terça-feira, 31 de março de 2020

Reificação e Abstrações em Pronunciamento Nacional

Res, palavra latina para designar "coisa", da qual se originaram várias expressões em português, como "rês", que significa cabeça de gado, "reivindicar", formada pelos radiciais "res" (coisa) e "vindicare" (vindicar, reclamar pra si); e "reificar", que significa "tornar coisa" ou "transformar em coisa".

O processo de reificação da pessoa atende aos interesses do capitalismo, quando trata o ser humano somente como coisa necessária à manutenção da cadeia de produção. É o processo pelo qual o ser humano passa a ser tratado como uma coisa, uma peça de uma engrenagem, facilmente substituível para manter todo o sistema funcionando.

O pronunciamento do presidente Jair Bolsonaro, transmitido hoje em rede nacional, mais uma vez, visa a levar a desinformação às pessoas, reforçando seu discurso reificador. Em sua fala de aproximadamente sete minutos, utilizou trechos do pronunciamento de ontem do diretor da Organização Mundial da Saúde, Tedros Adhanom, no qual este teria fomentado o fim do isolamento social, orientando o retorno da população às atividade comerciais, a fim de manter a economia em funcionamento.

Não nos enganemos com o tom supostamente conciliador e moderado do Presidente, haja vista que, deliberadamente omitiu outro trecho da fala de Tedors Adhanom, retirando do contexto o excerto utilizado em seu pronunciamento, pelo qual o Diretor da OMS cobra a responsabilidade dos Estado pela assistência a ser prestada às pessoas mais vulneráveis, que terão sua movimentação restrita pelas medidas de contenção da pandemia.

Jair Bolsonaro segue coisificando o ser humano ao estabelecer que a cadeia produtiva não pode parar. A reificação na fala do presidente não deveria ser surpresa paa ninguém, considerando-se seu histórico de quem já mediu peso de pessoas negras em arrobas, medida utilizada para gado (ou rês).

O Presidente que falou em campanha que mulheres são frutos de uma fraquejada e que índios não ganharão um centímetro a mais de terras, comparando-os a animais em zoológico, há muto tempo adotou a reificação em suas falas públicas, como quando deu de ombros diante da possibilidade da morte de idosos pelo Covid-19, atestando com indiferença que seria apenas um mal necessário. Velhos não produzem. Velhos não são força de trabalho. Velhos são apenas despesas para o Estado, obrigado a lhes prestar assistência social mediante benefícios como aposentadoria, criando rombo em uma previdência já supostamente quebrada.

Puxou a sardinha para o Planalto ao dizer que garantiu benefício de R$ 600,00, o que só foi possível por causa da oposição no Congresso. Um pronunciamento irresponsável disfarçado de sensatez para dar um "calaboca" em quem lhe faz oposição e fiscaliza dia atuação. Mas, seguimos atentos e captando a falha do seu discurso. A fala dele segue cheia de expressões abertas. "Tomaremos todas as providências", "é preciso nos unirmos para adotarmos medidas", "precisamos garantir o emprego"... COMO, CARALHO? Isso ele não fala.

Jair Bolsonaro segue mentindo em cadeia nacional ao ocultar deliberadamente a fala do Diretor da OMS que cobra medidas dos países para combaterem a situação de vulnerabilidade de trabalhadores informais. Sua irresponsabilidade e crueldade permanecem em seu discurso quando diz que "temos que pensar nos mais vulneráveis" e transfere a esses mesmos os ônus decorrentes de suas condições econômicas, insistindo em falar de forma abstrata que "devemos nos esforçar para preservar empregos", finalizando que "os efeitos colaterais das medidas de combate ao coronavírus não podem ser piores que a própria doença", sem, no entanto apresentar qualquer medida efetiva e concreta de valorização à vida.

segunda-feira, 30 de março de 2020

Quando o debate público quer virar meme

Tenho visto pessoas de pensamento progressista, que se declaram alinhadas às pautas defendidas pela esquerda, fazendo um uso excessivo de uma ferramenta perigosíssima, bastante utilizada pela direita quando joga para sua plateia. O debate-lacre, pautado, não em aprofundar discussões sobre causa e consequência, mas unicamente voltado a "revelar" incongruências em posturas outrora defendidas pelos seus opositores, comparando-as a suas respectivas posturas atuais.

Nesta esteira, não são poucas as postagens que vejo – e aqui reconheço minha falha, por já ter feito uso da mesma ferramenta – tentando expor contradições dos seus opositores, como aquelas que mostram a inconsistência de quem antes defendia o direito à vida ao brigar contra o aborto, e agora se contradizem ao legitimar a morte de pessoas numa pandemia em prol da economia. Outro exemplo é o dedo apontado na cara de quem agora chama a Globo de golpista e comunista, mas que, quando a mesma Globo manipulava as massas para fomentar o golpe parlamentar que destituiu a presidenta Dilma, davam-lhe credibilidade. E ainda aqueles que riem de quem "acreditou em mamadeira de piroca, mas duvida do Covid-19". Não, gente! Não! Não dá para colocar informação técnico-científica, oriunda de pesquisas sérias, como a pandemia do coronavírus, no mesmo balaio que a lenda urbana do kit gay ou da mamadeira de piroca, criada para manipular os resultados das eleições presidenciais em 2018, como se fossem coisas comparáveis entre si.

Quando o presidente faz campanha baseando-se em idiotices como estas fake news e seu eleitorado lhe dá crédito, o que se está levando em consideração é muito mais o propagador da mensagem que a mensagem propagada em si mesma. Não se trata de dar credibilidade a informações obviamente mentirosas e toscas. Trata-se de dar crédito ao que Jair Bolsonaro e seus multiplicadores espalham. Independentemente do seu conteúdo. Não se trata de dar espaço ao discurso, mas em dar voz a quem o profere. E quem discute simplesmente decidiu eleger como mentirosos os resultados de pesquisas na área da microbiologia e da infectologia. Por isso, não adianta usar como ferramenta de cotejo duas informações que não se correlacionam entre si, e acreditar que, com isto, está se elevando o nível do debate, convencendo seu interlocutor. É preciso ir mais a fundo e buscar formas de demonstrar, não que a mamadeira de piroca é mentira e o Covid-19 é verdade. E sim, que o presidente da república tem interesse em propagar como verdade o que se sabe ser mentira porque, com isto, sabe que está convencendo seu eleitorado a evitar ameaças da esquerda baderneira; da mesma forma, o que devemos é convencer o nosso ouvinte que o interesse por trás do discurso negacionista à ameaça da pandemia é satisfazer as vontades dos detentores de capital, classe privilegiada pela política neoliberal adotada pelo atual governo.

Acho extremamente perigoso fazer do debate público uma tribuna limitada a apontar contradições rasas, sem traçar paralelismos exatos entre as premissas comparadas. Quando um progressista diz que um conservador foi incongruente por condenar o direito ao aborto e não ter qualquer conflito moral ppr condenar à morte quem não interessa para a produção, está colocando em condição de igualdade duas situações que não são semelhantes e comparáveis entre si. A lógica chama isso de falácia da falsa simetria, ou seja, atribuir uma simetria inexistente a situações que não necessariamente são análogas entre si.

A falha desse discurso como enriquecedor do debate pode ser revelada quando invertemos a ideologia de quem o profere, colocando-o do lado oposto. Vislumbre a cena. Você (nós), militante de esquerda, coloca a mão na cintura em um ar desafiador e fala para seu oponente – naquele tom "acabou, Jéssica?" – que é muito irônico que agora chame a Globo de golpista, mas que no passado tenha lhe dado confiança quando se lhe afigurou conveniente. Acredita que, com isso, tenha lacrado, calado a boca do reacinha. Já fez o discurso inverso? Já viu como funciona para o militante de direita dizer que é muito irônico que agora o esquerdopata dê ouvidos à Globo por lhe ser conveniente, mesmo depois de tê-la chamado tantas vezes de golpista?

Assim também é quando dizemos que é contraditório falar em defesa à vida quando os grupos que se posicionam contra o aborto defendem abertamente o envio de 5 a 7 mil idosos e doentes para o cadafalso do coronavírus. Os mesmos pseudodebatedores que ganharam terreno planificando, não somente a Terra, mas também as discussões, dirão que é engraçado como os esquerdistas falam em direito à vida, mas defendem o assassinato de fetos inocentes quando lhes interessa.

Ficou claro o perigo de soltar frase de efeito, apenas com o intuito de jogar para a plateia e criar um tweet genial que possivelmente se tornará um meme? Discutir coronavírus e aborto não deveriam ser postos em pé de igualdade, simplesmente porque não são circunstâncias equivalentes e não guardam semelhança entre si! Da mesma forma que não deve haver qualquer semelhança estabelecida entre a Globo patrocinar o impeachment da Dilma e a Globo divulgar medidas de segurança para a população.

Não se trata de dar ou não ouvidos a uma emissora golpista. Trata-se de saber porque, para essa emissora, foi conveniente promover o golpe em 2016 e porque agora lhe é conveniente endossar as recomendações médicas da Organização Mundial de Saúde, contrariando o discurso do presidente. Trata-se de demonstrar que a Globo atende ainda aos interesses do capital e que, por isso mesmo, esforçou-se para derrubar um governo de esquerda quando a tentativa da conciliação de classes iniciada pelo então presidente Lula não se sustentou durante o governo Dilma. Trata-se de expor que hoje, embora o interesse da emissora continue sendo o do empresariado, não está mais alicerçado no discurso de Jair Bolsonaro, não por causa de sua política neoliberal, mas porque este lhe representa uma ameaça maior em razão de sua hostilidade com órgãos de imprensa e sua aproximação com concorrentes da maior emissora aberta do país, ameaçando seu posto hegemônico.

Esse debate só ganhará corpo quando for abandonada a visão binária de mundo, que insiste em dividi-lo entre bons e maus, mocinhos e vilões, confundindo as mentes das pessoas quando estas deixam de compreender que muitas vezes somos obrigados a lidar com mais de um inimigo e que estes também são inimigos entre si.

Trata-se de demonstrar que defender o direito ao aborto não é um debate sobre a vida, mas uma discussão sobre o direito que as mulheres devem ter sobre seus próprios corpos.

Enquanto nós, que queremos elevar os debates públicos a argumentos sérios, sólidos e fortes para embasarmos decisões sociais, políticas e econômicas, continuamos limitados a usar o "debate-lacre" para fazer bonitinho e "calar a boca do reacinha", esses mesmos reacionários continuarão ganhando terreno falando para seu público cativo, que tem como exemplo de intelectualidade um charlatão como Olavo de Carvalho, e chamam de mito um incompetente como Jair Bolsonaro.

Se não começarmos desde já a falar com nossas bases, e continuarmos pulverizando nossa força na fracassada estratégia de fazer uma frase de efeito para se tornar um meme da estação, não avançaremos no convencimento da sociedade para que nossas pautas sejam ouvidas. Antes, estaremos fadados à ridicularização por quem sequer consegue alcançar nossa crítica. Gente que acredita piamente que não participar de um debate eleitoral, apenas para citar um exemplo, é uma decisão genial digna de um grande estadista. Gente que crê que seu candidato, ao ocultar seu próprio plano de governo e não apresentar qualquer planejamento governamental não está mostrando a própria fraqueza, estupidez e incompetência, mas está pisando em um sistema que se acredita falho e que se deve derrubar. O presidente da frase de efeito é o mito para quem acredita que o debate-lacre encerra discussões e apresenta soluções.

Essa noite tive um pesadelo

Tive um pesadelo essa noite! Sonhei que o mundo virava de pernas para o ar e todas as nossas referências se perdiam. No meu pesadelo, o ser humano vencia a batalha contra a pandemia do Covid-19, mas todos os pilares de uma sociedade normal como conhecemos haviam ruído.

As pessoas aproveitaram o período de quarentena e acabavam revendo seus valores. Todas as pessoas se davam conta de que o coronavírus não era pior que a dengue, que a malária, que o feminicídio, que a desigualdade social, que a concentração de renda, que a exclusão dos mais pobres, que a tuberculose, que a corrupção, que o totalitarismo estatal, que a homofobia, que a transfobia... Apercebiam-se de que a sociedade já era injusta o suficiente e que essa era a normalidade com a qual sempre conviveram e pouco fizeram para mudar.

Vencida a batalha contra a pandemia, as pessoas no meu pesadelo resolviam adotar posturas diferentes do que sempre haviam adotado! Imagina que loucura! Imagina que assustador! O empresário ambicioso se deu conta de que sua exploração da classe trabalhadora de nada lhe servira durante a quarentena, enquanto a economia quebrava. O acumulador se dava conta de que todos os bens acumulados não tinham qualquer utilidade para combater um vírus mortal que se alastrava. Pessoas percebiam que excluir outras tantas em razão da cor da sua pele não fazia qualquer diferença, já que o vírus se espalhava independentemente da quantidade de melanina do seu portador.

O mundo virava de cabeça para baixo e era aterrorizante a forma como as pessoas haviam se conscientizado de que uma produção baseada na satisfação equânime das necessidades do grupo era mais importante que a produção baseada na acumulação por uns poucos, enquanto outros tantos pereciam pela escassez.

Até que eu acordei. Ufa! Era só um pesadelo. Olhei ao redor e vi que tudo permanecia igual. O mundo que eu havia conhecido ainda estava lá, ainda recolhido com medo do vírus, mas, ao menos estava do jeito como o conhecera desde sempre.

Liguei a TV para ver o noticiário e, que alívio, percebi que ainda estamos no mesmo mundo em que o nosso país é um dos recordistas em população carcerária, com cerca de 800 mil presos, dos quais dois terços são pessoas negras e de baixa escolaridade, encarceradas em razão da guerra ao tráfico; percebi que ainda estamos no mesmo mundo com o qual nos acostumamos desde sempre, em que mais de 820 milhões de pessoas passam fome e da qual uma morre a cada quatro segundos; o mundo em que, diariamente 4.500 pessoas morrem de tuberculose, a despeito de sua cura ter sido descoberta há mais de cem anos, mas não ser acessível a todos por causa dos monopólios e patentes que enriquecem a indústria farmacêutica.

Que susto esse pesadelo! Que susto! Ainda bem que acordei, resgatei minhas referências e me agarrei a elas como o parâmetro da normalidade que eu sempre conheci. Ufa! Que susto...

domingo, 29 de março de 2020

Quando a sociedade se nivela por baixo

O argumento mais frágil da direita neoliberal para defender o fim da quarentena é, ironicamente, o mais utilizado. Recentemente o bom pastor Silas Malafaia deu de ombros com as possíveis mortes que o Covid-19 iria trazer, ao estabelecer um paralelo entre isso e as mortes ocasionadas pelo caos social. "Vai matar gente de coronavírus? Vai. Mas, o caos social vai matar muito mais."

Ainda nesta semana vi uma postagem de um conhecido liberal que, ironicamente, depois de muito defender a necessidade de se manter o isolamento das pessoas, desabafa em tom exasperado que aqui não é a Europa, mas um país onde predomina a informalidade e a precariedade dos trabalhos. Queixa-se, ao final do seu texto, de que haverá um sacrifício grande para as classes menos favorecidas, enquanto privilegiados estarão protegidos nos interiores de suas casas.

Engraçado como quem defende a quebra da quarentena parte sempre do pressuposto de que a economia matará mais porque a sociedade possui um grande desequilíbrio que obriga o trabalhador a ceder aos riscos à sua saúde. Esquecem-se, no entanto, de fazer a pergunta de ouro: DE ONDE SURGE ESSE DESEQUILÍBRIO?

Essas pessoas acreditam mesmo que o ser humano se reuniu em uma sociedade estamental e segmentada por obra divina? Acreditam que existe uma ordem natural das coisas que põe pessoas, homo sapiens, seres da mesmíssima espécie, em condições de oposição nas quais um grupo, coincidentemente formado por pessoas brancas residentes na Avenida Vieira Souto, seria feito para mandar, e outro grupo, constituído por negros favelados, para obedecer.

Quando essas pessoas partem do pressuposto de que a sociedade é naturalmente desequilibrada, como se isso fosse um dado posto, deixam de considerar – e talvez seja onde resida a maior falha do seu argumento – de que as sociedades são construídas a partir de relações em que um grupo estabelece as regras para que todos os demais sigam.

E quando trazem essa suposta "fraqueza natural" da sociedade para o campo econômico, deixam de considerar, convenientemente, que o capitalismo burguês como o conhecemos não tem ainda trezentos anos. Embora para parte da sociedade pareça que seja assim desde o surgimento do homem no planeta. Não, gente. Não é. Todas as mazelas trazidas com o sistema econômico pelo qual uma pequena parcela da sociedade detém a propriedade privada dos meios de produção e exploram a classe trabalhadora, que compõem sua grande maioria, deixam de ser levadas em consideração por quem defende que "o sistema irá matar mais que o Covid-19".

Esse "sistema que irá matar mais" já mata mais. Mata diariamente. Mata exaustivamente. Mata de fome. Mata de doença. Mata por violência. O que deixam de considerar os defensores da quebra da quarentena é que o sistema já mata e o tal desequilíbrio da sociedade que faz com que "aqui seja a África e não a Europa" não se deu antes da Europa colonizar a África e fazer de lá seu fornecedor de riqueza. Riqueza roubada, expropriada, usurpada, pelo uso da força. É para esse sistema que o empresariado pretende que você volte. E se nele há desequilíbrio, não é por causa da disposição natural das pessoas, mas por causa das relações que se construíram quando uma parte do mundo dominou a outra.

sexta-feira, 27 de março de 2020

Passa da hora da taxação das grandes fortunas

Somente o Itaú-Unibanco, o Santander, o Bradesco e o Banco do Brasil, juntos, em 2019, tiveram um lucro líquido de aproximadamente 87 bilhões de reais. Isso mesmo, quatro empresa, apenas quatro empresas juntas tiveram um lucro... Vejam bem, estou falando de lucro, não de rendimento. Lucro. Dinheiro livre, depois de cobertas todas as despesas e custos... Pois bem, quatro empresas tiveram um lucro equivalente a aproximadamente 2,5% de todo o orçamento da União em 2020, instituído na lei orçamentária para este período.

De acordo com a lei orçamentária, o investimento do governo com saúde, previsto para o ano de 2020 é de 125,6 bilhões de reais. Ou seja, quase 70% do valor que o governo federal deveria gastar com saúde em todo o ano de 2020 foi obtido como lucro de apenas quatro bancos.

E quem produziu tudo isto? A nossa classe trabalhadora. Ou por que você acha que estão dizendo que a economia vai quebrar sem você nas ruas, queride trabalhadore?

Urge que o governo federal faça empréstimo compulsório com as empresas que tiveram maior lucro em valores absolutos, na forma do artigo 148, I e II, da Constituição Federal, para custear as despesas decorrentes da calamidade pública que é a pandemia do coronavírus, bem como para investir em saúde e na garantia de renda mínima para a população mais necessitada, e maior vítima do caos que se instaurará na saúde e na economia.

Como iria restituir as empresas? Taxando grandes fortunas! E para ontem! Porque o princípio da anterioridade estabelece que impostos sobre patrimônio ou renda somente poderão ser cobrados no ano seguinte, com intervalo mínimo de noventa dias, ao da publicação da lei que o instituir. Isso significa que, ainda que fosse publicada hoje uma lei que instituísse imposto sobre grandes fortunas, sua cobrança somente seria válida a partir de 1º de janeiro de 2021.

Não há lei regulamentando o imposto sobre grandes fortunas no Brasil, de tal sorte que poder-se-ia discutir ainda o valor mínimo do que poderia ser considerado grandes fortunas, quais seriam as alíquotas e as faixas de incidência de cada uma delas. Em 2017, a Senadora Vanessa Grazziotin, do PCdoB-AM, apresentou o projeto de lei do Senado nº 139/2017, para regulamentar o artigo 153, VII, da Constituição Federal, instituindo o imposto sobre grandes fortunas.

De acordo com o PLS 139/2017, grandes fortunas seriam aquelas equivalentes a, no mínimo 8 mil vezes o imite mensal de isenção do imposto de renda para pessoas físicas. Atualmente, seria o equivalente a uma renda mensal de aproximadamente 19 milhões de reais. Isso mesmo, operário/a classe média que se acha riquíssima/o por ter um salário de 5 mil por mês. Esse imposto não é para você. Ainda para o PLS 139/2017, a alíquota mais alta seria de 1% para quem tivesse uma renda mensal equivalente, atualmente, a cerca de 178,5 milhões de reais. Esta única pessoa, se considerarmos sua renda como a última mencionada, em um ano pagaria 21,5 milhões. Imagine que apenas os quatro maiores bancos, pagando uma alíquota de 1%, teriam desembolsado 870 milhões de reais em imposto. Agora, imagine se tivéssemos uma alíquota de 2,5% o 3%.

Pois é, amiguinhe. É deste imposto que nosso congresso tem fugido e que nosso presidente tem ignorado.

O governo federal deveria ter estas medidas como plano de emergência para a crise social que estamos enfrentando em decorrência do coronavírus. Lembremos que o lucro do empresariado é fruto do nosso trabalho e é exatamente por isso que você e eu estamos sendo chantageados pelo presidente e seus capangas para que voltemos às nossas atividades, a despeito de adoecermos com a infecção. Não se engane: se você morrer, haverá outro pobre diabo ocupando seu lugar. Desde que a engrenagem não pare de rodar, o patrão terá garantido o próprio lucro com o trabalho que você exerceu. É por isso que querem que você saia de casa.

Um empréstimo compulsório de 60 bilhões de reais poderia assegurar renda mínima de um salário mínimo mensal pelo período de um ano a pelo menos 4,8 milhões de pessoas. Enquanto isso, seu governo fala em deixar morrerem 5 a 7 mil pessoas para proteger o interesse das empresas que, como você viu, poderiam contribuir de forma muito mais efetiva para financiar as atividades estatais que com esse papo mole de que, quebrando a economia, quem se quebra é o povo.

quarta-feira, 25 de março de 2020

Jair Bolsonaro, Necropolítica e Coronavírus

Jair Bolsonaro na TV falando a milhões de brasileiros que o país precisa voltar à normalidade. Talvez seja a primeira vez na vida em que eu concorde com esse animal em alguma coisa.

O Brasil precisa voltar à normalidade, sim, Sr. Presidente. O Brasil quer voltar ao tempo em que não era governado por fascistas genocidas, que pretendem usar o coronavírus como arma para acabar com os aposentados desse país. O Brasil quer voltar ao tempo em que o mais pobre tinha comida no prato e o filho da empregada cursava ensino superior. O Brasil quer voltar o ao tempo em que um homem sem senso de coletividade e completamente irresponsável não tivesse sido eleito depois de burlar o sistema eleitoral com promessas de cargos vitalícios a juízes de primeira instância.

Jair Bolsonaro, ao determinar que o povo volte às ruas, contrariando o protocolo da Organização Mundial de Saúde, pratica o crime previsto no artigo 132 do Código Penal, qualificado pelo seu parágrafo único, que é expor a vida ou a saúde de pessoas a perigo direto ou iminente. É uma demonstração clara do seu descontrole ir de encontro às orientações de todos os líderes mundiais, todas as autoridades médicas mundiais, incluindo a própria OMS, e até mesmo as orientações do seu próprio corpo técnico, chefiado pelo Ministro da Saúde, Mandetta.

Bolsonaro padece de uma certeza infantilóide de quem acha que o mundo inteiro está errado e apenas sua opinião é correta. Sua visão limitada de mundo, que transmitiu aos seus filhos de mente tão fechada quanto sua própria, não lhe permite ver pelo olhar do outro.

Se por um lado isso o impede de compreender conhecimentos além dos que supõe possuir, por outro tira de si a capacidade de se importar. Não se importa com a opinião alheia, como não se importa com a própria existência alheia.

Bolsonaro aderiu à necropolítica e está se valendo de uma pandemia para manifestar novamente seu ódio de classes, quando assume que a normalidade deve ser a circulação de pessoas que não compõem grupos de riscos. Em sua visão estreita de mundo, não consegue vislumbrar que, independentemente de fazerem ou não parte dos grupos de risco, pessoas circulando nas ruas levam o vírus para dentro de casa, onde estarão recolhidos os mais ameaçados. Bolsonaro simplesmente não se importa.

Coronavírus e a função social da propriedade

Aos coleguinhas neoliberais de plantão, que acreditam na sacralidade do direito à propriedade como se fosse um direito natural, inerente ao ser humano, vou dizer: o próprio direito é uma convenção e não existe uma natureza no direito. Em algum momento da história, classes dirigentes de sociedades estabeleceram o que é e o que não é direito e quem pode ou quem não pode gozar dele. Nem vou entrar nesse debate, porque não quero perder o foco.

Mas, para quem acha que a propriedade privada é direito absoluto e se sobrepõe a todos os outros, vou lembrar que nossa constituição prevê, em seu artigo 5º, XXIII, que a propriedade privada atenderá à sua função social, o que significa que o direito à propriedade privada deve se submeter aos ditames necessários à manutenção da coesão social. Ou seja, em resumo, se a manutenção da sua propriedade privada prejudicar a coletividade, um abraço para sua propriedade privada!

E neste sentido, a constituição também determina, em seu artigo 170, III, que a ordem econômica, com a finalidade de ASSEGURAR A TODOS UMA EXISTÊNCIA DIGNA EM CONFORMIDADE COM OS DITAMES DA JUSTIÇA SOCIAL, deverá ter como princípio a função social da propriedade. Isso significa que é uma balela e, como tal, deve ser rechaçada, todo esse papo de que o direito de lucro do dono da Havan, do dono do Madero, do Roberto Justus, e de cada um desses merdas são dados por Deus.

É por isso que é necessário taxar grandes fortunas, sim. É por isso que imposto não é roubo. É por isso que o lucro obtido sobre a exploração alheia precisa ser combatido.

E é por isso que medidas de combate ao coronavírus devem ser adotadas. Em vez de continuar lambendo o saco do empresariado que não para de se vitimizar, como o Véio da Havan que, para chantagear o governo, ameaçou demitir 22 mil empregados, Jair Bolsonaro deveria obrigar imediatamente os bancos a lhe conceder empréstimo compulsório para subsidiar a complementação de renda das pessoas mais necessitadas, e não obrigá-las a sacarem seu próprio FGTS para gerirem a própria saúde.

Mas, Guto, obrigar o banco a conceder empréstimo? Pode isso? Pode. Tá lá no artigo 148, I e II:

"Art. 148. A União, mediante lei complementar, poderá instituir empréstimos compulsórios:
I - para atender a despesas extraordinárias, decorrentes de calamidade pública, de guerra externa ou sua iminência;
II - no caso de investimento público de caráter urgente e de relevante interesse nacional (...)."

Não se engane com medidas paliativas como liberação de FGTS. Isso é varrer a sujeira para baixo do tapete. O governo não está olhando para o trabalhador, quando, depois de congelar por vinte anos investimentos em saúde e em educação, sucateando o SUS e as pesquisas públicas nas universidades, resolve liberar o saque do FGTS para evitar "paralisar a economia". Quando faz isso, o governo está dizendo para o trabalhador: "deixei o estado se omitir, deixei de investir em saúde pública, deixei de garantir aos cidadãos os seus direitos sociais, e agora quero que vocês usem seu dinheiro guardado para poderem gastar por conta própria aquilo que o estado deveria ter garantido e não fez."

quarta-feira, 18 de março de 2020

Embargos econômicos versus hortas caseiras. O anticapitalismo como ponto de partida para a revolução.


Ah, Guto, esse negócio de ser comunista não é legal, não. Você vem me falar que no comunismo vocês querem combater a desigualdade e acabar com a miséria. Mas, aí a gente vê Cuba e Venezuela... Dois países socialistas... E a gente não vê nem papel higiênico no mercado, o povo morrendo de fome e fugindo de lá! Como é que esse negócio pode ser bom? E essa parada de horta caseira? Para que isso? Qual a relação de uma coisa com a outra? Para ser comunista tem que ter horta em casa?

Antes de iniciar, para evitar confusões de conceituação, a gente precisa deixar claro que ser anticapitalista não necessariamente pressupõe ser comunista (embora eu seja).  Você pode pensar em algum modelo socioeconômico diverso do comunismo, diverso do socialismo, mas que seja também diverso do capitalismo. Você não precisa ser comunista se não quiser (mas, eu adoraria se você quisesse). Mas, precisa enxergar que o capitalismo deve ser combatido! Ainda que você desconheça outro modelo de sociedade e economia, deve ter em mente que o capitalismo não traz sonhos como te fizeram crer que traria.

Dito isto, e voltando ao assunto sobre a fome em Cuba e na Venezuela... Você já ouviu falar em embargos econômicos? Já ouviu falar em bloqueio a Cuba? Boicote à Venezuela?

A gente sabe que cada território possui suas limitações naturais, não sabe? Planta-se maçã e pêssego em lugar frio. Planta-se tomate em lugar quente. Alguns lugares têm peixe, outros têm galinha. São Paulo produz café. Minas Gerais produz queijo. Mato Grosso produz soja e tem gado. Cuba produz açúcar. Venezuela tem petróleo... E é por isso que os países negociam e fazem comércio. Para que cada um forneça aos demais aquilo que produz e traga dos demais aquilo que lhes falta. Lembra das aulas de história e sobre as navegações que saíam da Europa para a Índia em busca de especiarias? Pois é, nem sempre foi fácil comprar pimenta-do-reino e cravo-da-índia em qualquer mercearia.

Imagina agora um país como Cuba, com um espaço tão pequeno e um solo tão pouco variado... O que dá pra fazer lá? O mesmo com o Japão. Noruega. Finlândia. Não se faz muita coisa nessas condições, não é? E por isso mesmo esses países DEPENDEM da produção dos outros para sobreviverem. É preciso fazer negócios. É preciso comercializar. Eles importam tudo aquilo que não produzem e vendem aquilo que podem produzir. Alguns países enriqueceram colonizando outros territórios, roubando-lhes as riquezas produzidas, explorando-os de forma predatória, como Portugal fez com o Brasil durante mais de trezentos anos. Outros precisam negociar.

Cuba produz tabaco e quem fuma diz que seus charutos são os melhores do mundo. Produz também cana-de-açúcar. Exportava açúcar para o mundo todo, especialmente para a Europa e os EUA. Até que virou socialista. E todo mundo em Cuba passou a viver na miséria depois disso. Então, a culpa é do socialismo, certo? Errado!

Não vou entrar no debate sobre violações de direitos humanos em Cuba pós revolução socialista em 1959, como justificativa estadunidense para impor embargos econômicos. Sim, Cuba violou direitos humanos. Mas, não se engane com essa conversa de país dito democrata que vem com o papinho mole de que está embargando o outro para forçá-lo a respeitar direitos humanos. Não aceite a justificativa de um erro sore outro.

Simplificando muito o debate, é possível dizer que a culpa de Cuba e Venezuela estarem do jeito que estão é da ideologia capitalista. Especialmente depois que o mundo se dividiu em dois blocos após a Segunda Guerra Mundial: bloco capitalista, comandado pelos EUA, e bloco comunista, comandado pela extinta URSS (União Soviética, atual Rússia, para vocês que nasceram depois de 1990 e não viram a queda o Muro de Berlim). Havia uma disputa ideológica no planeta entre esses dois blocos, cada qual querendo construir sua sociedade de acordo com seus princípios. Este texto não é sobre comunismo e socialismo. Mas, sobre anticapitalismo, razão pela qual não vou adentrar no que é comunismo ou no que é o socialismo. Capitalismo nós já sabemos o que é; vivemos numa sociedade capitalista, conhecemos de perto seus efeitos.

Nesse embate ideológico, conhecido como Guerra Fria, metade do mundo queria que o mundo todo fosse capitalista e metade do mundo queria que o mundo todo fosse comunista. Cuba se tornou socialista após a revolução cubana, que derrubou o capitalismo naquele país. A revolução foi financiada pela URSS comunista, obviamente causando grande temor nos EUA. E aí, então, quando Cuba virou socialista, os EUA impuseram uma coisinha nada simpática, chamada embargos econômicos ou bloqueio econômico. Prática conhecida no nosso dia-a-dia como boicote. Ora, os EUA são o país mais poderoso do mundo. E poucos países desejam se indispor com quem tem poder, né, não? A não ser que você tenha poder, como era o caso da União Soviética no período que vai do pós-guerra até pouco antes do seu colapso no final do século XX. É aquela situação em que você só ameaça o valentão da escola se você for grandão como ele. Ou, se for pequeno, mas puder contar com o grandão.

Então, imagine aí que, de repente, os EUA, esse país poderosíssimo, que havia mostrado ao mundo seu poderio nuclear quando, em 1945, soltou duas bombas atômicas no Japão, decidiu dizer ao resto do mundo: "a partir de hoje eu não negocio com Cuba. Não compro nada de lá. Não vendo nada para lá. E se vocês, pobres mortais do resto do mundo, quiserem continuar negociando comigo, também deverão parar de negociar com Cuba. Se o chocolate que a Suíça me vender tiver açúcar produzido com a cana de Cuba, não comprarei mais". Adivinha de qual lado o mundo que temia a bomba atômica dos EUA ficou. A ilha socialista caribenha passou a amargar desabastecimento.

Cuba passou a não ter dinheiro porque não vendia, passou a não poder industrializar sua produção porque não porque não podia comprar ferro e maquinário. E o povo cubano passou a viver na penúria. Nossa, Guto, país comunista passa fome! É claro que passa! Afinal, os países capitalistas não deixam o país comunista sobreviver. E como evitar isso? Combatendo o capitalismo, ué. Sabe quando a gente, esses comunistas, baderneiros, ficamos de mimimi falando "precisamos acabar com a monocultura, o agronegócio, e precisamos valorizar a agricultura familiar"? Imagina um país inteiro que só produz cana e tabaco e de repente não encontra mercado para escoar seus produtos.

Pense numa família inteira impossibilitada de comprar alface, tomate, repolho, remédio, feijão (um beijo, Dilma!), arroz, batata no mercadinho do bairro... Tudo que essa família tem são cana e tabaco. E não consegue vendê-la porque o miliciano fortão da rua de cima, dono do único mercadinho das redondezas, falou para o resto do bairro que quem comprasse cana e tabaco naquela casa seria seu inimigo e não poderia mais comprar nada no seu mercadinho também. A família comeria cana e tabaco? Pois é, agora imagina isso numa escala geopolítica. É o que acontece com Cuba e Venezuela. Essa última tem petróleo. Mas, não consegue vender porque os EUA não deixam. Como venezuelanos não podem beber petróleo, passam necessidade.

Se aquela casa marcada pelo miliciano dono do mercadinho tivesse cana e tabaco, mas também tivesse uma horta com beterraba, cenoura, pepino, chuchu, alface, temperos... E tivesse um galinheiro do qual pudesse extrair ovos... De fome essa família não morreria! Poderia até não vender nada. Não obteria lucro vendendo alface por um preço maior que o preço de custo. Mas, não passaria necessidade. Poderia não buscar lucro. Mas, garantiria sua sobrevivência, com sua produção voltada à satisfação das suas necessidades básicas.

Agora, imagina se o bairro inteiro tivesse, em cada casa, sua horta e seu galinheiro. O miliciano fortão da rua de cima obrigaria alguém a comercializar ou deixar de comercializar com alguém? O mercadinho do miliciano teria o poder que tem sendo o único fornecedor de bens de consumo para aquela região? Quem se preocuparia em comprar batata com ele se tivesse sua própria batata? Quem dependeria de sua ordem para garantir a própria alimentação?

Claro que não basta cada um ter sua horta para nos tornarmos um país comunista. As necessidades humanas são muitas e é preciso que os países realizem trocas entre si. Mas, quando a gente vê que podemos nos tornar menos dependentes de um mercado, menos poder lhe damos. E quanto mais diversificada for nossa produção, menos dependente seremos do outro.

O capitalismo lida com a divisão de trabalho como estratégia para acelerar a produção. Quando uma cadeia de produção tem pessoas especializadas unicamente em determinada etapa, o processo de fabricação e/ou produção passará a ser mais rápido do que seria se cada uma das pessoas envolvidas no processo tivesse de produzir sozinha todo o bem. A mesma lógica se aplica à monocultura em detrimento da cultura diversificada. Ao produtor, interessa focar em uma atividade, dominando todo o mercado com ela, assegurando-se-lhe, portanto, o lucro pela atividade exercida. Assim, você vende açúcar para todo o mercado mundial e com seu lucro pode comprar os produtos que não produz. Até o momento em que você não terá acesso a esses produtos que não produz. É como acontece com o álcool em gel nas farmácias. Você não produz álcool em gel, mas vende sua força de trabalho para seu patrão produzir. E compra álcool em gel.

Quando os EUA impõem embargos econômicos à Cuba, à Venezuela, estão asfixiando a economia desses países, impondo à suas respectivas populações toda sorte de violações de direitos, à dignidade, à alimentação, à saúde. Urge que os países passem a ver a produção como forma de atender às necessidades de sua população e não como meio de garantir o lucro do fornecedor. Riqueza gerada é para ser dividida entre as pessoas responsáveis pela sua geração, visando a garantir sobrevivência e dignidade a todos os membros de uma sociedade. Riqueza não é para ser acumulada nas mãos de poucos detentores dos meios de produção.

E por onde começo, Guto? Comece tirando poder de quem produz para lucrar. Dependa menos das grandes redes monopolistas ou oligopolistas. Pode produzir o seu? Então produza e não precise mais comprar. Plante sua horta, colha seus próprios legumes, costure suas roupas, prepare sua comida. Não teve jeito, esbarrou numa tarefa impossível de produzir em casa e precisa comprar de qualquer forma? Então compre do mercadinho da esquina ou da padaria do final da rua. Isso financia o pequeno produtor e faz a economia do seu bairro girar, circulando dinheiro entre os seus pares. Grandes redes já lucram muito. Não lhes dê mais poder financeiro.

Meu sonho de sociedade é aquela em que cada um possa ter o necessário para uma vida digna e saudável, sem a valoração do acúmulo como um incentivo para a produção. Que cada um possa distribuir o mais com quem tem menos para que todos tenham em condições similares, sem que falte para qualquer um. É por isso que pratico o desapego, incentivo o minimalismo e reduzo meu consumo de bens supérfluos, a fim de não enriquecer ainda mais o produtor por algo que não seja estritamente necessário à minha sobrevivência. A horta em casa, ainda não fiz. Mas, em breve pretendo começar. Quando faltar batata no mercado, terei meu purê na mesa ou terei batatas para dar ao meu vizinho que plantou chuchu.

Quando você se apercebe de que aquilo que você não deseja deixa de lhe fazer falta, voilà, você descobre a força que tem nas mãos! Como ela, poderá brigar contra esse sistema capitalista que faz você acreditar que precisa de algo que não precisa para que sua compra gere lucro a quem o produziu.

segunda-feira, 16 de março de 2020

Coronavirus e prateleiras vazias


No modelo econômico capitalista, a produção agrícola, como tudo o mais, visa a garantir o lucro do produtor. Quando há uma grande procura, como nas greves dos caminhoneiros ou períodos de histeria coletiva como este atual da pandemia do coronavírus, pessoas que podem pagar mais nos supermercados têm a vantagem de poderem estocar alimentos em casa. A você, pobre, fodido, resta a escassez das prateleiras vazias ou se virar para pagar o triplo... o quádruplo... dez vezes o preço.

Nós, classe média assalariada, nos queixamos, corremos para as filas dos mercados, concorremos com nosso vizinho por um saco de feijão. Viramos animal na selva, faminto, brigando pela caça com nosso semelhante. Queremos apenas estocar comida na nossa despensa. Azar de quem não pode.

Mas, Guto, e o que o capitalismo tem a ver com isso? Sabe a divisão do trabalho? Aquela coisinha que cria etapas e faz de você um profundo conhecedor de como parafusar uma chapa de metal, mas incapaz de entender como ligar um fio e gerar eletricidade? Pois é. A divisão do trabalho acelera a produção e enriquece o proprietário dos meios de produção. Você sabe plantar. Seu vizinho sabe adubar. Eu sei colher. Meu vizinho sabe transportar. O primo dele sabe vender. Se faltar alguém nessa cadeia produtiva, todo o ciclo se rompe e fica todo mundo na merda. O capitalismo quer isso. Porque ao usurpador da sua força de trabalho, tecnicamente conhecido como proprietário dos meios de produção, interessa o lucro. Não importa como! A produção precisa ser rápida para atender, não aos anseios da sociedade, mas aos interesses de quem pode pagar e consumir. É uma matemática simples: o produto produz, disponibiliza no mercado, quem pode pagar paga, quem não pode, fica sem. Tem produto sobrando? O preço cai. Tem produto faltando? O preço aumenta. O lucro do produtor? Este não se altera. Ainda quem nem todo mundo compre.

Para o proprietário dos meios de produção, leia-se, O PATRÃO, não importa se a comunidade estará alimentada ou se apenas um pequeno grupo estará alimentado. Já falei, mas não custa repetir. Repita comigo você também até memorizar: o interesse do patrão não é assegurar o bem-estar da sociedade. É garantir o próprio lucro. Frase para tatuar no cóccix. "Faltou comida para todos? Não faz mal, quintuplica o preço para garantir meu lucro. Quem não puder pagar que se dane!" Isso é capitalismo.

Se há uma coisa que estou amando nessa pandemia do coronavírus, é que ela está revelando a você, cidadão médio, cidadã média, seja por ignorância, seja por seu pouco interesse em combater as mazelas da sociedade, as falhas do capitalismo e do seu modo de produção pouco preocupado em prover o bem estar da coletividade, mas bastante interessado em dar lucro para o agronegócio. E claro, para o produtor do álcool em gel.

Agro é pop? Agro é tech? A-hã, vai vendo... Quando você pensar em demonizar o comunismo sem nem saber do que se trata, pense que o capitalismo quer produzir para enriquecer o patrão, enquanto o comunismo quer produzir para atender às necessidades de consumo da sociedade. Em vez de lamentar a falta de tomate e batata no mercado, você, que na cadeia de produção sabe alimentar planilha de Excel, mas não faz ideia de como se planta uma beterraba, pense no prejuízo que a divisão de trabalho no capitalismo causa a quem sofre os efeitos da escassez de alimentos. Ontem você podia comprar álcool em gel. Hoje, só poderá se tiver como pagar três vezes mais. Amanhã? Não sabemos! Teremos álcool em gel nas prateleiras?

Ah, Guto! Agora é impossível! Agora eu dependo da cenoura e do pimentão do mercado para me alimentar. Eu sei, também dependo. Como dependo da indústria farmacêutica que produz o álcool gel cada vez mais caro por estar cada vez menos fácil de se encontrar por aí. E exatamente por isso, eu sei a merda que é depender do interesse no lucro do produtor para que eu possa me alimentar. Para que eu possa me vestir. Para que eu possa trabalhar. E é exatamente por isso que eu sou comunista. Se eu fosse você, começaria agora mesmo a estudar como fazer uma horta caseira. E como fazer uma roupa caseira. E como fazer chazinho para aliviar sintomas e doenças.

Com a iminente crise na produção causada pelas pessoas em casa em decorrência do vírus, logo, logo tudo isso vai faltar. Ou vai encarecer muito! E adivinha quem não vai sair lucrando com isso. Exatamente: você!

Ah, e só para lembrar: desincentivar a pesquisa nas universidades públicas também desincentiva a busca pela cura de doenças novas que aparecem e se espalham. Alô, bolsominions, aquele abraço!

Não há de quê. Beijo marxista no seu coração!

segunda-feira, 9 de março de 2020

O traficante humanizado ou minha primeira vez numa boca-de-fumo


Embora sempre tivesse defendido o direito de o cidadão fazer uso da droga que quisesse, uma vez que se trata do exercício da liberdade sobre seu próprio corpo, por muito tempo condenei aquele que adquiria qualquer substância ilícita na mão de “vendedores”. Defendia o direito do maconheiro de fumar seu cigarrinho, mas achava falta de consciência alimentar o tráfico, financiando-o através da compra nas mãos de “bandidos”. Em minha visão limitada e pouco sistêmica, acreditava que, com isto, acabavam promovendo a violência, através de uma guerra de facções pelo melhor ponto de venda ou de uma guerra do tráfico contra a polícia que, invariavelmente, acabava vitimando pessoas inocentes. “Quer fumar sua maconha? Fume, mas plante a sua em vez de financiar a bandidagem”, era o meu principal discurso sobre este tema.

Até começar a perceber que na construção da nossa sociedade, a guerra ao tráfico é somente um pretexto para manter estigmatizações e exclusões, através de um discurso moralizante sobre a utilização de drogas. Comecei a me dar conta de que quem promove a violência é, na verdade, a política pública que persegue o negro favelado – ontem criminalizando o samba e a capoeira, hoje criminalizando a droga e amanhã talvez criminalizando o funk – e não o contrário. Hoje enxergo que ser traficante é resistir (leia-se, ser excluído social que, na ausência do Estado como garantidor de direitos sociais, busca pelos próprios meios assegurar sua subsistência). E quando a gente se dá conta de que a suposta "organização social" (organização para quem?) atende somente aos interesses de um grupo de privilegiados, mantendo excluída parcela considerável da população no intuito de garantir mão de obra barata para ser explorada pela burguesia, a gente se dá conta de que “financiar o tráfico” é assegurar a resistência contra esse regime de opressão que marginaliza e exclui.

E aí, eu me deparei com este relato sobre um usuário que esteve pela primeira vez em uma boca de fumo em uma favela carioca. Não sei se os nomes já estavam alterados. Na dúvida, alterei de novo. Nomes e referências de lugares a fim de garantir o anonimato dos envolvidos:

“Entrei na rua que o Manu falou e segui em frente. Passei por uns rapazes de rádio na mão, dei dois passos e saí da favela chegando a uma rua classe média do bairro vizinho. Achei estranho, já que o Manu tinha falado que era só seguir em frente. Voltei. Parei perto dos garotos. O mais velho não devia ter nem dezoito anos. Rádio na mão na entrada da comunidade? Pensei "são eles". Não vi ninguém armado durante todo o tempo em que estive lá (que também não foi muito tempo, mas mesmo assim...).

Parei perto deles, cumprimentei, um deles estava com o olho mais vermelho que a bandeira do PT. Eu não sabia como abordar o assunto. Não sabia se era seguro usar expressões diretas, tipo "droga", "maconha", etc...

– Cara, um amigo meu falou que se eu entrasse lá na frente – falei, apontando a rua por onde eu entrei – e seguisse direto, iria sair num lugar tipo uma feirinha...

Os caras deram um sorrisinho um com o outro e captaram a mensagem.

– Quer comprar o que? Droga?
– Isso.
– Maconha, coca...?
– Maconha.
– Pô, mano, se quiser a gente vai lá pra você...
– Não precisa, não. A não ser que seja longe.
– Não é, não. É só virar ali naquele muro azul. Você vai ver logo.
– Pô, valeu, mano! Brigadão!

Voltei a rua, pelo mesmo caminho por onde tinha entrado e virei o tal muro. E é exatamente como o Manu descreveu. Uma feirinha. Em escala bem menor, claro. Na verdade, é uma barraca com uns dez garotos, todos com cara de menor de idade, sentados um ao lado do outro, com uma mesinha à frente deles...

– Maconha aqui! Maconha aqui! – assim mesmo, gritando, como se vendessem peixe ou tomate.

Todos te cercando e oferecendo o que tinham para vender. Vi maconha e o que eu acho que eram pinos de cocaína.

Fiquei de papo com eles uns cinco minutos, pechinchando. Perguntei se estavam juntos e eles disseram que não. Que eram concorrência um do outro. Mas, parecia todo mundo amigo entre si, zoando-se mutuamente, rindo da zoação.

– Aqui, meu chegado, essa aqui é melhor, não liga pra ele não.
– Qual foi parceiro? Tá azedando minha venda. Olha aqui, moral, essa aqui é melhor. Essa que ele vende é capim.

Achei graça. Fiquei comovido até. Um monte de coisa passando na minha cabeça. Aqueles moleques, simpáticos, praticamente crianças, fazendo atendimento melhor que em qualquer estabelecimento comercial do Rio de Janeiro... senti vontade de dar um abraço em cada um deles. Eu já estava me sentindo em casa. Durante aqueles poucos minutos, esqueci completamente que estava fazendo algo ilícito. Parecia apenas que eu estava numa feira comprando tempero e negociando. Assumi o controle da compra, falando mais alto que eles para me fazer entender e para entendê-los também. Aquele tablete que eu pago R$ 200,00 ao Anderson quando ele leva lá em casa, eles me ofereceram a R$ 150,00. A cara não estava boa. Um dos garotos vendia pedaços pequenos a R$ 50,00 cada um. Falei do tamanho, que era pequeno demais. E vi um tablete grossinho, quadrado, equivalente à metade do que eu comprava de R$ 300,00 com o Anderson. Custava 100,00.

Reconheci uma embalagem que eu já havia comprado com o Anderson e falei "esse aqui eu já conheço, vou levar dos outros hoje". Na hora falei com o moleque dos pedacinhos de R$ 50,00.

– Aí, irmãozinho, tá difícil pra vc... Olha o dele, tá bem mais servido...
– Tá nada, tamanho é bobagem, importante é a qualidade. Esse é menor, mas é melhor.
– Fazer o seguinte, pra ninguém ficar triste... Você aí, dos tabletes grandes, me dá esse de R$ 100,00. Você, do pacotinho, me dá esse de 50,00. Quando eu voltar aqui, eu vou fazendo rodízio, pegando de outros pra poder ser justo com todo mundo.

Paguei e dei tchau pra todos e fui embora.

Cara! Que experiência foda! Foda mesmo, sabe? Humaniza a figura do "traficante", sabe? Do aviãozinho, na verdade... Eu não vi ali o “bandido”. Vi só um bando de adolescente vendendo coisas para garantirem a sobrevivência. Foi tocante mesmo. Desconstruiu muito a minha noção de que lidar com essas pessoas é lidar com bandidos armados e mal encarados, dispostos a te matar a qualquer instante por qualquer motivo.

A propósito, acho que tomei prejuízo no de R$ 50,00. Achei muito fraca, ruim. Não tem nem o cheiro direito. O pedaço maior, de 100,00, parece mais com a que a gente pega com o Anderson. A vontade de abraçá-lo diminuiu depois que fumei o que ele ofereceu. Hahaha! Zoa.”

O relato correspondia exatamente ao que penso sobre o assunto. Existe uma “conspiração” que vende uma imagem do traficante como O Bandido Mais Perigoso do Mundo (alô, Jornal Nacional, alô, Cidade Alerta!), a fim de reforçar em nós, que vivemos nossa bolha de privilégio, um medo estigmatizante e excludente, fomentando a visão de que pessoas possam ser separadas em “nós” e “eles”.

Não se trata de me iludir e acreditar que não corro perigo. É óbvio que sei que há perigo, que posso ser vítima de uma bala perdida, ou num assalto, disparada pelo tal “bandido” querendo apenas o meu telefone celular. A questão é que, mesmo ciente destas probabilidades, eu não consigo mais deixar de pensar que não é a pessoa que disparou o gatilho que eu devo combater. É todo o sistema que obriga essa pessoa a segurar uma arma e a me ver como inimigo por motivos similares aos meus de vê-lo como inimigo: porque assim fui socializado. Quando uma pessoa, chamada pela elite dominante de bandido – e por isso, em todas as vezes anteriores neste texto que usei essa expressão, usei entre aspas, inclusive quando modifiquei o relato acima transcrito – rouba, atira, mata, devo ter consciência de que a violência que eventualmente possa me vitimar é promovida por um sistema opressor, que estimula a desigualdade social. O tal “bandido” é só alguém que ocupa um posto no qual ele foi jogado para ocupar quando o sistema lhe apontou o dedo e lhe disse: “Você não é bem-vindo entre nós. Seu lugar não é na sociedade de consumo. Seu lugar é na periferia, onde não há infraestrutura, não há lazer, não há educação, não há saúde, não há emprego, não há nada. Nem sequer esperança. Quer sobreviver? Dê seu jeito!”