguardar ad eternum que continuem massageando teu ego, à tua disposição, enquanto você faz a linha "culto das princesas", porque decidiu esperar, e depois resolve se fazer de ofendidx quando descobre que a fila andou.

Porque a vida é assim mesmo. Se você tá vendo a pessoinha todo dia no app de pegação é porque alguma coisa você tá fazendo lá, né não? E quer saber? Não há nada de errado nisso. Corpo é teu, faz dele o que tu quiser! Só pare de achar que você é melhor que geral porque acha que você tá ali fazendo a diferença. Porque não tá. Você tá ali querendo o que tanta gente quer: dar e receber amor. E tá disponível para dar e receber outras coisas enquanto esse amor não chega. Então para. Vá dar! (Amor também, inclusive). Vá fazer sua vida acontecer também.

Porque se você acha que foi rápida a mudança daquela pessoa que, semana passada, estava pegando geral para hoje aparecer shippada com outro nome acoplado ao dela, imagine qual não vai ser a sua surpresa ao se dar conta da mudança que é você estar vivendo hoje e amanhã se descobrir à beira da morte. Pesado, né? É pra ser mesmo. Então acorda! Porque uma hora tu pode não conseguir mais.

Dano existencial

(Originalmente postado no meu Facebook, em 31.08.2018)

Dá-se o nome de dano existencial à lesão causada pelo empregador ao empregado quando, em virtude da jornada excessiva do trabalho, este deixa de gozar a própria existência como alguém dissociado do ambiente corporativo no qual está inserido e do qual deveria apenas ser parte. Ocorre quando a pessoa se encontra impossibilitada de fruir e gozar momentos de lazer, vida social, vida acadêmica e projetos pessoais, como cursos, exercícios, hobbies, etc.
O reconhecimento do dano existencial parte do pressuposto de que o trabalho do ser humano deve ser instrumento para sua subsistência e não um fim em si mesmo. Repousa sobre este entendimento a velha máxima popular de que todos devemos trabalhar para viver e não viver para trabalhar. É a própria existência da pessoa que se vê prejudicada quando toma por condição inerente, em uma relação de total submissão e dependência, a ideia de que sua vida se resume à atividade que você pratica para sobreviver.
E o mundo corporativo há muito vende a ideia falaciosa de que a dignificação do indivíduo é consequência direta da sua atividade laboral. De tal forma que costumamos nos definir pela atividade com a qual atuamos. Quando, algum  tempo atrás me perguntavam o que eu era, eu respondia sem pestanjear: sou advogado.
Pressupunha-se, com essa resposta, que o conceito de "ser" resumia-se, ontologicamente, a uma fatia do ser, ou, mais precisamente, a um só (dos inúmeros) campos de atuação do ser. O ente profissional ocupava todo o indivíduo, em uma metonímia cruel que atribuía como o todo apenas uma de suas facetas: a do trabalhador.
Essa cultura mesquinha que resume a pessoa à sua atividade laborativa criou a falsa ideia de que é o trabalho que valoriza o homem, aqui tomado em sua acepção mais ampla, como um exemplar da espécie humana. Não ouso discordar que o trabalho valoriza o homem, mas insisto em dizer que o valoriza também, mas não somente.
Quando eu respondia que eu, Gustavo, era advogado, eu traduzia exatamente a noção de que o ser humano é definido pelo seu trabalho, o que, evidentemente, não corresponde à verdade. Para demonstrar isto, basta que se pergunte "o que você é?" a quem não exerce qualquer atividade laborativa. Invariavelmente, outra faceta que compõe a pessoa preencherá a vaga deixada aberta pela ausência do trabalho: sou filho, sou irmã, sou homem, sou sonhadora.
O mundo corporativo ganha muito com esta visão, de forma que é fácil se perder na reflexão sobre a causa e a consequência: o mundo corporativo propaga essa ideia de que somos aquilo com que trabalhamos por que temos essa percepção ou temos essa ideia por que o mundo corporativo nos ensinou e nos fez acreditar que somos aquilo com que trabalhamos?
Seja como for, o que se nota sem grandes esforços é que as empresas, as grandes corporações, os empregadores, via de regra, insistem em propagar esse pensamento, incutindo na cabeça do trabalhador que ele está sendo agraciado pelo excesso de trabalho que lhe impõem.
Assumo doravante, em caráter generalista para fins de economia argumentativa, que todo empregador seja um explorador do homem, sem que seja necessário explicar, todas as vezes em que eu fizer alusão ao empregador e ao empresariado, que eu deva lembrar que existem aqueles de visão humanista, que reconhecem o valor dos seus subordinados e os veem como pessoas e não como máquinas.
O empresariado capitalista busca o lucro, fato. Necessita, para isto, fazer sua balança pender sempre para o lado da receita, deixando mais leve o lado dos gastos. Para isto, busca utilizar insumos mais baratos, mão obra mais barata, reduzir o quadro de pessoal para enxugar a folha de pagamento.
Consequentemente, passa a ser recorrente a queixa de que a quantidade de atividades impostas ao funcionário é excessiva para ser cumprida na carga horária pela qual ele é pago para trabalhar.
E é aqui que experimentamos o lado mais cruel da realidade corporativa. Você é ensinado que sua definição se mede pelo trabalho que você exerce. Logo, a qualidade do seu trabalho traduz o seu próprio valor como pessoa. E quando você não sabe o que é causa e o que é consequência, enxergando apenas uma intersecção entre o que você é e o que você faz, passa a ser levado a crer que toda responsabilidade sobre tudo o que você faz decorre do que você é.
Se o seu trabalho fracassa, é porque você não se dedica o suficiente. Se você se atrasa na execução de uma atividade, é porque não otimiza seu tempo satisfatoriamente. Se você se cansa, é porque não se prepara para trabalhar sob pressão. Para o sistema aqui explanado, se você não dá conta, nunca é porque lhe impõem um fardo maior do que alguém pode carregar. É culpa sua. Apenas sua. Quem adora essa ideia são os coaches, profissionais da moda que são pagos para te ensinar o que já lhe empurram diariamente goela abaixo. Sou capaz de apostar que não foram poucas as vezes em que você viu anúncios do tipo "Cansado de procrastinar? Nós te ensinamos a administrar seu tempo". Sim, porque, neste sistema massacrante, novamente é você - e só você - o responsável pelo que te acontece.
Diariamente, sou bombardeado por "mensagens de estímulo" do tipo "não reclame da sua vida, trabalhe para mudá-la", "o sucesso demanda esforço", "se não quer fracassar, durma menos, trabalhe mais". Trabalhe, trabalhe, trabalhe, trabalhe, trabalhe. Até que não sobre mais nada de você. Vemos o trabalho por todos os lados, sempre esfregados na nossa cara como algo dignificador do homem, ou mais, como determinante de sua  própria identidade.
Nossa sociedade, etnocêntrica, insiste em criticar alguns grupos tidos como primitivos, a exemplo de certas aldeias indígenas, arguindo que seus membros são preguiçosos (e esta palavra nunca vem de forma não pejorativa), que não trabalham, que não produzem, que não acumulam. Temos até uma palavrinha emprestada do inglês para definir o oposto disto, usada para nomear a pessoa que vive em função do seu trabalho e raramente é mal vista por isto: workaholic. O workaholic passa a ser um modelo de conduta, não importando a quem o vê como um exemplo a ser seguido a sua ausência do meio familiar, as horas passadas longe dos filhos, a saúde sacrificada pela falta de horas dormidas.
Ao contrário, o empregador vende a imagem de que ser um viciado em trabalho é algo excelente. E tão excelente que qualquer forma de questionamento desta premissa será reprovável. Você automaticamente será alçado à categoria de preguiçoso se começar a questionar os prejuízos pessoais decorrentes do excesso de trabalho. Anda de mãos dadas com este pensamento, como uma espécie de venda casada, a pior faceta desse sistema: a ditadura da felicidade e do necessário combate à negatividade.
Não basta a exploração à qual o empregado é submetido com excesso de trabalho, carga horária apertada, cobrança, pressão, exigência de que sua vida esteja inteiramente à disposição do seu ambiente de trabalho, seu celular conectado ao seu e-mail, os famigerados grupos de trabalhos em aplicativos de mensagem instantânea, os acessos remotos gentilmente disponibilizados pelo empregador para que ele trabalhe de casa em fim de semana ou madrugada adentro. Não basta. O funcionário ainda deve estar sempre sorridente e grato por ter sua existência corrompida. Deve irradiar a maldição da positividade, demonstrando entusiasmo por cada tarefa a mais que lhe é atribuída. Afinal, ao empregado que reclama não é dada sequer a presunção de seu real interesse é o de exercer uma atividade de excelência e contribuir com melhores resultados. Em vez disso, a este empregado é apenas atribuída a responsabilidade (mais uma) de ser uma influência negativa aos colegas. Só. O mundo corporativo te quer sorrindo. O contrário disto será apenas uma forma de diminuir o moral da equipe. Uma influência nefasta capaz de prejudicar o bom andamento dos trabalhos. E o empregado deve estar feliz e grato por mais uma oportunidade de integrar aquele ambiente.
Oportunidade. Essa é a palavra coringa, o dois de paus usado no jargão corporativo para mostrar que você não pode revelar jamais sua insatisfação. O empresário determina que você abrace mais tarefas do que aquelas que você já tem e não consegue cumprir com sua jornada diária? Em sua visão egoísta, que te vê como uma peça substituível de uma engrenagem que deve se manter em movimento, é uma oportunidade que está sendo oferecida para você mostrar que pode, que é capaz. O empresário cria grupos estratégicos para que você os integre, com o objetivo de pensarem soluções para problemas diários e recorrentes em sua atividade, mas te lembra que você deverá dispor de alguma horas semanais que não serão descontadas da sua jornada diária. Afinal, você é que deve se organizar para usufruir dessa oportunidade que lhe está sendo oferecida. Trabalhe mais rápido, mas sem perder a qualidade, e aproveite essa chance. O chefe precisa de você para cobrir o funcionário afastado por auxílio-doença, mas não te libera das suas tarefas normais? Eis uma oportunidade que a empresa está lhe dando de adquirir mais conhecimentos exercendo uma tarefa a mais que você passará a dominar.
E te fazem questão de mostrar que essa oportunidade que lhe dão é para poucos. Lá fora há uma fila de gente que também acredita precisar de uma definição embasada em sua atividade laboral, esperando essa mesma oportunidade. Esse é o pensamento do empregador. E o dano existencial? Para o mundo corporativo, não existe. Dane-se a sua existência. Ao final, tomado por estafa, estresse, esgotamento físico e mental, você ainda pode infartar. Mas, se for morrer, por favor, deixe sua agenda cumprida. Obrigado.

O mal do século


(Originalmente postado no meu Facebook, em 22.11.2017)

Faço parte de uns grupos no Facebook, com diferentes temáticas, como poliamor, combate à homofobia, empoderamento de minorias, combate ao machismo, etc. Vez ou outra, nestes grupos, surgem brincadeirinhas fora da discussão, no intuito de fomentar a interatividade entre os membros, tipo "comenta sua idade, e quem curtir tem interesse em você", "fale sobre seu signo, quem tiver interesse comenta no seu comentário", "beija o de cima ou arrisca no próximo?" E outras coisinhas bobas do tipo. Muitas das quais, visando à formação de casais ou de amigos dentro dos grupos.

Não critico as brincadeiras. Até gosto, acho divertido promover a harmonia dos membros, inclusive dando uma ajudinha para o cupido de plantão.  No entanto, tenho percebido que este tipo de postagem incentivando a interatividade entre a galera não tem sido muito frutífera. Porque tem faltado exatamente uma interação efetiva.

É divertidinho comentar que está solteiro e aguardar pessoas dizendo "então me pega", ou postar um retrato e falar sobre os próprios atributos pessoais, como em aplicativos de pegação, aguardando que candidatos à vaga num coração vazio apareçam. Mas, a impressão que tenho tido é a de que somos todos uma geração permanentemente carente, um monte de pessoas solitárias, que se queixam por estarem sós, mas que não se propõem a olhar para o lado.

O que sempre vejo é que a maioria das pessoas posta seu próprio comentário, vendendo seu peixe no mercado, mas não se dá o trabalho de olhar, curtir, comentar o post do outro. Como se todos se queixassem por estarem sozinhos, mas ninguém tomasse uma iniciativa efetiva para interagir com o outro. É meio assustador ver tanta gente se queixando por ser sozinha, por querer um namorado ou namorada, uma embaixo da outra, mas ninguém comentando no post um do outro, como se nem ao menos tivesse lido o que já havia sido postado antes do seu próprio comentário.

É como se o mundo girasse em torno apenas do nosso próprio umbigo, fazendo apenas com que aguardemos a curtida do outro, o comentário do outro, o elogio do outro, mas nós mesmos não nos esforçamos para curtir o outro, comentar o outro. Apenas aguardamos. Aguardamos a curtida, aguardamos o elogio, aguardamos o comentário. E assim, cresce o número de pessoas solitárias, enquanto mensagens, fotos e autopropagandas se perdem em meio à sobrecarga de comentários seguintes.

A música Esperando Por Mim, da Legião Urbana tem uma frase muito condizente com esta realidade: "Digam o que disserem, o mal do século é a solidão. Cada um de nós imerso em sua própria arrogância, esperando por um pouco de afeição."

É estranho que, com tanta gente sozinha, querendo um "mozão", todas reunidas num mesmo ambiente, nenhum par se forme. Cadê aquela iniciativa do "se organizar direitinho, todo mundo transa"? Vale também para o amor: "se organizar direitinho, todo mundo ama". Urge que se busquem uns aos outros, em vez apenas de  esperar que o outro o faça.

Circula pela Internet um texto, desses chatos, de reflexão e autoajuda, que descreve o Inferno como uma grande mesa com um banquete, à qual, segurando talheres de cabos imensos, sentam-se os comensais, todos famintos, pois não conseguem virar os talheres em direção à própria boca, tendo em vista o comprimento de cada talher. E descreve o Paraíso como a mesma mesa, com o mesmo banquete e os mesmos talheres, mas os comensais, em vez de pensarem somente em si e passarem fome, alimentam uns aos outros.

Vejo que a analogia também funciona para a situação dos grupos. A solidão às vezes me parece como o Inferno do conto, no qual cada um olha tanto para o próprio umbigo, que se perde em si mesmo, sem conseguir ver o outro ao seu lado.

Se olhassem todos ao redor, cada qual estaria menos sozinho. Vivemos a cultura da solidão, revelada na recusa a dar atenção com quem puxa papo conosco na fila do mercado, ou na cara feia que fazemos quando alguém ocupa o assento ao nosso lado no ônibus. E seguimos permanentemente reclamando dos dias vazios, da ausência de amigos, de amores, de emoções.