quarta-feira, 18 de março de 2020

Embargos econômicos versus hortas caseiras. O anticapitalismo como ponto de partida para a revolução.


Ah, Guto, esse negócio de ser comunista não é legal, não. Você vem me falar que no comunismo vocês querem combater a desigualdade e acabar com a miséria. Mas, aí a gente vê Cuba e Venezuela... Dois países socialistas... E a gente não vê nem papel higiênico no mercado, o povo morrendo de fome e fugindo de lá! Como é que esse negócio pode ser bom? E essa parada de horta caseira? Para que isso? Qual a relação de uma coisa com a outra? Para ser comunista tem que ter horta em casa?

Antes de iniciar, para evitar confusões de conceituação, a gente precisa deixar claro que ser anticapitalista não necessariamente pressupõe ser comunista (embora eu seja).  Você pode pensar em algum modelo socioeconômico diverso do comunismo, diverso do socialismo, mas que seja também diverso do capitalismo. Você não precisa ser comunista se não quiser (mas, eu adoraria se você quisesse). Mas, precisa enxergar que o capitalismo deve ser combatido! Ainda que você desconheça outro modelo de sociedade e economia, deve ter em mente que o capitalismo não traz sonhos como te fizeram crer que traria.

Dito isto, e voltando ao assunto sobre a fome em Cuba e na Venezuela... Você já ouviu falar em embargos econômicos? Já ouviu falar em bloqueio a Cuba? Boicote à Venezuela?

A gente sabe que cada território possui suas limitações naturais, não sabe? Planta-se maçã e pêssego em lugar frio. Planta-se tomate em lugar quente. Alguns lugares têm peixe, outros têm galinha. São Paulo produz café. Minas Gerais produz queijo. Mato Grosso produz soja e tem gado. Cuba produz açúcar. Venezuela tem petróleo... E é por isso que os países negociam e fazem comércio. Para que cada um forneça aos demais aquilo que produz e traga dos demais aquilo que lhes falta. Lembra das aulas de história e sobre as navegações que saíam da Europa para a Índia em busca de especiarias? Pois é, nem sempre foi fácil comprar pimenta-do-reino e cravo-da-índia em qualquer mercearia.

Imagina agora um país como Cuba, com um espaço tão pequeno e um solo tão pouco variado... O que dá pra fazer lá? O mesmo com o Japão. Noruega. Finlândia. Não se faz muita coisa nessas condições, não é? E por isso mesmo esses países DEPENDEM da produção dos outros para sobreviverem. É preciso fazer negócios. É preciso comercializar. Eles importam tudo aquilo que não produzem e vendem aquilo que podem produzir. Alguns países enriqueceram colonizando outros territórios, roubando-lhes as riquezas produzidas, explorando-os de forma predatória, como Portugal fez com o Brasil durante mais de trezentos anos. Outros precisam negociar.

Cuba produz tabaco e quem fuma diz que seus charutos são os melhores do mundo. Produz também cana-de-açúcar. Exportava açúcar para o mundo todo, especialmente para a Europa e os EUA. Até que virou socialista. E todo mundo em Cuba passou a viver na miséria depois disso. Então, a culpa é do socialismo, certo? Errado!

Não vou entrar no debate sobre violações de direitos humanos em Cuba pós revolução socialista em 1959, como justificativa estadunidense para impor embargos econômicos. Sim, Cuba violou direitos humanos. Mas, não se engane com essa conversa de país dito democrata que vem com o papinho mole de que está embargando o outro para forçá-lo a respeitar direitos humanos. Não aceite a justificativa de um erro sore outro.

Simplificando muito o debate, é possível dizer que a culpa de Cuba e Venezuela estarem do jeito que estão é da ideologia capitalista. Especialmente depois que o mundo se dividiu em dois blocos após a Segunda Guerra Mundial: bloco capitalista, comandado pelos EUA, e bloco comunista, comandado pela extinta URSS (União Soviética, atual Rússia, para vocês que nasceram depois de 1990 e não viram a queda o Muro de Berlim). Havia uma disputa ideológica no planeta entre esses dois blocos, cada qual querendo construir sua sociedade de acordo com seus princípios. Este texto não é sobre comunismo e socialismo. Mas, sobre anticapitalismo, razão pela qual não vou adentrar no que é comunismo ou no que é o socialismo. Capitalismo nós já sabemos o que é; vivemos numa sociedade capitalista, conhecemos de perto seus efeitos.

Nesse embate ideológico, conhecido como Guerra Fria, metade do mundo queria que o mundo todo fosse capitalista e metade do mundo queria que o mundo todo fosse comunista. Cuba se tornou socialista após a revolução cubana, que derrubou o capitalismo naquele país. A revolução foi financiada pela URSS comunista, obviamente causando grande temor nos EUA. E aí, então, quando Cuba virou socialista, os EUA impuseram uma coisinha nada simpática, chamada embargos econômicos ou bloqueio econômico. Prática conhecida no nosso dia-a-dia como boicote. Ora, os EUA são o país mais poderoso do mundo. E poucos países desejam se indispor com quem tem poder, né, não? A não ser que você tenha poder, como era o caso da União Soviética no período que vai do pós-guerra até pouco antes do seu colapso no final do século XX. É aquela situação em que você só ameaça o valentão da escola se você for grandão como ele. Ou, se for pequeno, mas puder contar com o grandão.

Então, imagine aí que, de repente, os EUA, esse país poderosíssimo, que havia mostrado ao mundo seu poderio nuclear quando, em 1945, soltou duas bombas atômicas no Japão, decidiu dizer ao resto do mundo: "a partir de hoje eu não negocio com Cuba. Não compro nada de lá. Não vendo nada para lá. E se vocês, pobres mortais do resto do mundo, quiserem continuar negociando comigo, também deverão parar de negociar com Cuba. Se o chocolate que a Suíça me vender tiver açúcar produzido com a cana de Cuba, não comprarei mais". Adivinha de qual lado o mundo que temia a bomba atômica dos EUA ficou. A ilha socialista caribenha passou a amargar desabastecimento.

Cuba passou a não ter dinheiro porque não vendia, passou a não poder industrializar sua produção porque não porque não podia comprar ferro e maquinário. E o povo cubano passou a viver na penúria. Nossa, Guto, país comunista passa fome! É claro que passa! Afinal, os países capitalistas não deixam o país comunista sobreviver. E como evitar isso? Combatendo o capitalismo, ué. Sabe quando a gente, esses comunistas, baderneiros, ficamos de mimimi falando "precisamos acabar com a monocultura, o agronegócio, e precisamos valorizar a agricultura familiar"? Imagina um país inteiro que só produz cana e tabaco e de repente não encontra mercado para escoar seus produtos.

Pense numa família inteira impossibilitada de comprar alface, tomate, repolho, remédio, feijão (um beijo, Dilma!), arroz, batata no mercadinho do bairro... Tudo que essa família tem são cana e tabaco. E não consegue vendê-la porque o miliciano fortão da rua de cima, dono do único mercadinho das redondezas, falou para o resto do bairro que quem comprasse cana e tabaco naquela casa seria seu inimigo e não poderia mais comprar nada no seu mercadinho também. A família comeria cana e tabaco? Pois é, agora imagina isso numa escala geopolítica. É o que acontece com Cuba e Venezuela. Essa última tem petróleo. Mas, não consegue vender porque os EUA não deixam. Como venezuelanos não podem beber petróleo, passam necessidade.

Se aquela casa marcada pelo miliciano dono do mercadinho tivesse cana e tabaco, mas também tivesse uma horta com beterraba, cenoura, pepino, chuchu, alface, temperos... E tivesse um galinheiro do qual pudesse extrair ovos... De fome essa família não morreria! Poderia até não vender nada. Não obteria lucro vendendo alface por um preço maior que o preço de custo. Mas, não passaria necessidade. Poderia não buscar lucro. Mas, garantiria sua sobrevivência, com sua produção voltada à satisfação das suas necessidades básicas.

Agora, imagina se o bairro inteiro tivesse, em cada casa, sua horta e seu galinheiro. O miliciano fortão da rua de cima obrigaria alguém a comercializar ou deixar de comercializar com alguém? O mercadinho do miliciano teria o poder que tem sendo o único fornecedor de bens de consumo para aquela região? Quem se preocuparia em comprar batata com ele se tivesse sua própria batata? Quem dependeria de sua ordem para garantir a própria alimentação?

Claro que não basta cada um ter sua horta para nos tornarmos um país comunista. As necessidades humanas são muitas e é preciso que os países realizem trocas entre si. Mas, quando a gente vê que podemos nos tornar menos dependentes de um mercado, menos poder lhe damos. E quanto mais diversificada for nossa produção, menos dependente seremos do outro.

O capitalismo lida com a divisão de trabalho como estratégia para acelerar a produção. Quando uma cadeia de produção tem pessoas especializadas unicamente em determinada etapa, o processo de fabricação e/ou produção passará a ser mais rápido do que seria se cada uma das pessoas envolvidas no processo tivesse de produzir sozinha todo o bem. A mesma lógica se aplica à monocultura em detrimento da cultura diversificada. Ao produtor, interessa focar em uma atividade, dominando todo o mercado com ela, assegurando-se-lhe, portanto, o lucro pela atividade exercida. Assim, você vende açúcar para todo o mercado mundial e com seu lucro pode comprar os produtos que não produz. Até o momento em que você não terá acesso a esses produtos que não produz. É como acontece com o álcool em gel nas farmácias. Você não produz álcool em gel, mas vende sua força de trabalho para seu patrão produzir. E compra álcool em gel.

Quando os EUA impõem embargos econômicos à Cuba, à Venezuela, estão asfixiando a economia desses países, impondo à suas respectivas populações toda sorte de violações de direitos, à dignidade, à alimentação, à saúde. Urge que os países passem a ver a produção como forma de atender às necessidades de sua população e não como meio de garantir o lucro do fornecedor. Riqueza gerada é para ser dividida entre as pessoas responsáveis pela sua geração, visando a garantir sobrevivência e dignidade a todos os membros de uma sociedade. Riqueza não é para ser acumulada nas mãos de poucos detentores dos meios de produção.

E por onde começo, Guto? Comece tirando poder de quem produz para lucrar. Dependa menos das grandes redes monopolistas ou oligopolistas. Pode produzir o seu? Então produza e não precise mais comprar. Plante sua horta, colha seus próprios legumes, costure suas roupas, prepare sua comida. Não teve jeito, esbarrou numa tarefa impossível de produzir em casa e precisa comprar de qualquer forma? Então compre do mercadinho da esquina ou da padaria do final da rua. Isso financia o pequeno produtor e faz a economia do seu bairro girar, circulando dinheiro entre os seus pares. Grandes redes já lucram muito. Não lhes dê mais poder financeiro.

Meu sonho de sociedade é aquela em que cada um possa ter o necessário para uma vida digna e saudável, sem a valoração do acúmulo como um incentivo para a produção. Que cada um possa distribuir o mais com quem tem menos para que todos tenham em condições similares, sem que falte para qualquer um. É por isso que pratico o desapego, incentivo o minimalismo e reduzo meu consumo de bens supérfluos, a fim de não enriquecer ainda mais o produtor por algo que não seja estritamente necessário à minha sobrevivência. A horta em casa, ainda não fiz. Mas, em breve pretendo começar. Quando faltar batata no mercado, terei meu purê na mesa ou terei batatas para dar ao meu vizinho que plantou chuchu.

Quando você se apercebe de que aquilo que você não deseja deixa de lhe fazer falta, voilà, você descobre a força que tem nas mãos! Como ela, poderá brigar contra esse sistema capitalista que faz você acreditar que precisa de algo que não precisa para que sua compra gere lucro a quem o produziu.

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