domingo, 27 de junho de 2010

Il Guarany

"- Eu morrerei, mas todos vocês irão comigo!
- O quê? Como?
- Eu vou mostrar a vocês agora!"

tchan-tchan-tcha-ran-ran...

E assim, termina a ópera de Carlos Gomes, baseada no libreto de Antônio Scalvini, deixando no ar de uma plateia exausta a pergunta "mas como ele matou a todos junto consigo próprio?".
Quem teve a ideia de montar Il Guarany, sob a forma de concerto, não foi muito feliz na escolha de um trabalho excessivamente visual, repleto de elementos cênicos, como esta ópera, que se divide em quatro atos, e tem como cenário um castelo, uma gruta, uma aldeia, um porão, um quarto, uma floresta, dentre outros. Não posso me considerar um expert em óperas, tendo visto um total de seis, sendo três encenadas, e três em forma de concerto, cada qual com seus prós e seus contras, não cabendo aqui um aprofundamento da natureza de cada uma das montagens.
Mas uma coisa em comum que percebi nas óperas-concerto a que eu já assisti é que, em todas, o desenrolar da história basta-se a si mesmo para deixar claro ao espectador tudo o que acontece em cena, bastando um pouco de imaginação para se construir mentalmente o pano de fundo para a trama. Assim foi em "A Voz Humana", de Francis Poulenc, cuja simplicidade de um diálogo ao telefone, do qual apenas um interlocutor é ouvido, demonstra por si só todo o desespero da amante abandonada, bem como em "Uma Tragédia Florentina", de Alexander von Zemlinsky, na qual uma relação de adultério resulta no assassinato do amante Guido, encerrada na hipocrisia da adúltera e no cinismo do marido traído, no diálogo final: "- Porque nunca me disseste que eras tão forte?" "- E tu, porque nunca me disseste que eras tão bela?".
Não quero aqui criticar a ópera em si do Carlos Gomes, mesmo porque gosto muitíssimo da linha melódica das composições, com o coro agressivo, e uma percussão marcante, que transmite com precisão a tensão constante do enredo, repleto de traições e guerras.
O que questiono, no entanto, é a escolha desta ópera para ser montada sob a forma de concerto, quando seu libreto é composto, de tal modo que muitos acontecimentos e locações não são expressamente demonstrados nos diálogos, mas em gestos dos personagens, ou na mudança dos cenários.
Desta maneira, quem não tem um conhecimento prévio do livro de José de Alencar, ou mesmo da ópera, e não sabe que Don Antônio, quando permite ao índio Peri que salve sua filha Cecília do ataque dos Aimorés à fortaleza, sacrifica-se explodindo o local, matando consigo os seus inimigos, sai do espetáculo com a sensação de que assistiu a uma história sem final!
Assim também, no segundo ato, quando Cecília encontra-se em seus aposentos e, após entoar uma canção de amor, pensando no seu amado Peri, adormece, surgindo em cena, de forma misteriosa, o antagonista Gonzales, não fica claro que o mesmo invadiu o local pela janela, vez que esta invasão é silenciosa e não aludida na fala do vilão, até o momento em que aquela acorda e, assustada, pergunta-lhe como ele teria adentrado ali. Ato contínuo, surge Don Álvaro, seu pretendente escolhido por seu pai, surgem os aventureiros invadindo a casa, surge Don Antônio e surge Peri. Como se não bastasse a total ausência de privacidade para o quarto de uma virgem do século XVI, o fim da cena ainda traz a invasão pelos Aimorés. Nenhum problema para quem enxerga a cena tal qual acontece. Mas para quem apenas ouve os solistas, o coro e a orquestra, fica a impressão de que o quarto de Cecília nada mais é do que um saco de dormir no meio da floresta, onde já estão todos os demais personagens mencionados. Uma bagunça!
A impressão que me causou é de que quem selecionou Il Guarany para esta temporada - não sei ao certo se esta responsabilidade é da Presidente da Fundação
Theatro Municipal, Carla Camurati, razão pela qual prefiro manter a acusação genérica - partiu do pressuposto de que o espectador que quer assistir a esta ópera, só vai porque já a conhece. Não lhe passou pela cabeça o pensamento de que um espectador curioso quer ver Il Guarani, justamente por não conhecer qualquer composição de Carlos Gomes, e vai ao Theatro Municipal, exatamente visando à formação de uma opinião ainda inexistente?
Deixando de lado esta discussão, cabe ainda salientar o desrespeito com o público - que além de dever conhecer previamente ao que vai assistir, tem que saber falar italiano fluentemente, uma vez que o primeiro ato inteiro foi exibido sem projeções de legenda, e esta ao longo dos demais atos, apresentou momentos de falhas. Não sou tão exigente a ponto de não aceitar a plausibilidade da ocorrência de falhas, a que todos estão sujeitos, mas acredito que o mínimo de respeito ao consumidor que pagou um valor não tão "simbólico" exigia a prestação de uma satisfação quando da entrada ao Theatro, sendo-lhe informado imediatamente acerca da ausência de legendas durante todo o primeiro ato, e sendo-lhe, ainda, conferido o poder de optar por assistir ao espetáculo ou obter o valor de seu ingresso de volta. Todavia, a solução apresentada beirou a ironia quando, ao final do terceiro sinal, depois que todos já estavam acomodados em seus lugares e as luzes já se encontravam apagadas, soou a gravação informando ao público sobre a deficiência na projeção de legendas, terminando de forma impositiva com um autoritário "esperamos a sua compreensão", revelando que você deve compreender ou então o problema é seu! E quem não compreendeu, como ficou? Tomo aqui as dores da plateia, como minhas, embora eu tivesse compreendido.
Mas por outro lado, depois de ver um copinho plástico civilizadamente depositado em um discreto cantinho da escada de acesso às galerias (eu quase pude ouvir a voz da pessoa que o deixou ali, sem nenhuma maldade, dizer "vou deixá-lo aqui no cantinho, não vai nem parecer sujeira, ninguém vai sequer notar"), sendo que todos os corredores do Theatro Municipal tem lixeiras, começo a me questionar se essa plateia é digna de que alguém lhe tome as dores e advogue por si.
Começo a ficar realmente assustado com o nível de quem tem frequentado o local e, cada vez mais, acho descabida a exigência de proibir bermudas, somente sendo permitido aos cavalheiros adentrar no recinto trajando calças. O copinho era a prova de que não é o comprimento de sua vestimenta que vai ditar a extensão de sua educação.
E a ópera? Melodias magníficas, um coral poderoso, sem nenhum adjetivo à altura. Belíssimos os solos do Marcello Vannucci e do Licio Bruno. O soprano Gabriella Pace fez uma entrada fabulosa, com um timbre cristalino, mas no decorrer do espetáculo, fui concordando com a opinião, que inicialmente não foi a minha, de que o alcance de sua voz deixou a desejar, restando sufocada em diversos momentos pela orquestra e demais solistas, sendo esta também a minha observação acerca do barítono Homero Velho.
Ao longo desta resenha de leigo que sou, expus tantas críticas negativas, o que pode parecer aos desavisados que me arrependi de ter saído de casa para o Theatro Municipal, razão pela qual faço questão de esclarecer que não foi o caso. Apesar dos contras, num balanço geral, saí satisfeito. Ainda escuto as notas do Prelúdio do Terceiro Ato, do Coro dos Aimorés (Aspra, crudel, terribile), da Canção do Ouro (L'oro è un ente si giocondo) e da Oração dos Aimorés (O Dio degli Aimorè), lindíssimas, ecoando em meus ouvidos e deixando-me emocionado.
Mas confesso que o tchan-tchan-tcha-ran-ran final da orquestra em lugar da explosão da fortaleza, após o suspense gerado pela promessa "Eu vou mostrar a vocês agora!" ficará registrado no meu anedotário particular, a cada vez que eu lembrar do semblante de decepção de, pelo menos, metade da público, que saiu de lá sem entender coisa alguma, acreditando que alguma cena foi cortada indevidamente.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Balada do Desencontro

Balada do Desencontro

Corre a Lua, que descansa
perdida, entre astros, n'algum ponto cardeal do planisfério....
Mas as noites não tem sido mais tão frias

Amaldiçoando o avanço das tecnologias,
todas as fibras óticas e sinais de rádio,
todos os satélites e ondas eletromagnéticas,
todas as mensagens criptografadas que viajam no espaço –
E que, tendo visto a Lua cerrar os olhos e adormecer,
languidamente, sob a linha do horizonte,
devem ter feito a cama sobre uma nuvem
e repousado a cabeça sobre um meteorito, tornado em travesseiro,
não alcançando pois, o seu destino –
Penso nos desencontros que me afastam o sono
(não obstante pese sobre os ombros
o acúmulo dos cansaços colecionados ao longo do dia,
e que nenhum abraço aliviou)

O ar, cada vez mais denso, não encontra os pulmões
pela trilha cerrada, qual mata virgem, das narinas.
Mas a mente passeia, e atravessa a ponte
tão leve, como já não é minha respiração.

E no instante em que, ao cruzar a rua, ao dobrar a esquina –
qualquer rua, qualquer esquina
(posto que em seu passeio noturno, meu pensamento
não divisa fronteiras, tampouco precisa caminhos),
em me veja de frente com o mar:
No verde que grita nos teus olhos,
no sal que verte por teus poros,
no abismo profundo da tua boca,
onde as línguas se agitam como ondas numa tempestade,
na força que choca meu corpo no teu,

Então, saberei que a busca está acabada.
Neste mar revolto, atracarei meu barco...

Poderei, finalmente – como a Lua – descansar
e aguardar os primeiros raios do Sol
a me aquecerem os pés.

Gustavo Carneiro de Oliveira,
madrugada de 22.06.2010

sábado, 5 de junho de 2010

A Uma Tatuagem

(originalmente publicado em)
Itabuna, segunda-feira, 13 de outubro de 2003.

A Uma Tatuagem

Tenho-te em meus pés, Justiça!
Estou acima de ti
Não estás na cabeça
Ao contrário, estás quase no chão
Todavia, Justiça,
Mesmo estando tão baixo
Jamais irás cair!
Não te piso, não te esmago.
Antes, é contigo
Que sempre caminharei

Gustavo Carneiro de Oliveira
13.10.2003