segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Dura Lex, Sed Lex

O aluno de direito é adestrado desde cedo com um mantra em latim que ele repete à exaustão: "Dura lex, sed lex".

Essa parada, quando é em português, a gente chama de "dito popular", mas quando é em latim, a goumertização do direito nos orienta a chamar de "brocardo jurídico", nome bonitinho para designar uma espécie de dogma que o aluno sem senso crítico vai repetir e repetir e repetir, sem nunca parar para fazer uma avaliação crítica do conteúdo que está repetindo.

"Dura lex, sed lex" significa em latim "a lei é dura, mas é a lei". Na prática, orienta o jurista para a abstração e generalidade da lei, de forma que esta deva ser cumprida, ainda que seja austera. A lei é dura, mas é a lei.

Não importa que a aplicação da norma cause uma injustiça no mundo material. É a norma, deve ser cumprida. É dura, mas é a lei. E o único caminho possível para a lei é a sua aplicação. É como nos ensinam nos cursos de direito.

E somos tão imbuídos do abstracionismo e descolamento da norma para com a realidade, que apenas nos orgulhamos quando aplicamos a lei. Não importa que um banco bilionário desaproprie o único imóvel de uma família que não conseguiu pagar juros de uma hipoteca. A lei é dura, mas é a lei. Faça o certo, aplique-a.

É hora de questionar esse senso moral subjacente à formação da consciência jurídica, que faz o jurista se orgulhar de cumprir mera formalidade, independentemente das suas consequências materiais. É sobre isso. E não, não tá nada bem. Que porra de subjetividade jurídica é essa que constroem na gente e que nos faz acreditar que é mais importante cumprir uma norma injusta do que questionar quem impõe essa norma?

A lei é dura mas é a lei, mas para que servirá uma lei que impõe austeridade ao seu subordinado? Por que deve o aplicador da lei se orgulhar por fazer "o certo" ao cumprir uma legislação injusta, quando se sabe que sua aplicação somente teria sentido em um ideal abstrato pensado como modelo, que nunca corresponde à realidade dos fatos?

Se a lei é dura, dane-se que seja a lei. Deve-se lutar para que seja revogada. E essa disputa deve se dar no discurso de ruptura com essa institucionalidade, que não corresponde ao modelo ideal e abstrato tomado por parâmetro.

Quando analisamos o mundo a partir de conceitos prévios e abstratos que não correspondem à realidade material, não estamos promovendo qualquer mudança estrutural da realidade. Então, qual o sentido de insistir em aplicar uma norma que não traz qualquer benefício a quem sente seus efeitos? Por que não somos orientados a brigar para derrubar leis injustas e descoladas da realidade, e em vez disso, somos orientados a fazer cumpri-las, ainda que não regulem a vida real por estarem alheias a essa realidade?

Se a lei é dura, mas é a lei, então foda-se a lei! Importa é a realidade das pessoas. É para isso que o aluno de direito deve ser orientado a brigar. Justiça se faz compensando e abolindo desequilíbrios existentes. Essa deve a ser a diretriz principiológica que irá nortear a atuação do profissional do direito.

domingo, 29 de agosto de 2021

Mas, o que é esse marco temporal?

Você não tá entendendo essa parada de "marco temporal" para terra indígena?

Um bandido invadiu sua casa em janeiro deste ano, matou seus filhos, esposa/esposo, deixou só você, e impôs que você não usaria mais aquela casa toda. A partir de então você somente poderia ficar na área de serviço.

Há uma semana, esse bandido, muito gente boa, resolveu "te liberar" também o acesso para o quartinho dos fundos. Afinal, você está esperneando desde que sua casa foi tomada para poder voltar a usar o que é seu por direito.

Hoje o bandido resolveu dar fim ao conflito entre vocês: "vamos fazer o seguinte: de janeiro pra cá aconteceu muita coisa. Então, esquece isso. Mas, desde semana passada você vem usando o quartinho e a área de serviço. Então vamos esquecer o que aconteceu de janeiro até semana passada e estabelecer que dessa data para hoje, o quarto e a área são seus por direito. Eu fico com o resto da casa, afinal, já estava aqui desde o começo do ano mesmo."

Isso é o marco temporal. Querem dizer para o dono da casa que sua posse só vale a partir da semana passada. E que tudo o que aconteceu antes pode ser deixado de lado para não ter mais confusão.

quinta-feira, 19 de agosto de 2021

OnlyFans e o falso moralismo em uma "esquerda" conservadora

A plataforma OnlyFans anunciou que, a partir de outubro, retiraria do ar conteúdo de cunho sexual.

Não tenho dados estatísticos aqui, até porque não é sobre o que proponho, mas sei que a plataforma é muito comum entre homens gays que compartilham conteúdos pornográficos em troca de dinheiro, vendendo fotografias "nudes" e vídeos de sexo explícito. Nem sei se a maioria dos perfis e do público possuem conteúdo sexual, mas sei que entre homens gays é bastante comum a produção e o consumo deste tipo de conteúdo nesta plataforma.

O que me causou, não tanto surpresa, mas muito mais indignação, foi ver no meio de pessoas LGBTQIA+ uma galera comemorando o anúncio da plataforma, ironizando que, a partir de outubro os produtores de conteúdo pornográfico "teriam que arrumar um emprego".

"Finalmente uma boa notícia."

"Quero ver esses gays folgados conseguir dinheiro agora." (sic)

"Trabalhar ninguém quer. Agora se mostrar pelado na internet em troca de dinheiro é moleza."

No meio desses homens gays — muitos dos quais consomem conteúdo pornográfico na Internet, e sei porque falo aqui de pessoas que conheço — encontram-se moralistas, que fazem juízo de valor em cima do comportamento sexual das pessoas. 

Gays comemorando o fim da fonte de renda de outros gays, pelo fato de que esta fonte provém da exposição do próprio corpo e da exploração do próprio sexo. Onde anda a consciência de classe de quem é alijado pelo mercado de trabalho por sua orientação sexual, quando julga seu similar, tão indesejável no mercado quanto ele próprio, por ganhar dinheiro ao explorar o próprio corpo?

Não indigna esses gays moralistas que sejamos todos obrigados a viver num sistema que, exatamente por nos afastar do mercado formal, obriga que outros homens gays explorem a própria imagem sexual, por não lhes restarem alternativa?

Pessoas que se dizem esquerdistas deveriam ter ciência de que a criminalidade e a violência estão diretamente relacionadas com as condições socioeconômicas em que vivemos. E que, quando faltam empregos e condições dignas de sobrevivência, há crescimento de violência e das taxas de criminalidade. No entanto, preferem comemorar a vitória da moral e dos bons costumes sobre um número de pessoas LGBTQIA+ que serão jogadas ao "Deus dará", e possivelmente incrementarão as estatísticas da criminalidade.

Não que deva haver uma necessária correlação entre comunismo e produção de pornografia, porém é de se irritar muito ver homens gays comemorando o fim da fonte de renda de outros homens gays. Perfis de supostos progressistas, que se dizem esquerdistas, ignoram que o percentual de desemprego para pessoas LGBTQIA+ é de 21,6%,  enquanto que o índice total no Brasil é de 12,2%, conforme pesquisa apresentada em maio de 2021, fruto de uma colaboração entre o coletivo “#VoteLGBT”, a Universidade Federal de Minas Gerais e a Unicamp.

Homens gays de esquerda deveriam lamentar que pessoas mais vulneráveis ao desemprego percam sua fonte de renda e passem a integrar um exército industrial de reserva em um momento tão cruel de avanço de políticas neoliberais de arrocho salarial. No entanto, compram o moralismo conservador da tradicional família de bem e desconsideram a legitimidade de obter renda explorando o próprio corpo.

Parece-me que esses moralistas não enxergam a semelhança entre aqueles "imorais" consigo próprios. Pensam que acordar diariamente às 6h da manhã, enfrentando trem lotado ou trânsito lento, para que consigam iniciar seu expediente às 9h é moralmente mais aceito que mostrar uma foto de um órgão sexual na internet. O trabalhador moralista pensa que não está explorando o próprio corpo quando enfrenta duas horas de trânsito na volta para casa, entro de um ônibus cheio, de pé, por causa de dinheiro, que chama de salário.

quarta-feira, 11 de agosto de 2021

Glauber Braga, Flordelis, presunção de inocência e o direito do estado burguês

Sobre o voto do Glauber Braga pelo não afastamento da Flordelis , tecnicamente sua escolha foi correta. Em relação à acusação de homicídio, foi justamente o que ele ponderou: ainda falando unicamente em termos técnicos e considerando todo o abstracionismo do Estado Democrático de Direitos, e dos princípios trazidos pela Constituição Federal, somente se considera culpada a pessoa com sentença condenatória transitada em julgado, ou seja, um julgamento que não caiba mais qualquer recurso.

Assim, tecnicamente, a deputada Flordelis é inocente, em função deste princípio constitucional da presunção de inocência (em outras palavras, presume-se que a pessoa seja inocente, até que da sentença condenatória não caiba mais qualquer recurso).

Por outro lado, há toda a questão da ideologia por trás de todos os princípios constitucionais vigentes neste Estado Democrático de Direitos, que é a ideologia liberal que fornece o suporte necessário para a manutenção do Estado burguês. E a consequência disso é que as leis criadas dentro desse Estado e a própria Constituição que o institui jurídica e politicamente são passíveis de críticas e de revisão. No entanto esse processo não se dá dentro da institucionalidade, mas através de uma ruptura institucional ou um processo revolucionário.

Romper com a Constituição é romper com o status quo. É exatamente o que eu sonho, enquanto agente de pretensões revolucionárias. Porém, aqui, lamentavelmente, a atuação do Glauber Braga como parlamentar pressupõe os limites impostos pela institucionalidade. Ele não tem como ir além das atribuições que lhes competem em função dos ditames da própria Constituição Federal. E justamente, neste aspecto, tomando por pressuposto a estrutura possível dentro da institucionalidade, a atitude do Glauber denota uma louvável coerência com princípios democráticos que ele propõe defender, em especial o abolicionismo penal. Minha visão técnico-jurídica está de acordo com a decisão dele. Minha visão ideológica quer mais é que Flordelis, como qualquer bolsonarista, se foda.

Não tenho uma opinião formada para bater o martelo dizendo que concordo ou discordo com sue voto. Não me sinto confortável para emitir um juízo de valor da sua escolha. Tenho uma opinião, mas não sei o quanto ela está ou não bem fundamentada.

Se por um lado achei admirável sua conduta coerente com seus ideais democráticos, por outro lado não sei se eu teria feito a mesma escolha. Nessa hora, creio que a ideologia que me guia seria mais forte e eu daria meu voto para que essa pessoa fosse chutada da cena pública. Assassina ou não, eu provavelmente votaria pela perda do mandato, não me baseando no princípio da presunção de inocência, mas sim porque o que me guiaria seria o propósito de calar as vozes que se levantam para louvar o bolsonarismo (consequentemente, o capitalismo, o fascismo, o neoliberalismo).

Eu também estaria sendo coerente, até porque democracia liberal não é democracia, é oligarquia. E eu não tenho nenhum compromisso pessoal com ela. Quem quiser me chamar de ditador, que chame. Emita sua opinião enquanto ainda não sou o Líder Supremo da República Comunista do Brasil.

sexta-feira, 6 de agosto de 2021

Ninguém é uma ilha

Dos tipos nocivos de postagens com filosofia na profundidade de um pires, aquele que incentiva o enclausuramento, a desconfiança e a individualidade são os que vejo com mais frequência e talvez os me irritam mais profundamente.

"Não conte a ninguém seus sonhos"

"O que ninguém conhece, ninguém destrói"

"Só você é responsável pelo seu destino"

"Não dependa de ninguém, lute sozinho"

"Aprendi que não se deve confiar em ninguém"

"Não seja bom com ninguém, pois ninguém será com você"

Essas e outras baboseiras do mesmo gênero são pensamentos extremamente tóxicos, que prestam um tipo de desserviço ao colocar pessoas em permanente defensiva contra outras pessoas.

É um tipo de babaquice que não atende a outro propósito, senão o de promover o enfraquecimento de quem deveria unir forças.

Conte seus sonhos, sim! Se alguém quiser destruí-los, o problema não está em você, está em quem quer destruí-los. Conte seus sonhos para que quem sonha igual saiba que não está sozinho e, quem sabe, vocês se unam para realizá-los, já que dois podem mais que um.

Deixa de ser idiota por achar essa palhaçada de que tu não depende de ninguém, só porque hoje tu tem um salário e paga tuas contas. Tu aprendeu a falar porque dependeu de alguém para te ensinar. Tu cresceu porque dependeu de alguém para te alimentar, te banhar, te colocar pra dormir. Tu estudou porque dependeu de alguém para te matricular. Tu trabalha porque dependeu de alguém para te contratar ou pra contratar o que tu oferece como empreendedor.

Tu não faz porra nenhuma sozinho, a não ser achar que é mais especial que o resto do mundo. Experimenta se isolar sem entregador Ifood para levar tua pizza, para ver se tu não morre de fome. E não vale ser na tua casa, que alguém construiu para ti. Te vira, irmãozinho, constrói teu canto, planta tua comida, costura tua roupa e tenta descobrir se tu ainda vai ter algum sonho para esconder de alguém.

Com esse pensamento estúpido e infeliz de quem vive dentro de si mesmo, você realmente acredita que o resto do mundo te inveja e quer te prejudicar? Fala sério.

segunda-feira, 2 de agosto de 2021

Família tradicional não desfaz sozinha

"Ain, tem que ter muita maturidade para ter uma relação aberta".

"Ain, é preciso ter muita confiança!"

"Ain, só dá certo se os envolvidos forem muito honestos um com o outro..."

Miga, te contar um segredo: maturidade, honestidade, confiança, são requisitos pra qualquer tipo de relação, tá? Se a Sra. é desonesta na sua, talvez o problema esteja em você e não na relação.

O relacionamento aberto é a aceitação do próprio desejo e da própria sexualidade, sem limitar o desejo sentido pelo próprio corpo a regras ditadas por terceiros em uma sociedade que se imiscui na esfera privada do que a pessoa faz consigo mesma. O MEU prazer diz respeito só a MIM e não faz sentido que eu o restrinja apenas porque o OUTRO quer que EU não sinta o prazer que o MEU corpo pode ME proporcionar.

A propósito, o formato monogâmico de relacionamento atende aos interesses do capitalismo, em que a burguesia necessita de formação de um núcleo familiar para procriar e produzir mais trabalhadores para as fábricas continuarem produzindo riqueza para o burguês enquanto o proletário se fode. Não a toa, a mesma sociedade que prega contra o relacionamento aberto também impõe a heterossexualidade como padrão. Porque, como diria Levy Fidelix (que o diabo o tenha) "aparelho excretor não reproduz".

O casamento, a heterossexualidade, a monogamia são instrumentos na mão da burguesia para garantir a perpetuação do capitalismo. Não a toa os veículos de mídia — todos pertencentes a detentores de grandes capitais — veiculam sempre em suas produções televisionadas e cinematográficas, além de campanhas publicitárias, o modelo da família "tradicional": porque precisam de pessoas moldadas dentro dessa cultura monogâmica e heterossexual, para que possam perpetuar mesma organização social existente, acreditando ser "natural" que tenhamos um só parceiro.

"Ain, tenho nojo dessas pessoas."

"Isso é fetiche pra pessoa poder ser puta."

"Melhor ser solteiro, isso não é amor"

"É uma aberração!"

O discurso de ódio, pelo visto não tá só no meio dos bolsominions, né?

Cuidado com o preconceito e entenda que sua escolha pela monogamia foi uma escolha direcionada pela cultura na qual você se insere.

Tá de boa com isso e quer seguir monogâmico/a? Beleza, siga e seja feliz. Mas, não caga regra na relação alheia, chamando de fetiche, desculpa, pretexto, putaria, safadeza, ou o caralho a quatro que o seu preconceito diz que é. Porque ser viado também é tabu. E o ódio que você reproduz ao tachar a relação alheia como aberração é o ódio que você recebe quando dizem que sua orientação sexual também é.

Vá ler Engels e deixe sua mentalidade tacanha de lado.