terça-feira, 31 de janeiro de 2023

Nojo de isentões. Ódio aos indiferentes.

De um lado um sistema no qual 800 milhões de pessoas morrem de fome enquanto alguns concentram as riquezas, gerando desigualdade social, violência e criminalidade. Do outro lado um sistema que pretende socializar os meios de produção para que todos tenham direito à vida digna, moradia, alimentação,saúde, educação e vestuário. Mas, a pessoa moderada jura que todos os extremos são iguais e prefere ficar no meio. O que é o meio? É onde "apenas" 400 milhões das pessoas morram de fome?

De um lado o racismo, que coloca pessoas negras em condições precárias de existência, submetendo-as à violência policial, discriminação salarial, subempregos ou desemprego. Do outro lado, uma luta antirracista que pretende acabar com essa realidade e colocar pessoas de todas as etnias e raças em igualdade de condições de vida. Mas, a pessoa moderada jura que todos os extremos são iguais e prefere ficar no meio. O que é o meio? É onde não se é racista nem antirracista? É ser "apenas" meio racista?

De um lado a LGBTfobia que padroniza identidades de gênero, orientações sexuais e relações afetivas, impedindo que as pessoas vivam as próprias vidas em paz, promovendo assassinatos de pessoas LGBTQIA+. Do outro lado, uma sociedade em que cada pessoa explore suas potencialidades, experienciando seus afetos de acordo com seus desejos, não se obrigando a cumprir um padrão cis-heteronormativo nas suas relações, em busca da própria felicidade. Mas, a pessoa moderada jura que todos os extremos são iguais e prefere ficar no meio. O que é o meio? É não matar gay, mas tudo bem bater?

De um lado o patriarcado, que põe a mulher em papel de subalternidade frente aos homens, fomentando violências das mais diversas, como estupro e feminicídio, além de promover desigualdade salarial e de oportunidades em função do gênero, objetificação do corpo feminino. Do outro lado, um sistema que põe homens e mulheres em pé de igualdade, permitindo que todos, independentemente do gênero, tenham os mesmos direitos e deveres, seja no mercado de trabalho, seja no cuidado familiar. Mas, a pessoa moderada jura que todos os extremos são iguais e prefere ficar no meio. O que é o meio? É ser "apenas" meio machista e se indignar quando mulheres são assassinadas, mas estar em paz quando apanham dos maridos?

Tenho nojo de isentões, e parafraseando Gramsci, tenho ódio aos indiferentes.

sábado, 28 de janeiro de 2023

Violento é o Capitalismo

Hoje participei de uma reunião da UJC Rio de Janeiro , a União da Juventude Comunista do Rio de Janeiro. Não tinha pretensão de abrir a boca num espaço formado por jovens para jovens. Estava quietinho no meu canto, apenas ouvindo o que aquela garotada inspiradora tinha a dizer. Até que um dos presentes falou sobre violência revolucionária. Era sua primeira vez numa reunião voltada a debater os desafios e as propostas necessárias ao avanço do socialismo numa sociedade polarizada entre uma extrema direita e uma centro-esquerda que constantemente faz um afago no neoliberalismo.

Ali, uma dúvida legítima foi levantada e eu não consegui ficar quieto. É muito comum ver pessoas rejeitarem a saída socialista por entenderem-na como violenta e, consequentemente, como uma medida moralmente reprovável. Quem me acompanha já se acostumou a ver que o discurso moralizador sobre a violência é um assunto que me mobiliza com uma certa força. Primeiro porque debater política é debater estrutura social e não moralidade. E depois porque, ainda que estivéssemos sopesando condutas individuais pelo viés da moralidade, a violência revolucionária não apenas não é imoral, como também é legítima.

Pedi licença e expus em três minutos — o tempo de marcação das falas de cada camarada que pedia a palavra — um resumo do que já ando falando há alguns anos: a violência não é um horizonte, mas muitas vezes é o único instrumento do qual dispomos.

Numa fala um tanto quanto atabalhoada de uma pessoa tímida que não tem muito traquejo em falar para coletividade, chamei atenção para o poder da ideologia que nos faz normalizar uma materialidade de opressão que já é extremamente violenta, mas que naturalizamos a tal ponto de a chamarmos de ordem social. E como essa ideologia impregnada na formação da nossa subjetividade nos faz considerar como violentas justamente as medidas que precisamos adotar para fazer cessar essa realidade violenta cotidiana que permite que 800 milhões de pessoas passem fome num sistema que já produz riqueza para alimentar seis vezes a população mundial, que hoje é de oito bilhões.

Enquanto a moralidade dominante insistir em demonizar meu discurso, tachando-o violento e, portanto, contrário ao que é "o certo", não vou me cansar de repetir as ideias que Paulo Freire traz na Pedagogia do Oprimido: a opressão é a relação inaugurada pela figura do opressor e, portanto, só existe porque existe o opressor. A partir do momento que quem lhe deu causa não lhe dá termo, somos nós que devemos fazê-lo, por qualquer método que se fizer necessário.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

Eugenia disfarçada de proteção animal?

Uma dica de sobrevivência aqui rapidinho... não nos iludamos com pessoas que amam bichos, tá? As piores pessoas que conheci na vida amam bichos. Dividi casa e confissões com um suposto amigo veterinário que resgatava cachorros das ruas e colocava para adoção. E de todas as pessoas com quem tive algum tipo de relação, a que mais se aproximou do perfil típico de um psicopata foi ele. Ainda bem que já morreu. Uma das outras piores que conheci chegava em minha casa e sentava no quintal para deixar meus cachorros fazerem a festa. Quando casamos, não durou nem cinco meses e eu espero que morra também.

Quer fazer um teste? Entra em alguma página de extrema direita e vejo os perfis das pessoas que se identificam. Quase todos são protetores de animais. Além do filtro "Força, Chape" na foto de perfil, quase todas as fotos de boné e óculos escuros dentro do carro, outro indicativo pesado de que a pessoa é bolsominion é o suposto amor aos animais.

A impressão que tenho é a de que rola um pensamento eugenista tipo "bichos são melhores que gente, é por isto então que eu vou defender genocídios". Mas, como não poderia deixar de ser, são esses mesmos idiotas que defendem liberação de caça e políticas armamentistas. É claro, bolsominion não tem capacidade cognitiva para juntar 2+2, e não consegue enxergar o mundo por uma visão sistêmica para perceber que as armas e a caça afetarão os mesmos animais que dizem proteger.

Anos atrás adotei duas cachorras das mãos de uma pessoa que tinha um trabalho muito ativo da proteção animal. Quando tínhamos um discurso antipetista, nos dávamos bem. Cortei contato quando vi que meu antipetismo me conduziria à esquerda radical e o dela a levaria à extrema direita. E não, não estou dizendo que ser protetor de animais é necessariamente sinônimo de mau caráter. Mas, pela via inversa, não se pode presumir que por gostar de bichos, essa pessoa seja legal.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

Socialismo é uma utopia?

Em conversa sobre política, uma amiga demonstrou certa resistência ao pensamento revolucionário, questionando se o socialismo não seria utópico demais.

Utopia é definida pelo dicionário Oxford, dentre outras definições, como "lugar ou estado ideal, de completa felicidade e harmonia entre os indivíduos" e como um "projeto de natureza irrealizável; quimera, fantasia". Palavra derivada do grego, formada pelo prefixo de negação "u" seguido de "tópos", que significa "lugar". Utopia seria, portanto, um não-lugar, ou um lugar que jamais existiria.

O século XX foi marcado, após a segunda Guerra Mundial (1939-1945), por uma disputa ideológica, chamada de Guerra Fria, que dividiu o mundo em dois blocos, o bloco capitalista, liderado pelos EUA, e o bloco socialista, liderado pela URSS. O socialismo era um regime em ascensão e sua influência desafiava a burguesia estadunidense e seu projeto imperialista para criação e dominação de mercados. A Revolução Russa, deflagrada em 1917, liderada por Vladimir Ilich Lênin, havia tirado a Rússia, um país de dimensões continentais, de uma condição de pobreza extrema, elevando-a a uma potência mundial capaz de fazer frente a um país como os EUA.

O socialismo foi e é realizável. Se fosse uma utopia, não teríamos tido essa experiência menos de cem anos atrás. Tanto é realizável que encontra resistência até hoje nas sociedades capitalistas, por representar uma ameaça aos interesses da burguesia, o que não aconteceria se fosse uma utopia. Tanto é realizável que resiste às ofensivas burguesas até hoje em Cuba e na República Popular Democrática da Coreia, constantemente ameaçadas por políticas genocidas promovidas pelo capital, através dos embargos econômicos e ameaças bélicas.

É incrível o poder que a ideologia exerce sobre as pessoas que nela estão imersas. Utópico é quando insistimos que somos todos iguais em um sistema que depende da desigualdade para se manter. Utopia é a democracia liberal capitalista, que, por se pautar na exploração do trabalho de uma maioria e na acumulação de capital por uma minoria que dita as regras, torna-se irrealizável. Utopia é dizer que todos temos liberdade de expressão ou liberdade de ir e vir, enquanto pessoas nas periferias mal têm o que comer e têm suas casas invadidas pela polícia. Utopia é dizer que todos temos o mesmo direito à vida, mas as balas perdidas são sempre e somente encontradas por corpos pretos nas favelas.

O projeto liberal, sim, é uma utopia. Mas, estamos tão inseridos nele que somos incapazes de questioná-lo, aceitando-o passivamente enquanto chamamos de utópica uma realidade que já se materializou e que foi — e ainda é em alguns lugares — tão concreta a ponto de ser constantemente sabotada. E sabotada pelo capitalismo, que é o sistema de produção pautado nas ideias liberais.

terça-feira, 17 de janeiro de 2023

Não morreu. Que pena!

Nesta semana um amigo me mandou uma imagem onde estava escrito "a monogamia está morta?". Imediatamente respondi "infelizmente não". Não monogâmico há quase uma década, houve um período em que eu dizia, no mais alto engodo liberal do respeito às liberdades individuais, que não via nenhum problema na existência da monogamia, desde que cada um vivesse suas relações em paz. Claro, o pensamento típico de quem acredita na individualização das condutas e ignora as estruturas sobre as quais uma sociedade se mantém.

Hoje, vendo a monogamia como uma dessas estruturas de dominação a serviço do capital, sendo uma forma hegemônica de relacionar-se, penso que se trata de um sistema de regras que precisa ser abolido. A monogamia se pauta no domínio de corpos, na concorrência, na competição, exatamente como são as formas do capital, além de perpetuar o ideal de família de tradicional, que nada mais é senão uma forma de produção de mão de obra para alimentar o capitalismo, não sendo plausível a sua manutenção enquanto elemento estruturante desta sociedade nociva.

Então, mantenho hoje meu posicionamento de que a monogamia, como um sistema hegemônico de relações, apropriado pelo capital, constituído desde então para ser uma fábrica de trabalhadores, pautado na ideia de que o ser humano é uma mercadoria, é uma mazela, sim, e que passa da hora de ser destruída.

domingo, 15 de janeiro de 2023

Linguagem neutra, opressão de gênero, feminismo, banheiro unissex e o Mês da Visibilidade Trans

Recentemente, no final do ano passado, participei de um debate com uma pessoa que se descreveu como “feminista, em algum nível identificada com o feminismo radical”. Por suas colocações no debate, sugeriu que existem duas formas de opressão distintas: a opressão de gênero e a opressão de sexo, apontando para o fato de que pessoas que possuem órgão genital masculino gozam privilégios na sociedade, a despeito do gênero com que se identificam. Em alguns momentos, no entanto, minha interlocutora estabelecia sinonímia entre sexo e gênero, e em outros momentos, apontava a distinção entre os dois eixos, mas ainda assim sustentava que ambos proporcionavam um tipo de opressão.

O debate havia iniciado por causa de uma conversa sobre o uso da linguagem neutra, apontado por minha interlocutora como algo desnecessário, do que eu discordei, embora reconhecesse que muitos debates sobre o tema e muitas formas de utilização acabam esvaziadas de sua importância por conta de banalizações no uso indiscriminado, inclusive em tom de ironia ou crítica. A partir daí seguiu-se uma longa conversa sobre pessoas trans, falocentrismo, banheiro unissex, transfobia, opressão de gênero e feminismo.

A conversa se constituiu por áudios da parte da minha interlocutora e textos da minha parte. Os áudios, muitas vezes estendiam-se para longas tergiversações que, se transcritas literalmente, podem alongar demasiadamente o texto, que já não está curto, dadas as minhas respostas escritas sempre muito prolixas em minha tentativa de demostrar minuciosamente os processos explanados. Assim, não trago a transcrição de todas as suas falas, mas trouxe algumas de suas considerações, ora transcritas em primeira pessoa na forma como foram ditas, ora citadas como discurso indireto. Vale mencionar, que tive vantagens na elaboração das minhas respostas, visto que esse diálogo aconteceu com minha interlocutora tendo gravado uma série de áudios em aplicativos de mensagens, totalizando cerca de meia hora de explanação; por ter me ocupado subitamente, falei que iria ouvir com calma e responder em momento seguinte. Assim, tive tempo para elaborar minhas respostas e enviar para ela, o que pode gerar a impressão de que eu lidava com uma pessoa despreparada. É preciso considerar que enquanto eu respondi em tempo posterior, tendo vantagem de ordenar as ideias, minha interlocutora falava no calor de uma conversa informal. Vale mencionar ainda que eu editei algumas das minhas próprias respostas para este texto.

Achei importante trazer aqui minhas considerações, uma vez que janeiro é o mês de visibilidade de pessoas transexuais e precisamos falar sobre o assunto se quisermos desmistificar preconceitos e inverdades que alimentam ódio e discriminação.

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“Eu respeito enquanto homem biológico ou mulher biológica (...) e não pelo que você quer ser” “Eu respeito o que você queira performar”

Gênero é social e não biológico. Trans identidade não é questão de querer. E se forma a partir das categorias preexistentes socialmente. O não binarismo é uma não identificação com alguma das categorias postas, mas que não pensa em outra para colocar no lugar. Isso se não considerarmos o próprio não binarismo já como uma categoria.

“A palavra ‘mulher’ vem sendo apagada (...) Agora se fala o “dia das pessoas que engravidam”, “pessoas que menstruam”, “pessoas com útero” (...) estão se apropriando de coisas intrínsecas nossas [das mulheres]”

O que é “intrínseco nosso”? O que delimita os contornos de uma categoria sociológica? O que é um homem? O que é uma mulher? É quem gosta de maquiagem, boneca, vestido etc.? A categoria se define, portanto, pelos marcadores sociais a ela atribuídos? E esses marcadores são imutáveis em épocas? Em lugares? Como então explicar que homem no Brasil em 2022 não usa maquiagem, mas homem na França no século XVIII usava? Maquiagem é intrínseco a ideia de homem? Ou de mulher?

“O não binarismo é igual o feminismo, só que faz uso de tudo que não é masculino sem querer se atribuir a ele o caráter de feminino...” [em um momento, minha interlocutora também havia questionado retoricamente se futebol seria coisa de menino e maquiagem seria coisa de menina e se isso seria suficiente para definir gênero]

Nesta fala, você usa exemplos factuais como “maquiagem e futebol”, para delimitar o que é gênero feminino ou masculino, e com isso, reforça exatamente o estereótipo que está sendo questionado sobre o que é ser homem e o que é ser mulher. E novamente, ignora que a identidade do sujeito se estrutura a partir de categorias preexistentes a ele. O sujeito nasce num mundo já estruturado e que o determina a partir dessa estrutura. Se quando nascemos, recebemos uma bandeja com A, B e C pratos no cardápio, não teremos de pronto a ideia de X ou Y como opções possíveis para pedirmos, e embora rejeitemos as opções que nos foram dadas, não criamos ainda novas categorias que nos abracem e não sabemos então que podemos pedir X e Y. É por isso que todo debate precisa ser levantado quando se abre um questionamento acerca do que está posto. Do contrário, a sociedade não evolui; a categoria homem e a categoria mulher são suficientes para nos definir? Quando assume que não binarismo é tão somente a negação do “masculino”, você cria um conflito lógico: você tenta criar uma ideia estruturada sobre outra, partindo da negação dessa mesma ideia que a estrutura. O não binarismo é justamente o questionamento do sistema binário homem-mulher, e negar legitimidade a este questionamento, apontando-o como unicamente uma negação da parte “homem”, primeiro, esvazia a própria noção de “mulher”, tornando-a um mero corolário de negação da ideia de “homem” (ou seja, tudo que não é homem/masculino, automaticamente passa a ser mulher/feminino), e segundo cria essa tautologia mencionada como problema lógico, resumido assim: “não se pode questionar o sistema binário homem-mulher, porque só existe homem-mulher, e o que não for homem, será automaticamente mulher”. A própria criação de uma categoria própria, “não-binárie”, apartada das categorias “homem” e “mulher”, já é fruto de uma dinâmica social que questiona as categorias anteriormente postas.

“E muitos homens se apropriam desse papo de não-binarismo”

Sim, apropriam-se, e isso deve ser denunciado, enfrentado, combatido, porém isso é um eixo diverso do eixo de discussão sobre formação de identidade cisgênero ou transgênero. Deixar de considerar um questionamento porque alguém fará mau uso dele é negar a existência de um problema (e consequentemente, abster-se de buscar soluções) por causa de outro problema que não é inerentemente sua causa, embora esteja por ela atravessada de alguma forma, mas como incidente, não como intrínseca. Há uma relação oportunista, e não de causa e consequência.

“Não é porque você se identifica com algo que você é algo. Porque existe a biologia, (...) a gente tem macho e fêmea, só que a sociedade criou estereótipos para esse macho e para essa fêmea. Um homem quem se diz não binário (...) Eu, por exemplo mergulho por três minutos sem respirar debaixo d‘água, um tempo superior à média, então eu sou um peixe?”

Novamente a confusão de conceitos: estamos falando de “homem”, conceito social relativo ao gênero e sua identidade, ou estamos falando de “macho”, conceito biológico para diferenciar quem tem um aparelho reprodutor masculino? O exemplo do peixe não é análogo à questão de identidade de gênero. Peixe é uma categoria da biologia. O conceito “peixe” abrange diversas características que lhe são elementares para que um animal seja assim considerado, não bastando que este animal passe três minutos sob a água, como você passa. Para contrapor à ideia “peixe”, que é referente a todo um grupo de animais, devemos usar a categoria que lhe seja equivalente no mesmo campo de análise. E aqui o que se vai é exatamente questionar quais elementos constituem a ideia de “peixe” para que possam se enquadrar no conceito; no mesmo campo de análise, a biologia, poderíamos discutir, por exemplo quais seriam os elementos constitutivos da ideia de “mamíferos”, comparando os conceitos, e estabelecendo suas relações. Não se contrapõe uma categoria biológica com uma categoria social. E no caso, ainda usando o exemplo “peixe”, se uma coisa para ser definida biologicamente como peixe precisa ter tais características, de tal forma que qualquer animal que tenha tais características possa ser enquadrado como peixe, quais são as características inerentes à categoria “homem” ou à categoria “mulher”, para que possamos enquadrar alguém dentro destes conceitos? É ter um órgão específico? É a equivalência com seu suposto correspondente biológico? Quem estabelece que maquiagem é coisa de menina e futebol é coisa de menino?

A sua fala explicita o próprio problema: a sociedade impõe aspectos sociais a conceitos biológicos, criando uma falsa correspondência entre sexo e gênero. “Olha que bonitinho, nasceu com pintinho, é o HOMEM da casa agora”, diz a vovó orgulhosa, cuja fala ainda é complementada pelo papai vaidoso, educado na mesma estrutura patriarcal que aquela criança receberá como dada: “fiquem em casa, meninas, porque quando crescer, esse garotão vai ser terrível!”. Pronto, tarde demais, começaram os marcadores sociais a partir da característica biológica. É exatamente aí que reside a questão: um homem se define pelo seu aparelho reprodutor? O patriarcado já existia no momento em que a criança nasceu. Essa criança vai herdar essa estrutura social e vai se constituir a partir dela. Os marcadores associados ao sexo são colados assim que ela nasce sem que ela tenha qualquer ingerência sobre isso.

“Um homem que se diz não binário não vai abrir mão dos direitos dele numa sociedade machista e patriarcal que nem a nossa”

Estamos falando de privilégio de homem ou privilégio de macho, enquanto conceito biológico? Quem goza os mesmos privilégios é quem “tem pau” ou é quem “é homem”? São sinônimos? Uma travesti goza os mesmos privilégios do homem? Não, não goza. Partindo da sua colocação, eu penso que poderiam até gozar de determinados privilégios de pessoas com pênis (mas, honestamente, aqui eu não consigo pensar em nenhum exemplo desse tipo privilégio), mas não de privilégios de homens, e aqui, novamente, temos dois eixos distintos: falocentrismo/privilégios de macho (categoria biológica de análise) ou machismo/privilégio de homem (categoria sociológica de análise). E aí, eu te pergunto: seu questionamento é sobre um HOMEM que se diz NÃO BINÁRIO? Ou UMA PESSOA COM PENIS se diz NÃO BINÁRIO? São dois problemas que se cruzam, mas não são os mesmos. Ou é homem ou é não binário/a/e. Neste aspecto, tem-se que homem é todo mundo que tem órgão sexual masculino ou homem é quem se enquadra em X, Y, ou Z características socais atribuídas a quem tem tal órgão? Eu próprio me identifico como homem, mas se me perguntam por que, eu não sei dizer, porque eu próprio não sei o que é ser homem. Apenas aceitei uma das duas opções que me foram dadas quando nasci. O não binarismo é, de alguma forma, a negação disso, mas também a negação do ser feminino, numa ação propositiva para inclusão de uma terceira categoria, ainda ampla, que pode vir a ser desmembrada ou não em outras categorias de análise. A história é quem dirá como esta ciência evoluirá. Igualaremos gêneros em direitos e deveres? Ou extinguiremos a própria noção de gênero para que este deixe de ser um marcador social? Um homem que goza de direitos por ser homem se identifica como não binário ou como homem?

“Se identificar com determinado sexo não te faz daquele sexo. Eu respeito a forma como você quer estar no mundo, mas não respeito a forma de você, como homem, biologicamente macho, que se reconhece como mulher trans, queira frequentar o mesmo banheiro que eu”

Novamente, sexo não é gênero. Sua argumentação entra num looping vicioso, uma vez que em momentos você fala de gênero e sexo como sinônimos, em momentos você fala como diferentes. Ou você está falando de um homem ou está falando de mulher trans. Se a premissa da qual você parte é de que homem é sinônimo de biologicamente macho, então não há qualquer coisa aqui para que eu diga, porque a minha premissa é outra. Nosso debate se encerra aqui. Até porque eu não vou me aventurar a tentar desconstituir o seu ponto de partida. Mas, se estamos ambos partindo do pressuposto de que ter pênis não é ser homem, aí eu novamente percebo que você traz a discussão em dois eixos: o eixo do gênero e o eixo do sexo. Cruzam-se? Sim, o tempo todo. Mas, são a mesma coisa? Não, não são. E aí, eu entendo que você tem dois pontos de partida, de acordo com cada interesse defendido:

1. Homem é quem tem pênis. Logo homem é igual a macho.

2. Homem é conceito social que não é a mesma coisa que macho, logo homem não é quem tem pênis.

E aí, diante disso, fica a questão: o critério para separar banheiro é ser homem ou é ter pênis? Se para você, forem a mesma coisa, você deslegitimará o processo de formação de identidade de pessoas trans, que é justamente a negação de uma correspondência forçada socialmente entre gênero e sexo. Isso para mim é transfobia e é justamente o que eu combato. Se forem para você coisas distintas, então se cria um outro problema, que é o critério de exclusão ou inclusão em banheiro, em esportes, ou no que for: separamos times de futebol e banheiros por critérios sociais, tipo meninos x meninas, ou por critérios biológicos, tipo pessoas com pênis x pessoas com vaginas. E aqui a gente volta à questão da terminologia: mulheres x pessoas com útero; homens x pessoas com pênis. Qual será o critério para se nomear a categoria que se está analisando? Se de fato existirem violências marcadas pelo sexo – estou assumindo como existentes, visto que você assim disse, e a minha ignorância sobre sua existência não me legitima a negá-la – podemos pensar em novas formas de políticas de inclusão e proteção, seja de mulheres, seja de pessoas com genitália feminina. Banheiros devem ser separados por sexo para evitar violência decorrente do falocentrismo? Devem ser separados por gênero para evitar violência de gênero? Enfim, desafios para pensarmos um futuro inclusivo e diverso.

“Os movimentos transativistas, ao invés de irem atrás de quem realmente os mata, de quem realmente os oprime, que são os homens, descontam sua raiva nas mulheres”

Que movimentos são esses que você menciona, que só perseguem mulheres? É um grupo geral e homogêneo onde se encontram todos os movimentos transativistas? Que movimentos são esses que atacam o sujeito em vez da prática? Eu realmente não conheço. Não estou dizendo que não existem, mas sim que desconheço os que eventualmente existirem. E se de fato existirem, do que eu não duvido, não compactuo com eles. Movimentos que eu conheço não combatem o indivíduo, e sim a estrutura. Não é combater homens ou mulheres, mas sim combater patriarcado, machismo, LGBTfobia. Não se trata de enfrentamento pela seara moral, não se trata de dizer que o João ou o José é malvadão e deve ser enfrentado porque ele pratica um machismo que é feio. No caso em exemplo, não se trata de perseguir ou não homens que praticam discriminação deliberada a pessoas transexuais. Embora, devam também passar por isso, mas, não se constituem apenas dessa forma. Trata-se, antes, de combater a naturalização de práticas reiteradas ao longo dos tempos que se estabeleceram como normas a passaram a constituir uma determinada estrutura sobre a qual se organiza a sociedade. Tais práticas são reiteradas consciente ou inconscientemente, com ou sem intencionalidade, e independentemente de serem ou não intencionais, devem ser coibidas, tanto se forem praticadas por José quanto por Maria. É essa a luta com a qual eu me alio. Então, os movimentos que conheço questionam essas práticas, para que sejam derrubadas, modificadas, erradicadas. Uma das práticas: impor ao indivíduo uma identidade atrelada ao órgão sexual com que nasceu. Outra das práticas: negar a autoidentificação como critério definidor de identidade. E os movimentos que conheço fazem isso. Não tenho nenhuma base para falar dos movimentos que você traz como exemplo, e vou até me informar sobre eles, até mesmo para poder me aliar a você e reproduzir a sua crítica a esses movimentos que enfrentam mulheres e ignoram homens como sujeitos das opressões.

[Num determinado momento do debate, minha interlocutora mencionou um exemplo de um campeonato de videogame, no qual as três finalistas na categoria feminina eram mulheres trans; com isso, ilustrava sua ideia de que homens se apropriam de competições no lugar das mulheres, roubando-lhes até a oportunidade de vitória. Mostrou uma imagem de três mulheres trans com baixa passabilidade cis, usando este fato como justificativa de que se tratavam de homens] “A categoria feminina teve três pessoas que venceram e as três pessoas eram machos (...) É uma galera que se aproveita de uma pauta para tomar lugar de mulheres”

Você realmente acredita que um homem aceite carregar todos os estigmas sociais decorrentes da ruptura com o gênero imposto socialmente por causa de campeonato de videogame? Você realmente acha que essas pessoas estão fingindo ser mulheres para ganhar campeonato na categoria feminina? É possível? É. É pouco provável? Também. Eu acredito nisso? Não, não acredito. E não vou fazer qualquer tipo de afirmação, mas vou levantar algumas conjecturas. Algumas possibilidades que não devem ser descartadas, lembrando que estamos tratando aqui de um casuísmo, e que não necessariamente reflete uma teoria geral. Mas, vamos lá, na nossa sociedade quem costuma ser socializado para jogar videogame? Meninos ou meninas? Ou ambos? Não tenho dados estatísticos, mas falo pela observação de um campo limitado, concentrado ao meu redor. Conheço pouquíssimas meninas/mulheres que gostam de games, conheço muitos meninos/homens que gostam. O que me faz pensar que talvez games sejam “coisas de menino”. Premissa 1 estabelecida, reserve essa informação. Passemos à premissa 2: a maioria das pessoas trans descobrem, discutem, apresentam, resolvem, seus conflitos de identidade a partir da adolescência, quando marcadores sociais de gênero falam muito alto e impõem mais distinções entre si. Mulheres trans, tendo sido socializadas como meninos na infância, tendem a ter mais contato com “coisas de meninos” do que mulheres cis, socializadas desde pequenas com “coisas de meninas”. Podemos então considerar aqui uma maior chance de “meninos” que posteriormente se descobriram como mulheres trans terem tido contato com jogos de videogames enquanto crianças e terem crescido mais perto desse universo do que mulheres cisgêneras. Quais as idades dessas moças trans que venceram a categoria dos jogos? Parecem jovens, na faixa dos 18 aos 20 e poucos anos. Novamente, conjecturando dentro de possibilidades, parecem-me pessoas que estão na idade de quem iniciou o processo de transição há muito pouco tempo e que por isso mesmo, estão ainda tão próximas dessa performance “masculinizada”, ou, como prefiro chamar, com tão pouca passabilidade cis. Há homens que se apropriam de pautas feministas para tirarem vantagem? Sim. Há homens que se apropriam de pautas pró-LGBT para tirarem vantagem? Sim. Mas, isso é uma questão incidente, não devendo ser tratada como necessária ou como uma relação inevitável de causa e consequência. Oportunismo existe e deve ser combatido através de mecanismos outros que não importem no esvaziamento de pautas antiopressão. Uma vez que eu parto da premissa de que a cultura do estupro existe porque há uma forma de estruturar a sociedade que mantém essa cultura, será essa forma de estruturação que entendo que deve ser combatida. Separar banheiros pode até impedir que esses abusos ocorram nos banheiros. E só. Não impedirá que os abusos que seriam praticados nos banheiros passem a ser praticados em quaisquer outros lugares. Separar banheiro por gênero garante que esses abusos deixem de existir? E separar por órgão sexual deixará? E não separar? A questão aqui não é só ter ou não ter banheiro unissex, mas, ter ou não ter uma separação por gênero condicionada à existência de um órgão sexual. Aqui reside o cerne da questão. Se não for no banheiro, será na vaga de emprego, será no esporte, será na quantidade de violência que cada grupo sofrerá unicamente por ser determinado grupo. E se mulheres ficam restritas à periferia social no reconhecimento dos seus direitos, alijadas da isonomia por terem sido sempre empurradas para a condição de inferiorização decorrente do seu gênero, a questão será social e decorrerá diretamente da forma como dispomos de categorias sociais como homem, mulher, não-binarie etc. Agora, se pessoas com aparelho reprodutor feminino – homens ou mulheres ou quaisquer outros gêneros que venham a ser considerados – são discriminadas em prol de pessoas com aparelho reprodutor masculino – homens ou mulheres ou quaisquer outros gêneros – a questão será ainda social, mas decorrerá diretamente da forma como lidamos com categorias biológicas.

“Se você é mulher, biologicamente falando, e se reconhece como um homem (...)”

Então não é mulher, é homem.

“(...) então você desde já assume que você está se rendendo aos padrões que o patriarcado e a sociedade te impõem, correto?”

Não, é o contrário disso. A pessoa que se recusa a aceitar o gênero que lhe foi socialmente imposto por causa do sexo com que nasceu está resistindo ao padrão socialmente imposto. Porque o padrão é estabelecer uma relação condicionante necessária entre sexo e gênero (se você tem TAL SEXO, logo você tem TAL GÊNERO). O que ela pode estar fazendo é reconhecer a existência de categorias sociais que foram postas por quem teve poder político para pô-las como dadas. E só. A pessoa reconhece que existe homem e existe mulher. Mas, também reconhece que deveria existir algo mais que não fosse limitado a homem e a mulher, justamente por reconhecer que essas categorias existentes não são suficientes para abranger as características que a pessoa traz em si. É a sua subjetividade. É a sua forma de se ver no mundo, autodeterminando-se a partir das categorias que lhe foram postas. E essa forma pode ser assimilando quaisquer dessas categorias e a relação estabelecida entre a as categorias sociais e as biológicas, como eu fiz ao me reconhecer como homem, tendo aparelho sexual masculino, e você fez ao se reconhecer como mulher, tendo aparelho sexual feminino. Pode também ser recusando as relações socialmente impostas, embora aceitando as categorias postas, como o faz quem se reconhece como homem, ainda que tendo aparelho sexual feminino, ou quem se reconhece como mulher, ainda que tendo aparelho sexual feminino. E ainda, pode ser negando as categorias sociais, tanto quanto as relações estabelecidas entre elas e as categorias biológicas, buscando uma terceira opção ainda não existente socialmente porque não foi anteriormente pensada, estudada, analisada... O não binarismo é uma forma de negar as categorias homem e mulher para se definir.

“Ser mulher não é gostar de ter unha grande, é muito além disso, assim como ser homem.”

Eu concordo plenamente com você, mas aqui você se contradiz porque volta a estabelecer que mulher e homem não se definem pelo sexo biológico, mas por características outras, socialmente estabelecidas. E quais são elas? É aqui que eu me perco quando tento estabelecer os contornos do que são homens e mulheres. Eu não sei dizer. Não sei quais são. E por não saber quais são, por não ter o poder de definir eu mesmo os critérios para que alguém se enquadre como homem, como mulher ou como não binárie, eu apenas aceito o critério da autodeterminação. Até que alguém me convença do contrário. Se você se diz mulher, então para mim você é mulher. E me basta. E autodeterminar-se não é querer. Não se trata de querer ser homem, ou querer ser mulher. Trata-se de se enxergar no mundo desta forma, por ter uma subjetividade moldada em um campo do inconsciente, muito mais profundo do que o campo da mera escolha.

“Não se entende muito bem por onde a masculinidade é apropriada, porque não é pelo falo, porque se fosse, as mulheres trans seriam respeitadas, mas elas não são. Existem mulheres que performam uma masculinidade muito grande, mas não tem falo, e mesmo assim, elas não são respeitadas pelo macho. Então, a masculinidade deriva propriamente do que? De onde vem o amor que o homem hétero sente pela própria raça? (...) O homem gosta de homem, ele não gosta de mulher”

CONCORDO EM GÊNERO, NÚMERO E GRAU COM VOCÊ, e continuo entendendo que aqui que você ainda continua se contradizendo. Porque aqui você está falando exatamente o mesmo que eu: não é falo que define o gênero. E quando mulher trans é discriminada, o falo não a protege dessa violência. A violência é de gênero, não de sexo. Quando uma mulher performa uma “masculinidade” e continua não sendo respeitada por ser uma mulher, é justamente o seu gênero o alvo. Quanto a homens trans que continuam sendo desrespeitados enquanto homens, porque são vistos como mulheres, isso reforça exatamente o problema que eu estou colocando no foco desde o começo: o de que a sociedade cria uma relação necessária entre sexo e gênero. E lutar para garantir a autodeterminação como critério de identidade é negar à relação entre sexo e gênero uma inevitabilidade. E é por isso que defendo a linguagem neutra. Porque a partir dela deixo de impor resistência à inclusão de uma categoria de análise que não me abarca. E este movimento me põe no lugar de quem se reconhece como integrante de uma categoria socialmente validada, a de homem, mas que também reconhece a necessidade de se validarem categorias outras. O que eu sou não deve ser a régua que mede o mundo. É confortável estar na pele de um homem cisgênero e quando me coloco na posição de não ser obstáculo à criação de um gênero diferente do meu, estou facilitando a sistematização das análises feitas a partir de tais categorias. A teoria criada a partir de uma materialidade até então não sistematizada por diversas razões, dentre as quais a falta de uma linguagem para determinar com precisão o que se pretende definir, poderá, em uma dinâmica dialética, permitir a criação de condições existenciais para grupos hoje marginalizados, que não se enxergam como pertencentes a nenhuma das categorias que estão postas hoje.

Sobre “homem gostar de homem”, só posso concordar. Já vi alguns textos sobre essas relações, de que homens só verem mulheres como objeto sexual, mas que afetivamente estão sempre se relacionando com outros homens e colocando as mulheres em posição de subalternidade. Concordo. E não vejo aqui como essa questão impacta como tudo que estamos debatendo. Novamente, enxergo como uma questão estrutural que põe mulheres numa condição de subalternidade. Mas, se estamos falando de homens e mulheres, não estamos falando de órgão sexual masculino ou feminino.

“Eu acredito que [a linguagem neutra] seja para acariciar ego. Se você não se identifica com nenhum dos dois e você quer que seja criado só porque você quer um terceiro pronome (....)”

Novamente, a formação de identidade não é um mero querer. Isso é um dos meus pontos de partida. Não estou estabelecendo uma relação de equivalência entre identidade e vontade. Eu SOU aquilo com que me identifico. O que eu QUERO SER é exatamente o que não sou. A formação de identidade é percepção e não escolha. O indivíduo se percebe de determinada forma, a partir de fatores interpessoais, intrapessoais e culturais. E faz parte desse processo a comparação com o outro. Quanto mais desenvolvida essa percepção, mais facilmente o indivíduo se reconhece. E a linguagem será uma das ferramentas pelas quais nós, que já nos percebemos e nos sentimos pertencentes, poderemos contribuir do nosso lugar privilegiado para que outras pessoas também se sintam pertencentes à sociedade que até então as exclui quando lhes retira a própria identidade por tentar encaixá-la em conceitos metafísicos e abstratos, prontos, dados, e que não lhe abraçam. Querer é outra coisa. E claro, haverá situações em que não saberemos se a pessoa está apenas “querendo ser” ou se está “se identificando como”. Mas, vamos negar a identidade de X, Y ou Z para impedir que A, B e C se beneficiem de alguma forma, fazendo com que um grupo inteiro seja prejudicado pelo oportunismo de uns poucos? Ou vamos incluir uma nova forma de pensar pessoas, incluir uma nova forma de linguagem, incluir uma nova forma de trazer mais gente para o seio da sociedade, ainda que isso permita uma ou outra pessoa tirar vantagem disso? Eu fico com o benefício da dúvida, e opto por mudar a linguagem, mudar o pronome, acrescentar um novo gênero, mudar a forma de chamar as pessoas. E se alguém estiver tirando proveito disso, nós deveremos estudar novas maneiras de fiscalizar e impedir essas pessoas. Evidentemente, novas formas de opressão poderão advir de uma nova configuração de sociedade. Categorias que são hoje inexistentes e que poderão passar a existir quando forem materialmente verificáveis, mas ainda não teoricamente sistematizadas. É assim que a ciência avança e negar a criação de novas categorias de análise porque pautamos o mundo com base na nossa vivência de mundo é uma forma de negacionismo científico com a qual eu não compactuo. E estamos falando de ciências aqui, já que ciências sociais também são ciências.

“Vitão” [minha interlocutora falava sobre homens heterossexuais que atuam com performances socialmente lidas como femininas ou não binárias, usando o exemplo do cantor Vitão, supostamente para ilustrar exemplos de apropriação oportunista de pautas de opressão por homens cisgêneros heterossexuais]

Pessoa de 23 aninhos. Em entrevistas relativamente recentes, do meio desse ano, já disse que sempre se viu como homem hetero, mas que estava se descobrindo de outras formas, sem saber exatamente como se encaixar. Pausei para pesquisar agora. Em entrevista de maio de 2022, ao Portal Popline ele fez essa declaração: “Não sei exatamente onde me encaixo. Até então sempre me vi como homem hétero, sempre gostei de mulheres (...) tenho me entendido de outras formas, me relacionado com pessoas diferentes e é muito disso”. Essa fala dele reforça um pouco algumas das coisas que apontei aqui, como o processo de formação da identidade estar relacionado à percepção de si, mediada pela percepção do outro, e por um processo comparativo a partir das categorias que lhe são dadas. O sujeito tinha um leque de escolhas que lhe foi jogado na cara, deveria se encaixar na caixinha “homem” ou na caixinha “mulher”, passou infância e adolescência tentando se encaixar até que percebeu que talvez não pudesse. Sua percepção de si como um homem hetero talvez tenha acontecido unicamente porque não lhe fora dada uma opção diferente. Até que ele chegou a uma idade em que possa ter percebido que aquelas caixinhas que lhe foram entregues não lhe cabiam. Quanto de sofrimento vivencia uma pessoa que busca se encaixar? Só posso falar sobre o meu sofrimento ao tentar me encaixar na condição de homem hétero unicamente por desconhecer uma forma diferente de ser homem gay que me garantisse uma existência com dignidade reconhecida. Sabia que havia formas diferentes de ser homem, uma delas é ser um homem gay. Na minha infância e na minha adolescência, identifiquei-me como tal, desejando exatamente não ser. Porque eu simplesmente desconhecia que homem gay poderia ser uma forma digna de existir. Minhas referências foram todas de gays ridicularizados por discursos e imagens estereotipadas que via na TV, na escola, na rua. Eu desconhecia o desdobramento possível da categoria “homem gay” que não fosse para me inferiorizar. E assim, sofri por desconhecer qualquer forma diversa de ser gay no mundo, que não fosse ser objeto de riso, de ridículo, alvo de agressão. Talvez tivesse sido diferente se quando criança eu tivesse sido apresentado a outras formas de ser gay no mundo. Eu não sei o impacto que terá para uma pessoa não binária ver-se num texto que traz naturalizado o gênero neutro. Sei que quando me chamavam pelo feminino eu me ofendia, sei de uma amiga alta que, por sua altura era chamada de “Sandrão”, e se ofendia porque entendia que “Sandrão era nome de sapatão” (aqui já havendo uma inferiorização da própria condição de “sapatão”, tomada automaticamente como ofensiva). Estamos falando dos anos 90. Se eu conheci na pele essa forma de me sentir desrespeitado unicamente porque não usaram comigo um pronome com o qual eu me identificava; se eu conheci uma mulher que se ofendia porque não usavam com ela um pronome com o qual ela se identificava; por que então irei negar a quem não se enxerga como um gênero ou como outro o direito de sentir o mesmo pertencimento que me fora sonegado e cuja dor eu conheci, apenas por que o português que estudei trazia dois artigos de gênero? O que custa colocar um E no lugar de um A ou de um O?

“Transativismo é nocivo para crianças”

Por quê? Eu devo partir do pressuposto de que existe uma pauta moral conservadora, que é a adequada para crianças, dentro da qual está ok mostrar que existem pessoas cisgêneras, mas não está ok mostrar que existem pessoas transgêneras? Só por que pessoas transgêneras subvertem a ordem posta? Assumir isso é assumir que a sociedade deve ser estática e que qualquer transformação social deve ser evitada. Isso nos obrigaria a aceitar o status quo do machismo, do racismo, da homofobia, da transfobia, do capacitismo, do etarismo e de diversas outras formas de organizar a sociedade a partir de discriminações que não deveríamos questionar.

“Não venha tirar meus direitos. (...) Banheiro feminino é uma conquista feminista. Uma galera teve que morrer para ter banheiro nosso, para ter nossa privacidade. Aí vem um monte de mulher com pinto querendo entrar no meu banheiro. E você vai querer retirar direitos meus, isso eu não vou admitir”

Parece papo de reacionário que acredita que conceder direitos e determinados grupos importa em retirar os seus. E novamente, estamos falando de gênero ou estamos falando de sexo? É o pênis quem estabelece o gênero da pessoa? O critério para separar banheiro é o gênero ou o sexo? Ou ambos?

“Tem mulher trans que é lésbica e isso não entra na minha cabeça”

Temos três eixos distintos que não necessariamente encontram uma correspondência uns nos outros, mas que a sociedade determina que deve haver essa correlação. Orientação sexual, identidade de gênero e sexo biológico. Por inúmeras questões, dentre as quais o próprio patriarcado, criou-se socialmente uma falsa correspondência entre os três eixos, de tal forma que, se você nasceu com aparelho reprodutor masculino, você automaticamente é etiquetado como “homem” e automaticamente é etiquetado como “sente atração por mulher”. Na maioria dos casos essa correspondência encontra lastro na materialidade e talvez justamente por isso tenha sido naturalizada como padrão. O padrão é você ter um útero e automaticamente ser tachada de “mulher”, e automaticamente se estabelecer que “você se atrai por homens”. Na prática não é sempre assim. E essa correspondência entre sexo, gênero e orientação sexual não é inerente. Há homens cis gays, há mulheres trans lésbicas, há homens trans heterossexuais, mulheres trans heterossexuais, e toda uma diversidade de combinações entre esses eixos. É nosso pensamento limitado pela forma como a sociedade nos apresenta esses eixos que dificulta formas diferentes de pensar e nos impede de abrir nossa cabeça para além do nosso lugar de privilégio, fazendo de nós obstáculos à existência plena de pessoas que encontraram uma forma de existir diversa da nossa. Eu quero integrar essas pessoas e não exclui-las.