Ah, Guto, esse negócio de ser
comunista não é legal, não. Você vem me falar que no comunismo vocês querem
combater a desigualdade e acabar com a miséria. Mas, aí a gente vê Cuba e
Venezuela... Dois países socialistas... E a gente não vê nem papel higiênico no
mercado, o povo morrendo de fome e fugindo de lá! Como é que esse negócio pode
ser bom? E essa parada de horta caseira? Para que isso? Qual a relação de uma
coisa com a outra? Para ser comunista tem que ter horta em casa?
Antes de iniciar, para evitar confusões
de conceituação, a gente precisa deixar claro que ser anticapitalista não
necessariamente pressupõe ser comunista (embora eu seja). Você pode pensar em algum modelo socioeconômico
diverso do comunismo, diverso do socialismo, mas que seja também diverso do
capitalismo. Você não precisa ser comunista se não quiser (mas, eu adoraria se
você quisesse). Mas, precisa enxergar que o capitalismo deve ser combatido!
Ainda que você desconheça outro modelo de sociedade e economia, deve ter em
mente que o capitalismo não traz sonhos como te fizeram crer que traria.
Dito isto, e voltando ao assunto
sobre a fome em Cuba e na Venezuela... Você já ouviu falar em embargos
econômicos? Já ouviu falar em bloqueio a Cuba? Boicote à
Venezuela?
A gente sabe que cada território
possui suas limitações naturais, não sabe? Planta-se maçã e pêssego em lugar
frio. Planta-se tomate em lugar quente. Alguns lugares têm peixe, outros têm
galinha. São Paulo produz café. Minas Gerais produz queijo. Mato Grosso produz
soja e tem gado. Cuba produz açúcar. Venezuela tem petróleo... E é por isso que
os países negociam e fazem comércio. Para que cada um forneça aos demais aquilo
que produz e traga dos demais aquilo que lhes falta. Lembra das aulas de
história e sobre as navegações que saíam da Europa para a Índia em busca de
especiarias? Pois é, nem sempre foi fácil comprar pimenta-do-reino e
cravo-da-índia em qualquer mercearia.
Imagina agora um país como Cuba,
com um espaço tão pequeno e um solo tão pouco variado... O que dá pra fazer lá?
O mesmo com o Japão. Noruega. Finlândia. Não se faz muita coisa nessas
condições, não é? E por isso mesmo esses países DEPENDEM da produção dos outros
para sobreviverem. É preciso fazer negócios. É preciso comercializar. Eles
importam tudo aquilo que não produzem e vendem aquilo que podem produzir.
Alguns países enriqueceram colonizando outros territórios, roubando-lhes as
riquezas produzidas, explorando-os de forma predatória, como Portugal fez com o
Brasil durante mais de trezentos anos. Outros precisam negociar.
Cuba produz tabaco e quem fuma
diz que seus charutos são os melhores do mundo. Produz também cana-de-açúcar. Exportava
açúcar para o mundo todo, especialmente para a Europa e os EUA. Até que virou socialista.
E todo mundo em Cuba passou a viver na miséria depois disso. Então, a culpa é
do socialismo, certo? Errado!
Não vou entrar no debate sobre
violações de direitos humanos em Cuba pós revolução socialista em 1959, como
justificativa estadunidense para impor embargos econômicos. Sim, Cuba violou
direitos humanos. Mas, não se engane com essa conversa de país dito democrata que
vem com o papinho mole de que está embargando o outro para forçá-lo a respeitar
direitos humanos. Não aceite a justificativa de um erro sore outro.
Simplificando muito o debate, é possível
dizer que a culpa de Cuba e Venezuela estarem do jeito que estão é da ideologia
capitalista. Especialmente depois que o mundo se dividiu em dois blocos após a
Segunda Guerra Mundial: bloco capitalista, comandado pelos EUA, e bloco
comunista, comandado pela extinta URSS (União Soviética, atual Rússia, para
vocês que nasceram depois de 1990 e não viram a queda o Muro de Berlim). Havia
uma disputa ideológica no planeta entre esses dois blocos, cada qual querendo
construir sua sociedade de acordo com seus princípios. Este texto não é sobre
comunismo e socialismo. Mas, sobre anticapitalismo, razão pela qual não vou
adentrar no que é comunismo ou no que é o socialismo. Capitalismo nós já sabemos
o que é; vivemos numa sociedade capitalista, conhecemos de perto seus efeitos.
Nesse embate ideológico,
conhecido como Guerra Fria, metade do mundo queria que o mundo todo fosse
capitalista e metade do mundo queria que o mundo todo fosse comunista. Cuba se
tornou socialista após a revolução cubana, que derrubou o capitalismo naquele
país. A revolução foi financiada pela URSS comunista, obviamente causando
grande temor nos EUA. E aí, então, quando Cuba virou socialista, os EUA
impuseram uma coisinha nada simpática, chamada embargos econômicos ou bloqueio
econômico. Prática conhecida no nosso dia-a-dia como boicote. Ora,
os EUA são o país mais poderoso do mundo. E poucos países desejam se indispor
com quem tem poder, né, não? A não ser que você tenha poder, como era o caso da
União Soviética no período que vai do pós-guerra até pouco antes do seu colapso
no final do século XX. É aquela situação em que você só ameaça o valentão da
escola se você for grandão como ele. Ou, se for pequeno, mas puder contar com o
grandão.
Então, imagine aí que, de
repente, os EUA, esse país poderosíssimo, que havia mostrado ao mundo seu
poderio nuclear quando, em 1945, soltou duas bombas atômicas no Japão, decidiu
dizer ao resto do mundo: "a partir de hoje eu não negocio com Cuba. Não
compro nada de lá. Não vendo nada para lá. E se vocês, pobres mortais do resto
do mundo, quiserem continuar negociando comigo, também deverão parar de
negociar com Cuba. Se o chocolate que a Suíça me vender tiver açúcar produzido
com a cana de Cuba, não comprarei mais". Adivinha de qual lado o mundo
que temia a bomba atômica dos EUA ficou. A ilha socialista caribenha passou a
amargar desabastecimento.
Cuba passou a não ter dinheiro
porque não vendia, passou a não poder industrializar sua produção porque não
porque não podia comprar ferro e maquinário. E o povo cubano passou a viver na
penúria. Nossa, Guto, país comunista passa fome! É claro que passa!
Afinal, os países capitalistas não deixam o país comunista sobreviver. E como
evitar isso? Combatendo o capitalismo, ué. Sabe quando a gente, esses
comunistas, baderneiros, ficamos de mimimi falando "precisamos acabar
com a monocultura, o agronegócio, e precisamos valorizar a agricultura
familiar"? Imagina um país inteiro que só produz cana e tabaco e de
repente não encontra mercado para escoar seus produtos.
Pense numa família inteira
impossibilitada de comprar alface, tomate, repolho, remédio, feijão (um beijo,
Dilma!), arroz, batata no mercadinho do bairro... Tudo que essa família tem são
cana e tabaco. E não consegue vendê-la porque o miliciano fortão da rua de cima,
dono do único mercadinho das redondezas, falou para o resto do bairro que quem
comprasse cana e tabaco naquela casa seria seu inimigo e não poderia mais
comprar nada no seu mercadinho também. A família comeria cana e tabaco? Pois é,
agora imagina isso numa escala geopolítica. É o que acontece com Cuba e
Venezuela. Essa última tem petróleo. Mas, não consegue vender porque os EUA não
deixam. Como venezuelanos não podem beber petróleo, passam necessidade.
Se aquela casa marcada pelo
miliciano dono do mercadinho tivesse cana e tabaco, mas também tivesse uma
horta com beterraba, cenoura, pepino, chuchu, alface, temperos... E tivesse um
galinheiro do qual pudesse extrair ovos... De fome essa família não morreria!
Poderia até não vender nada. Não obteria lucro vendendo alface por um preço
maior que o preço de custo. Mas, não
passaria necessidade. Poderia não buscar lucro. Mas, garantiria sua
sobrevivência, com sua produção voltada à satisfação das suas necessidades
básicas.
Agora, imagina se o bairro
inteiro tivesse, em cada casa, sua horta e seu galinheiro. O miliciano fortão
da rua de cima obrigaria alguém a comercializar ou deixar de comercializar com
alguém? O mercadinho do miliciano teria o poder que tem sendo o único
fornecedor de bens de consumo para aquela região? Quem se preocuparia em
comprar batata com ele se tivesse sua própria batata? Quem dependeria de sua
ordem para garantir a própria alimentação?
Claro que não basta cada um ter sua
horta para nos tornarmos um país comunista. As necessidades humanas são muitas
e é preciso que os países realizem trocas entre si. Mas, quando a gente vê que
podemos nos tornar menos dependentes de um mercado, menos poder lhe damos. E quanto
mais diversificada for nossa produção, menos dependente seremos do outro.
O capitalismo lida com a divisão
de trabalho como estratégia para acelerar a produção. Quando uma cadeia de
produção tem pessoas especializadas unicamente em determinada etapa, o processo
de fabricação e/ou produção passará a ser mais rápido do que seria se cada uma
das pessoas envolvidas no processo tivesse de produzir sozinha todo o bem. A
mesma lógica se aplica à monocultura em detrimento da cultura diversificada. Ao
produtor, interessa focar em uma atividade, dominando todo o mercado com ela, assegurando-se-lhe,
portanto, o lucro pela atividade exercida. Assim, você vende açúcar para todo o
mercado mundial e com seu lucro pode comprar os produtos que não produz. Até o
momento em que você não terá acesso a esses produtos que não produz. É como
acontece com o álcool em gel nas farmácias. Você não produz álcool em gel, mas
vende sua força de trabalho para seu patrão produzir. E compra álcool em gel.
Quando os EUA impõem embargos
econômicos à Cuba, à Venezuela, estão asfixiando a economia desses países,
impondo à suas respectivas populações toda sorte de violações de direitos, à
dignidade, à alimentação, à saúde. Urge que os países passem a ver a produção
como forma de atender às necessidades de sua população e não como meio de
garantir o lucro do fornecedor. Riqueza gerada é para ser dividida entre as
pessoas responsáveis pela sua geração, visando a garantir sobrevivência e
dignidade a todos os membros de uma sociedade. Riqueza não é para ser acumulada
nas mãos de poucos detentores dos meios de produção.
E por onde começo, Guto? Comece
tirando poder de quem produz para lucrar. Dependa menos das grandes redes
monopolistas ou oligopolistas. Pode produzir o seu? Então produza e não precise
mais comprar. Plante sua horta, colha seus próprios legumes, costure suas roupas,
prepare sua comida. Não teve jeito, esbarrou numa tarefa impossível de produzir
em casa e precisa comprar de qualquer forma? Então compre do mercadinho da
esquina ou da padaria do final da rua. Isso financia o pequeno produtor e faz a
economia do seu bairro girar, circulando dinheiro entre os seus pares. Grandes redes
já lucram muito. Não lhes dê mais poder financeiro.
Meu sonho de sociedade é aquela
em que cada um possa ter o necessário para uma vida digna e saudável, sem a valoração
do acúmulo como um incentivo para a produção. Que cada um possa distribuir o
mais com quem tem menos para que todos tenham em condições similares, sem que
falte para qualquer um. É por isso que pratico o desapego, incentivo o
minimalismo e reduzo meu consumo de bens supérfluos, a fim de não enriquecer
ainda mais o produtor por algo que não seja estritamente necessário à minha
sobrevivência. A horta em casa, ainda não fiz. Mas, em breve pretendo começar. Quando
faltar batata no mercado, terei meu purê na mesa ou terei batatas para dar ao
meu vizinho que plantou chuchu.
Quando você se apercebe de que
aquilo que você não deseja deixa de lhe fazer falta, voilà, você descobre
a força que tem nas mãos! Como ela, poderá brigar contra esse sistema capitalista
que faz você acreditar que precisa de algo que não precisa para que sua compra gere
lucro a quem o produziu.