quinta-feira, 14 de maio de 2020

De olho no STF

Já sabemos que o impeachment de Jair Messias Bolsonaro não vai acontecer, dada a velha prática de venda de cargos que caracteriza a velha política adotada por esse mentiroso, safado e hipócrita, a despeito de sua promessa de campanha, nunca fazer uso do esquema "toma lá dá cá". Não me surpreende, claro, pois quando o então candidato mentia, prometendo moralizar a política e não se aliar a quem tivessem uma ficha suja, fosse por corrupção ou por qualquer outro delito, somente enganou os idiotas que o seguiam bovinamente. Não gosto de fazer uso desse jargão, mas às vezes é necessário: eu avisei.

Conforme já explicado neste post aqui, o impeachment é um processo muito mais político que jurídico e que, sem um apoio popular massivo, não interessa aos parlamentares levá-lo adiante. Afinal, há o risco de perda de capital político perante seu eleitorado, bem como pelo risco de fortalecer ainda mais a imagem do Presidente da República no caso do processo não dar em nada. Não podemos esquecer que Bolsonaro insiste na retórica de que o Congresso não lhe deixa governar. E um processo de impeachment reforçaria esse seu discurso vitimista de herói perseguido e injustiçado, além do fato de que, comprando a fidelidade do Centrão com a entrega de cargos públicos, tem reduzida a chance de ser condenado.

No entanto, paira no ar uma série de acusações feitas pelo ex-Ministro Sérgio Moro, de que Bolsonaro teria praticado crimes comuns, de falsidade ideológica, coação no curso do processo, advocacia administrativa, prevaricação, obstrução de Justiça e corrupção passiva privilegiada. Em fase de inquérito, caso haja provas contundentes desses crimes, a Procurador Geral da República, Augusto Aras, poderá oferecer denúncia formal contra Bolsonaro perante o Supremo Tribunal Federal, que então irá julgá-lo pela prática desses crimes, podendo levá-lo à prisão em caso de condenação. Não é preciso dizer que isto seria a realização de um sonho para mim e para muitos outros brasileiros.

O processo penal pela acusação do Presidente, assim como o processo de impeachment, também precisa ser autorizado pela Câmara dos Deputados, o que fortalece uma tese que eu defendo, de que a tripartição do Poder Estatal como garantia de segurança é uma falácia, o que será tema de um texto que pretendo escrever em momento posterior.

Da mesma forma que a Câmara não tem interesse em levar adiante o processo de impeachment, pode também não ter interesse em autorizar o STF a prosseguir com o julgamento do Presidente. No entanto, considerando-se que, tanto a atuação da Procuradoria Geral da República em realizar a denúncia quanto a atuação do STF em julgar Jair Bolsonaro gozam de uma independência que não existe no Congresso Nacional, visto que o Procurador e os Ministros não dependem de voto popular para a sua permanência no cargo, as chances da Câmara autorizar o julgamento são bem maiores. Isso porque, ao contrário do que se dá no processo de impeachment, uma vez que forem encontradas provas e evidências da prática de crimes comuns praticados por Bolsonaro, o capital político dos Deputados estará mais ameaçado se permanecerem inertes, como tem ocorrido em relação ao impeachment, do que se autorizarem o processo.

Esse procedimento se encontra em fase de inquérito e, ao que parece, o STF anda bastante contrariado com o Presidente depois da visualização do vídeo da reunião ministerial do dia 22/04/2020, ainda mantido em sigilo para a imprensa, o que nos faz ter ainda um resquício de esperança na institucionalidade democrática.

Diante disso, se por um lado o povo não deve se sentir muito esperançoso quanto ao impeachment, por outro, deve se manter de olho na atuação do STF, que neste momento é protagonista na movimentação das peças do xadrez no tabuleiro político nacional. É claro que, independentemente de qualquer coisa, o povo precisa manter a pressão permanentemente, cobrando da Câmara dos Deputados autorização para prosseguimento, seja do impeachment, que deverá ser recebido pelo Rodrigo Maia, seja do julgamento pelo STF, caso seja oferecida denúncia pela PGR.

quarta-feira, 13 de maio de 2020

Lei Rouanet e o discurso anticomunista

Eu amo essa galera que fala da Lei Rouanet sem ter a menor ideia do que está falando. Uma lei publicada durante um dos governos mais reacionários e neoliberais que tivemos, o do Collor, mas que a direita burra insiste em qualificar como coisa de comunista.

A Lei Rouanet (Lei nº 8.313/1991) permite que pessoas físicas e jurídicas financiem COM RECURSOS PRÓPRIOS projetos culturais e artísticos de diversos segmentos, recebendo, para tanto, descontos no imposto de renda, com base em dois critérios.

Se optarem pelo critério do abatimento de percentual máximo sobre o valor doado ou patrocinado, poderão abater até de 60% valor patrocinado ou 80% do valor doado, em caso de pessoa física, do valor devido em impostos, ou 30% do valor patrocinado e 40% do valor doado no caso de pessoa jurídica, dos impostos devidos.

Se optarem pelo critério do abatimento do percentual sobre o valor devido em impostos, pessoas físicas e jurídicas poderão abater até 100% do valor doado ou patrocinado, desde que não superior a SEIS POR CENTO do imposto devido, para pessoas físicas, ou não superior a QUATRO POR CENTO do imposto devido, para pessoas jurídicas.

Esse projeto é muito mais benéfico para as empresas que para os artistas, já que quando atuam como incentivadores da cultura, ganham notoriedade e publicidade gratuitas, o que seria bem mais caro se tivessem de pagar do próprio bolso para terem divulgação.

Parem de falar besteira!

segunda-feira, 11 de maio de 2020

Bolsominion não me merece

"Ah, amigo, é só para dar uns pegas! Vai deixar política interferir na pegação? Vai deixar de se divertir só porque é bolsominion?"

Mas, é claro que eu vou deixar a pegação ser afetada pela política! A pegação é para diversão mútua. E este corpinho gostoso com este papo encantador é um instrumento de prazer, que não deve ser só o meu. E eu não estou aqui para levar prazer a gado. A honra para dispor desta beleza e desta modéstia deve ser de quem mereça. E bolsominion não se enquadra nesta categoria.

Imagina se eu vou permitir a alguém que defende quem tem o propósito de extinguir a minha existência usufruir de todo o prazer que eu posso dar. Não. Definitivamente, bolsominion não terá esse privilégio.

Meu corpo, meu toque, minha pele são preciosos demais para eu conceder a bolsominion a honra de se divertir com isso. Meu papo é bom demais para eu gastar com bolsominion em rolezinho e em app de pegação.

Se essa gente quer fetiche, que satisfaça os seus na igreja fazendo arminha com as mãos, porque estas mãos aqui não vão servir para fazer cafuné em corpo de fascista.

Vírus x Armas

Nos EUA, desde o advento da pandemia, de fevereiro a março de 2020, a venda de armas subiu de 1,2 para 1,9 milhões de armas vendidas. As pessoas que incentivam o fim do isolamento são as mesmas que defendem o armamento do cidadão. Se a quarentena for mesmo interrompida e o pico da doença alcançar os números de suas previsões, teremos multidões de doentes nas ruas, com cadáveres apodrecendo nas calçadas, como vimos no Equador.

A estigmatização decorrente de doenças não é novidade na nossa sociedade, e basta lembrarmos de uma declaração recente do presidente Bolsonaro, quando fomentou a segregação afirmando que portadores de HIV representavam uma despesa ao Estado. A casa em cuja calçada se decompõe um morto será marcada como um local de disseminação e seus habitantes serão vistos não mais como pessoas, mas como agentes de disseminação do vírus.

Em filme de zumbi, a vítima/mocinhx é sempre alguém não infectadx. Para combater aquela legião de mortos-vivos, pode se valer de armas de quaisquer calibres e mesmo assim, ganha a torcida do espectador. Os zumbis não escolhem sua condição. Em sua maioria, são resultado de um vírus, uma bactéria, uma mutação... Não importa, é sempre uma doença largamente infecciosa.

Quando o "cidadão de bem", com seu novo marcador social de "cidadão saudável" sair atirando em eventuais "agentes de disseminação", não devemos nos surpreender. A arte sempre imita a vida.

O fato é que nem tudo é opinião

A pessoa usa um filtro "fica em casa caralho" e defende com unhas e dentes o presidente que manda todo mundo sair de casa.

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A pessoa que não entende que opinião se forma em cima de fatos, mas não se confunde com o fato em si.

O fato é o avião estar caindo. A opinião, para a maioria das pessoas, é a queda do avião ser assustadora. A opinião, para o suicida, é a queda do avião ser uma dádiva. O fato não muda. O avião está caindo.

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E neste caso, O FATO é o presidente ser ultraliberal. O FATO é o liberalismo econômico favorecer grandes empresas através de mecanismos como incentivos fiscais e supressão de direitos trabalhistas. O FATO é o mesmo liberalismo econômico fomentar a desigualdade social e prejudicar os mais pobres. O FATO é que o retorno às atividades gerará lucro para o empresário e acarretará maior espalhamento da doença. O FATO é que quanto mais pessoas adoecerem, menos suporte poderá ser dado pelo sistema de saúde pública. O FATO é que, por favorecer grandes empresários, o presidente ultraliberal, com o colapso da saúde pública, favorecerá os grandes empresários donos de planos de saúde. O FATO é que quem não pode pagar plano de saúde corre mais risco de morte que quem pode, quando a saúde pública entrar em colapso. O FATO é quem pode pagar é quem tem dinheiro e o pobre se fode com a política implementada pelo presidente Bolsonaro. O FATO é que votar no Amoedo não faz de ninguém alguém menos liberal que quem vota no Bolsonaro, já que os projetos de ambos são iguais, ainda que o Amoedo não seja fascista. OPINIÃO é você conferir valor a todos esse fatos. Se você é rico e privilegiado, pode pagar plano de saúde ou hospital privado, é dono de grandes empresas e precisa de gente trabalhando para você, para garantir o seu lucro, então é coerente que sua OPINIÃO seja a favor do governo e sua política ultraliberal. Mas, se você é trabalhador e quer voltar ao trabalho por medo de morrer de fome por estar sem salário, e mesmo assim, sua OPINIÃO é de que a política implementada para favorecer quem te explora é uma boa política, lamento te informar, o FATO e que você é burro pra caralho, porque você quer voltar para o sistema que te oprime em vez de lutar para derrubá-lo.

Então para com essa porra de dizer que tudo é opinião.

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E antes que digam que eu sou comunista, sim, eu sou.

O capitalismo é tão natural quanto andar mascarado

Daqui a cem anos, mostrar a boca, o nariz e o queixo será um tabu. Como já fazemos com os órgãos sexuais. Talvez até desenvolvam desejos sexuais relacionados à exibição de boca, bigode, dentes... Gerações de filhos de pais mascarados crescerão acreditando ser natural usar máscara no rosto. A peça já tem suas versões decoradas, estampadas, com brilho, em couro, etc... Isso nos mostra uma insistência em nos adaptarmos às condições impostas meio, de tal forma que toda a cultura produzida em razão deste meio passa a ser vista como uma tendência natural, como uma "natureza humana".

Gerações futuras de moralistas mascarados dirão que, pelo bem da família, homens e mulheres não poderão tirar a máscara em público. Não será mais uma questão de saúde. Será uma questão moral. A pornografia mais vulgar será aquela em que homens e mulheres mostram todo o rosto. E sorriem quando o fazem! Conservadores dirão que se Deus quisesse que não usássemos máscaras, não nos teria dado a capacidade para criá-las... Nós, que vimos a inserção da máscara no nosso cotidiano, sabemos que não há nada de natural nisso. Nós sabemos que a sociedade está se reformando ao incluir a máscara como item obrigatório de vestuário.

Nós sabemos que a natureza não nos fez mascarados e que, se as máscaras, daqui a cem anos, serão naturalizadas por sua inserção na cultura humana, isso terá ocorrido porque houve um condicionamento da sociedade para incluí-la e para aceitá-la. Nós, já velhos, saberemos que a vida era possível sem máscara. Os nossos bisnetos e tataranetos talvez não acreditem nisso. O mesmo acontece com o capitalismo. Nossa geração pensa ser impossível viver em outra realidade. Pensamos que o capitalismo é um modo natural da vida humana e que não é possível nos desfazermos dele. Da mesma forma que as gerações dos próximos cem, duzentos, trezentos anos, pensarão ser impossível se desfazer das máscaras.

O neoliberalismo nosso de cada dia

Meu pai é um microempresário, no ramo de produtos alimentícios. Quando eu era criança, testemunhei negociações entre ele e outras pessoas no mesmo ramo, a fim de estabelecerem critérios de produção e mercado que pudessem atender a todos que atuavam na mesma área. Lembro como me causava estranheza ver meu pai dialogando com outros concorrentes, numa tentativa de encontrarem diretrizes que fossem benéficas a todos. Na minha cabeça, concorrente era inimigo. Meu pensamento se estruturava da seguinte forma: o produto comprado na mão de um concorrente deixaria de ser comprado na mão do meu pai. Logo, isto significava que estariam tirando do meu pai a possibilidade de ganhar o seu dinheiro. Portanto, o concorrente deveria ser eliminado do mercado. Um dia experimentei comprar de um concorrente para saber como era seu produto. Fiquei tão envergonhado depois, que nem tive coragem de falar em casa. Receava levar uma bronca. Na minha cabeça, eu havia traído o meu pai.

Depois de adulto, já ingressando no mercado de trabalho, percebi que meus colegas de faculdade eventualmente seriam meus concorrentes. Amigos meus! Camaradas! Brothers and sisters! Como seria aquilo? Como eu lidaria numa mesa de audiência na qual, do outro lado, um/a melhor amigo/a, estaria defendendo interesse diametralmente oposto ao meu?

Percebi que era possível ser concorrente dos meus amigos sem deixar de ser amigo. Em verdade, era mais fácil ser parceiro dos meus amigos. E até hoje funciona assim. "Oi, estou sem tempo para pegar essa causa, quer pegar para você? Posso te indicar se quiser". E assim estabeleci boas parcerias com pessoas de minha confiança. E já me deparei com amigos defendendo empresas que eu estou processando. A amizade não fica abalada. Não é nada pessoal. Cada um precisa obter sua forma de levar a comida para casa.

Mas, a visão de que aquela pessoa é uma potencial concorrente permanece ali, quietinha em algum canto da mente. Hoje, somos parceiros. Até o momento em que tivermos de concorrer a uma mesma vaga no mercado de trabalho. "Boa sorte para a gente, amiga/o", dizemos no processo seletivo meramente por cordialidade, já que desejamos que a vaga seja nossa e não do outro. Até desejamos que o outro se dê bem de alguma forma. Que apareça por milagre outra vaga. Viramos inimigos quando um é selecionado e o outro descartado? Não. Mas, o pensamento enraizado é o de que o nosso amigo, nessas circunstâncias, é o nosso concorrente. E que nossos interesses são antagônicos. Minha sobrevivência pela do outro. Farinha pouca? Meu pirão primeiro. "Poxa, amigo/a, que pena que a vaga não foi sua", dizemos comemorando o fato de termos sido nós os selecionados.

Não, não estou dizendo que somos falsos e que não desejamos realmente que nossos colegas, amigos, parceiros, se deem bem. O que estou dizendo é que a racionalidade neoliberal nos põe constantemente em dilemas, fomentando a concorrência nas nossas relações mais próximas.

Advogado defensor da valorização da profissão, varias vezes já me indispus com colegas muito queridos porque enquanto eu recuso trabalhar por qualquer preço, eles aceitam a causa. "Se não for eu, será outro. Preciso desse dinheiro", dizem, ainda que posteriormente se queixem da desvalorização da profissão e não se deem conta de que são responsáveis por isso a cada caso que pegam em valor abaixo da média.

Agora mesmo, durante a pandemia de Covid-19. A gente lamenta o colapso da saúde pública e chora pelas 300, 400, 1.500 mortes diárias, da falta de leitos e de materiais necessários ao correto atendimento para cada uma das vítimas. Mas, quando o único leito disponível no hospital tiver de ser disputado entre você ou seu filho com uma pessoa desconhecida, filha de alguém também, talvez arrimo de uma família inteira, para quem você torcerá? Estaria disposto/a a abrir mão da vaga da sua mãe no hospital para deixá-la para um desconhecido, tão merecedor de permanecer vivo quanto ela? E se escolher viver, sabendo que pessoas morrerão por isso, isso faz de você um monstro?

Não se culpe. A culpa não é sua. A culpa é do pensamento neoliberal, que precisa fomentar a concorrência para se sustentar. Não à toa, o mercado oferece sempre menos vagas do que a sociedade dispõe de pessoas para preenchê-las. Trabalhadores concorrentes não se unem, disputam. Trabalhadores disputando não reúnem força para combater aqueles que os exploram. O neoliberalismo quer que você seja inimigo do outro trabalhador. Para que você garanta sua vaga com unhas e dentes, dando o máximo de si para enriquecer o seu patrão, já que, se não o fizer, o seu concorrente usurpará a vaga que é sua.

Neste podcast, o juiz Rubens Casara levanta o questionamento: "Qual seria a saída neoliberal? Aproveitar a crise para gerar ainda mais lucro para uma parcela reduzida da população ou aproveitar a crise para mudar o modo de pensar e atuar no mundo?"

Bolsominions versus saúde pública

A bestialidade desses animais bolsonaristas se voltou agora para os profissionais de saúde. Em Brasília, uma manifestação pacífica de técnicos e enfermeiros foi atacada por um grupo de "cidadãos de bem", com palavras grosseiras e intimidação. Um dos atacantes foi identificado como missionário evangélico. Não sei porque não fiquei surpreso.

Em Fortaleza, um ônibus que transportava profissionais de saúde foi apedrejado por esses mesmos grupos.

Mas o que querem essas pessoas?

Essa horda de zumbis bolsonaristas não age mais dentro de qualquer lógica racional. Não dá mais para tratar essas bestas selvagens com parâmetros de humanidade.

Os profissionais de saúde cuidam dos doentes. E como esses animais acham que não existem doentes, que é tudo invenção da "mídia comunista", como temos a idiota da Carla Zambelli espalhando fake news de que estão enterrando caixões vazios, reforçando a teoria da conspiração, o animalado negacionista começa a ver com desconfiança todos os dados oficiais.

Assim, tudo que vai de encontro a essa narrativa lunática criada por eles, alimentada por gente como Jair Bolsonaro, Carla Zambelli e outros dessa mesma corja, torna-se uma ameaça para essa gente não pensante, mas que existe e se multiplica, incentivada pela influência da quadrilha que eles mesmos colocaram no poder.

A atuação dos profissionais de saúde reforça o discurso contrário, que essa legião insiste em dizer que é mentira. Com isto, os profissionais de saúde passam a ser vistos como mentirosos mancomunados com a "mídia comunista" para desmoralizar o líder religioso que seu fundamentalismo os obriga a seguir.

Não é possível lidar com essas pessoas valendo-se de discurso de paz e amor. É preciso neutralizá-las. É preciso calar Jair Messias Bolsonaro e Carla Zambelli, devolvendo-os ao ostracismo de onde jamais deveriam ter saído. A gente está falando de um grupo de negacionistas que querem voltar a movimentar a economia e acham que tudo o que está acontecendo é uma conspiração chinesa para quebrar a economia ocidental e implantar o comunismo no mundo.

Não é possível dialogar com pessoas que atacam aqueles que estão trabalhando na linha de frente do combate ao coronavírus. E os atacam simplesmente porque são profissionais de saúde. E profissionais de saúde, ao clamarem para que as pessoas fiquem em casa, tornam-se uma ameaça. Tornam-se comunistas e inimigos do mito. Bolsonaro já é um fenômeno religioso e está protegido pela horda de fundamentalistas que o seguem por fé.

Não irei me surpreender quando os jornais começarem a divulgar notícias de que esses mesmos grupos de seres sem cérebro terão tentado invadir hospitais de campanha para destruir leitos construídos e atacar as pessoas que estão trabalhando ali.

Quem puder, fique em casa. Mas, se formos para as ruas, tratemos no soco todos os bolsominions que encontrarmos. Tolerar a intolerância é ser com ela conivente. E confundir a reação de defesa com a ação do ataque é má-fé intelectual.

O exercício da cidadania para além das urnas

A cidadania se exerce de forma muito mais ampla do que simplesmente votando. Ser politizado não é ter político de estimação, mas fiscalizar, incentivar ou fazer oposição às decisões tomadas em nosso nome pelos políticos que lá estão.

Se você tem uma empresa e contrata um funcionário, seu interesse não se encerra no ato da contratação. Dizer que a obrigação do cidadão acaba na hora em que aperta o botãozinho verde da urna é como dizer que você contratou alguém para deixar livre atuando à sua revelia para fazer o que vem quiser.

Não dá para colocar no mesmo balaio, como se fosse tudo a mesma coisa, quem tem político de estimação e quem defende pontos de vistas ideológicos que sejam de interesse público. A vida social demanda obrigações de todos para com todos. E isso é muito mais do que simplesmente votar ou do que defender político com unhas e dentes.

É preciso ter senso crítico para defender e rechaçar, não a pessoa de cada político, mas as decisões que eles tomam em nosso nome. Por isso que se chama esse sistema de democracia representativa: porque os caras que estão no governo devem representar nossos interesses.

Vejo diariamente alguém reclamar que odeia política ou se orgulhar de que não se envolve em discussão política. E é urgentemente necessário mudar esse pensamento de que ser apolítico ou de acreditar que cidadania se exaure no voto é coisa de gente bacana e diferentona, só porque não se envolve em conflito.

Senão, depois, você, que bate no peito com orgulho para dizer que político é tudo igual, e que, por isso mesmo, não discute, não irá poder se queixar do que fazem ou deixam de fazer as pessoas que estão lá para trabalhar em nosso nome e para atender aos nossos interesses.

Antibolsonarismo é uma questão de princípios

"Ain, migo, é meu tio... É uma amiga... Não vou me indispor, né? A gente sempre se deu bem no passado. Não vou deixar a política criar estresse na relação."

Em nome de um passado, estamos nos sujeitando a não termos futuro. Tenho aqui no meu perfil, como contatos adicionados – não mais como amigos – parentes consanguíneos e gente que foi parente por afinidade e que, já que não existe mais afinidade, não há mais relação de parentesco.

Um tio bolsonarista fez o favor de morrer antes das eleições e não lamento. Espero que os outros que, infelizmente ficaram vivos para serem comparsas de quem elegeu esse criminoso, sigam o mesmo caminho. Ou mudem. Não tenho motivo nenhum para guardar com carinho um passado de quem não me enxerga no seu futuro...

"Por que não deleta esses parentes, Guto?"

Porque quero que eles me leiam. Quero que eles pensem no que andam fazendo. Porque não mudamos a realidade do mundo falando somente com nossa bolha ideológica. E se, hoje, não tenho qualquer vontade de coexistir com essa gente, desejo que um dia acordem para a realidade e apoiem a mesma luta que eu apoio, da inclusão e da igualdade de oportunidades. Se um dia isso acontecer, é possível que eu desenvolva alguma admiração de quem revistou o próprio ponto de vista, assumiu um erro de postura e se dispôs a mudar, com humildade para dizer "eu errei".

Eu errei! Eu já vivi numa bolha de privilégio de quem é homem cisgênero, branco, filho de classe média, e achava que movimento social era mimimi. Que militância era bagunça. Não tenho vergonha nenhuma de assumir o tanto de bobagem que pensei e falei. Embora me envergonhe desse passado em que eu dizia que "tudo bem ser gay, mas não precisa dar pinta" ou "bandido bom é bandido morto" ou "mulher já vota, já trabalha fora, o que mais ela quer?" eu aprendi a me apropriar da minha história sem renegá-la, para transformá-la.

E é por saber que eu mudei que eu acredito que outros também podem.

Mas, não, não somos mais amigos. Não me esperem no almoço de domingo ou na ceia de natal (detesto natal, inclusive). Não contem comigo para nada. Para nada! Não esperem qualquer manifestação de carinho ou palavra de conforto que não seja, somente no caso de uma mudança de posicionamento político, "bem-vindx à minha luta". Caso não aconteça, permanecemos inimigos.

O Brasil que matou Flávio Migliaccio

"Me desculpem, mas não deu mais. A velhice neste país é o caos como tudo aqui. A humanidade não deu certo.
Eu tive a impressão que foram 85 anos jogados fora num país como este. E com esse tipo de gente que acabei encontrando. Cuidem das crianças de hoje!"
Nunca costumo postar notícias meramente informativas sobre a morte de alguma personalidade famosa, se não for com uma intenção para além de dar ciência às demais pessoas. Normalmente, quando um ator, uma cantora, um escritor famoso morrem, quase todos os contatos divulgam ao mesmo tempo "Fulano morreu", como se fosse uma informação desconhecida. Furto-me de ser mais um na multidão.

No entanto, desta vez, não venho aqui apenas para dizer "Flávio Migliaccio morreu". Venho aqui para denunciar que o Brasil matou Flávio Migliaccio.

Divulgar uma carta de suicídio de uma pessoa pública como ele é muito mais que puro sensacionalismo, é um convite à reflexão: O QUE NOSSA SOCIEDADE TEM FEITO DE TÃO ERRADO A PONTO DE FAZER COM QUE PESSOAS QUEIRAM SAIR DO PALCO DESCENDO AS CORTINAS SEM APLAUSOS?

É preciso lançar holofotes sobre o caso e denunciar o que a política, o caos social, a economia, o descaso desse governo para com as pessoas, em especial às pessoas idosas, vem causando.

A política neoliberal escolhe pessoas por sua utilidade prática: quem deve viver é quem produz e quem consome, necessariamente conjugando ambas as características, sob pena de ser descartável.

Quem não tem força física para continuar vendendo mão-de-obra ao mercado está fora. A reforma da previdência veio demonstrar como nosso Estado burguês trata pessoas de idade. São despesas. O Estado instrumentalizado pelos detentores do grande capital não tem o menor interesse em investir no idoso. Ele nem trabalha mais! Aposente-o de qualquer maneira, de forma capitalizada, financiando instituições financeiras e ganhando uma miséria no final da vida.

Velho dá gasto. Velho gasta com remédio. Velho gasta com saúde pública. Velho gasta até espaço nos ônibus quando sai de casa e é obrigado a ouvir desaforo porque não tem nada que fazer na rua, então para que ocupar o assento de um trabalhador cansado?

Esse tratamento está incutido no pensamento neoliberal em sua gênese: o mercado precisa se regular. E para se regular precisa de quem produz. Suga a força vital do trabalhador até que uma doença ocupacional ou a idade o descarte, quando então poderá ser substituído. Há tanta gente sem trabalho querendo uma oportunidade, não é mesmo?

Nesta pandemia de coronavírus, verificamos na fala do Ministro da Saúde Teich, aquele que faz cosplay de Frankenstein, que o Estado, ao ter de fazer a escolha por quem deve ocupar um leito escasso no sistema de saúde pública, pode descartar um velho para fazer viver um jovem. Afinal o jovem ainda tem muita vida pela frente. Leia-se: o jovem ainda tem tanto vigor para produzir e enriquecer o empresariado, deixemos para descartá-lo quando surgamos dele toda essa energia. O velho? "Lamentamos profundamente, mas é uma escolha difícil. Nosso sistema nos obriga a isso. Sentimos muito. O Estado não pode arcar com os custos de tudo sozinho."

E ainda há quem se compadeça. Não, não do velho. Do Estado cooptado pela burguesia para atender às suas vontades. Do sistema. Como se o sistema fosse uma criação da natureza e não uma construção humana.

É para esse sistema que a direita liberal nos quer levar de volta, tirando-nos de casa, obrigando-nos a trabalhar para a economia não quebrar. A direita liberal não considera a possibilidade de mudar o sistema, de romper suas estruturas e permitir a implantação de um outro sistema, gerador de uma sociedade mais justa e igualitária.

"O que podemos fazer?"
"As coisas são assim mesmo."
"Que ódio! Ninguém faz nada!"
"Por isso que eu não voto, não adianta nada mesmo."
"Vai ser sempre assim, então não gastar minha energia lutando."

Não estamos dispostos a gastar nossa energia lutando, mas nos dispomos a gastar nossa vida inteira perdendo energia em troca de um trabalho qualquer que nos garanta apenas um salário baixo. Até envelhecermos e sermos descartados.

Toda vez que você vir um idoso massacrado pelo sistema capitalista, não se isente da sua responsabilidade com um carinho oco na sua consciência, dizendo-se frases como "tadinho, mas não havia o que ser feito". Antes, diga, "sim, havia o que ser feito, e nós não fizemos nada!"

O Brasil de Bolsonaro segue assassinando pessoas. Uma maioria anônima, que não comove ninguém. Que não faz ninguém postar "Morreu hoje o Zé da Padaria". Mas, o mesmo Brasil que assassina o Zé da Padaria assassina um ator reconhecido do grande público.

A humanidade que falhou, deixada na despedida de Flávio Migliaccio, não é uma humanidade deixada lá longe, como um grupo do qual não fazemos parte. Somos nós. As crianças, de quem ele pediu que cuidássemos, são as nossas. Não as dos outros. Chega de achar que o inferno são sempre os outros. Que valores NÓS estamos dando a quem NÓS educamos? Que sociedade NÓS queremos construir e como NÓS estamos fazendo isso?

Queremos continuar descartando idosos como se fossem produtos inúteis ou queremos viver em um sistema que nos possibilite salvar as pessoas da angústia de não serem toleráveis, por serem um fardo improdutivo?

Não é tempo de salvarmos a economia que mantém girando a engrenagem desse sistema cruel e excludente. É tempo de deixarmos asfixiá-la, sufocando todas as estruturas que dependem dela para sobreviver, até que todo o maquinário se desmonte. Salvar o neoliberalismo é continuar permitido que idosos sigam se suicidando pelo desamparo de serem um peso.

Por que Rodrigo Maia não recebe o pedido de impeachment?

O processo de impeachment – decorrente da prática de crime de responsabilidade – é um processo muito mais político que jurídico. É o Presidente da Câmara dos Deputados quem recebe o pedido. Os deputados, com no mínimo de dois terços, devem votar para autorizar o julgamento e é o Senado quem julga o Presidente da República. A participação do judiciário neste processo é mínima, apenas presidindo a sessão de julgamento.

Por se tratar de um processo político, os envolvidos – Deputados e Senadores – não têm interesse em atuar se correrem o risco de perder seu capital político: o seu eleitorado.

Jair Bolsonaro vem se aliando ao Centrão, grupo de partidos de direita e centro-direita que compõem a maioria das duas casas legislativas e se julgam neutros no embate ideológico direita-esquerda. São os chamados isentões, que de isentos não têm nada. São grupos oportunistas que se sustentam na política há anos, nadando de acordo com as marés dos seus interesses. Foram aliados de FHC e do PT no governo Lula e parte do governo Dilma, quando então debandaram de lado e aplicaram o golpe em 2016.

Bolsonaro prometeu ao Centrão – DEM, MDB, PP, PL, Republicanos – cargos e liberação de verbas parlamentares para aprovação de seus projetos. Com isto, a chance de que esses partidos votem contra o impeachment e impeçam o julgamento é alta.

É aqui que entram os riscos para o Rodrigo Maia e demais envolvidos. A imagem de Jair Bolsonaro se encontra bastante desgastada, especialmente por conta da saída de dois pilares do seu governo, os ex-Ministros da Saúde e da Justiça, Mandetta e Moro. No entanto, aliando-se aos partidos do Centrão, o Presidente ganha força política. Quem votar a favor do seu impeachment tem chance de não sair vitorioso e isso poderá criar um enorme fortalecimento na imagem de Bolsonaro. Isso porque ele já vem há tempos dizendo-se perseguido pelo Congresso, vendendo o discurso de que não o deixam governar em paz.

Caso o processo de impeachment seja frustrado em qualquer de suas etapas, aqueles que votaram a favor ficarão queimados perante o eleitorado do Presidente, que sairá fortalecido deste imbróglio, e talvez até perante o próprio eleitorado. Politicamente, ganharia quem se aliasse a Jair Bolsonaro, incluindo os militares, aumentando-se as chances de um golpe de Estado com o apoio da categoria.

Rodrigo Maia não quer correr o risco de sair tachado como um perseguidor do Presidente da República, embora esteja aparente o seu interesse no impeachment, com tantas manifestações de repúdio às suas falas insanas e atos irresponsáveis. Rodrigo Maia precisa da certeza de que o impeachment será votado, e Jair Bolsonaro será impedido de seguir em seu projeto de destruir o país.

E o Centrão? O Centrão não está na política há tantos anos à toa. São estrategistas, escorregadios, que possuem – sabe-se lá por qual motivo – um eleitorado fiel. E da mesma forma que vendem a alma ao diabo aliando-se a qualquer um que atenda aos seus interesses, também se vendem ao seu eleitorado.

Caso os eleitores isentões também não se manifestem contrários à aliança com Bolsonaro, nada a impedirá. Com isso, a participação popular se faz mais necessária que nunca. É preciso que eleitores de todos os partidos se manifestem contrariamente a esta aliança.

Somente percebendo uma ampla manifestação popular contrária, capaz de colocar em risco as votações dos partidos integrantes do Centrão nas próximas eleições, Deputados e Senadores deste grupo poderão deixar de lado a aliança com Bolsonaro. Por isso, é preciso mostrar que estamos contra. Se não podemos nos manifestar nas ruas, podemos nos manifestar nas redes.

Quando Rodrigo Maia manifesta repúdio a Jair Bolsonaro, o que está fazendo, na verdade, é sinalizar seu eleitorado que precisa do seu apoio para que receba o pedido de impeachment e o leve à aprovação pela Câmara e a julgamento pelo Senado. Por isso, se não pudermos tomar as ruas, tomemos as redes, subindo hashtags #ImpeachmentJá, #ForaBolsonaro e #RecebeMaia, para que possamos mobilizar o Congresso Nacional, assegurando aos políticos que o compõem que o povo está ao seu lado a favor do impeachment.

Manifestem-se diariamente! Quanto mais ampla for a participação popular a favor do impeachment, maior a chance de sua votação e da expulsão de Bolsonaro da vida pública. É preciso frear o Presidente da República, antes que a destruição do Brasil e a entrega das nossas riquezas para os EUA atinja um patamar irreversível.

A nova direita conservadora segue obsoleta como os velhos liberais

Dia desses um amigo a quem eu outrora definia como liberal, talvez o único com esta qualificação que eu considere com afeto no meu círculo de contatos, tentando explicar seu ponto de vista sobre o mundo, a política e a sociedade, definiu-se como um conservador, corrigindo-me por categorizá-lo como liberal.

Disse-me, então, que conservadorismo seria um termo que melhor descrevia sua perspectiva política, alertando-me se tratar de algo extremamente complexo, que ultrapassaria o entendimento mediano acerca de definições como direita ou esquerda e liberal ou intervencionista. Sugeriu-me um vídeo para que eu assistisse a uma entrevista com o filósofo e escritor Eduardo Wolf, que discorreria sobre quem seria "a nova direita", para que eu compreendesse melhor seu ponto de vista acerca do conservadorismo, como contraponto ao progressismo, de forma que ampliasse minha visão para além da dicotomia "esquerda e direita".

Quando alguém me alerta sobre a complexidade de um tema sem me dar qualquer explanação sobre ele, embora eu me ache minimamente inteligente, não pressuponho que qualquer conhecimento que eu tenha sobre qualquer assunto seja suficiente para tornar fácil o entendimento sobre aquilo que pretendem explicar ou me apresentar. Se me dizem que o assunto é difícil, partirei do princípio de que é, de fato, difícil.

Assim, assisti à entrevista do filósofo Eduardo Wolf, esperando que talvez uma nova forma de compreensão que até então me fosse desconhecida me convencesse de que a nova direita pudesse ser uma corrente ideológica com a qual, quem sabe, eu viesse a me identificar se abrisse mão dos meus preconceitos. Não foi desta vez.

Para minha surpresa, o assunto que eu esperava que fosse "bastante complexo" se mostrou bastante raso e superficial e não me apresentou absolutamente nada que eu já não soubesse e que já não tivesse refutado na construção da minha percepção de mundo.

A entrevista já começou mal quando tomou por pressuposto a existência de uma "natureza humana" sobre a qual se pretendia discorrer. A ideia de natureza humana não encontra respaldo na ciência, sendo tema de um debate antigo entre as ciências sociais – história, sociologia, antropologia, etc. – e as ciências naturais, em especial a biologia. Para as ciências sociais, não existe uma natureza humana. Ou seja, ao contrário do que se verificam em outras espécies animais, que possuem características inatas, gravadas em seu DNA, que conferem a todo o grupo daquela mesma espécie, aspectos comportamentais, inclusive a capacidade de socializar, como as abelhas e formigas, ou instintos de sobrevivência, sexuais ou alimentares, o ser humano é fruto do processo socializador e cultural. Assim, exemplificando, enquanto um filhote de leão que nunca fora antes apresentado a um naco de carne, se for colocado diante do primeiro bife sangrento, avançará vorazmente para se alimentar, sem que ninguém necessite ensiná-lo que aquilo é comida. O ser humano, ao contrário, saberá que algo é comestível porque antes dele outros seres humanos foram socializados, condicionados, ensinados que aquilo – seja lá o que for – é comida. Por isso, enquanto nossa sociedade observa com horror algumas sociedades orientais deliciando-se com carne de cachorro, outras sociedades, como a indiana, nos olham chocadas por comermos carne de vaca, animal que consideram sagrado.

Quando a entrevista já parte da ideia de que existe uma natureza humana a qual se propõe a explicar, a mim já pareceu bastante problemática. Se por um lado, a discussão sobre a existência ou não de uma natureza humana não é pacífica, sendo ainda objeto de debate entre a biologia e a antropologia, por outro, o mais perto de certeza a que já se chegou é a de que, se existem aspectos da humanidade que são inerentes a todo e qualquer ser humano, independentemente da cultura em que esteja inserido, tais aspectos se revelariam apenas potencialmente capazes de definir o desenvolvimento daquele indivíduo, não sendo condicionante de qualquer "destino traçado" se o indivíduo não for exposto a condições sociais que efetivamente estimulem aquele potencial supostamente inato. Repito, SE EXISTIREM.

A entrevista prossegue afirmando que o conservador da atualidade está imbuído do pensamento liberal do século XVIII, formulado por pensadores iluministas europeus e estadunidenses que visavam a derrubar o Antigo Regime, o absolutismo monárquico que concentrava todo o poder estatal na pessoa do Rei. Com isto, propõe-se a tecer loas ao conservadorismo, tomando novamente por princípio que o pensamento liberal, ao asfixiar a tirania absolutista, necessariamente deveria ser aceito como o padrão de comportamento, isto é, o filósofo entrevistado partia já da ideia de que as reformas liberais do século XVIII haviam sido positivas e que, por conseguinte, os conservadores atuais, a nova direita, ao repetir o mesmo padrão de ideias, estaria de acordo com o dever ser. O que se verifica, portanto, é que existe uma moralização maniqueísta que pressupõe, necessária e inegavelmente, que o antigo regime seria em si mesmo uma coisa ruim ou negativa e o ideal revolucionário burguês, inspirado no iluminismo, seria necessariamente algo bom ou positivo.

Não se aventa em nenhum momento que o republicanismo liberal que pairou sobre a Europa e os Estados Unidos no final do século XVIII seria estimulado por uma visão eurocêntrica do mundo e que, se trazia vantagens à sociedade europeia e à dos Estados Unidos – que lhe copiava – não se podia dizer o mesmo para as demais sociedades colonizadas pelo pensamento europeu. Pensadores liberais eram preocupados e comprometidos com a burguesia ascendente. O conservador – ou a direita contemporânea – reproduz, portanto, o mesmo padrão eurocêntrico burguês, que seleciona grupos por sua suposta trajetória evolutiva, justificando, com isso, que países da Europa pudessem invadir outros territórios, dizimar suas populações, suplantar as culturas locais, impor o seu padrão de pensamento, roubar suas riquezas. Tudo porque a natureza humana dos europeus supostamente os faria superiores.

Outro aspecto que me chamou atenção na entrevista foi que o filósofo entrevistado tomou como pressuposto que os debates existentes sobre direita e esquerda já são travados a partir de um ponto moralizador, que coloca a direita como egoísta e individualista, e a esquerda como preocupada com a coletividade. Assumindo que os debates partem desse princípio, propõe-se a construir uma "defesa" da direita, tentando desconstruir a falsa percepção de que a direita seria uma espécie de vilã. Equivoca-se, porém, quando nivela o debate público pela ótica do senso comum, atribuindo aos debatedores uma superficialidade meramente pautada pela moralidade do bem e do mal.

Diferentemente do que dá a entender Eduardo Wolf, os debates mais sérios sobre direita e esquerda têm como elementos estruturais condições objetivas que não estão necessariamente vinculadas à noção de bem ou mal, o que somente viria a se concretizar em um momento posterior, numa etapa em que aspectos subjetivos viessem a ser colados aos objetivos, após um juízo de valor atribuído a cada elemento constitutivo dos conceitos de direita e esquerda.

Neste aspecto, poder-se-ia dizer que, politicamente, o pensamento de direita é atrelado à noção de necessidade de eficiência do ente público, partindo do princípio de que a sociedade é naturalmente desigual, não havendo nada que se possa fazer quanto a isto. Traz as noções de que os indivíduos são recompensados de acordo com o tamanho do seu esforço, o que faria a sociedade melhor ao estimular a todos darem o melhor de si, sendo proporcionalmente recompensados. Assim, se a desigualdade social persiste, isto se dá porque há menos esforço de um grupo e mais do outro.

O pensamento de esquerda, por sua vez, parte do princípio de que as desigualdades sociais não são naturais e, por decorrerem das relações sociais, podem e devem ser combatidas. O valor perseguido pelo pensamento de esquerda é o da equidade, devendo existir uma responsabilidade social de cada membro do grupo para com os demais. Desta forma, o ente público, manifestado pelo Estado, deve ser forte, para fomentar o combate às desigualdades através da gestão de recursos, arrecadando tributos e distribuindo riquezas com o escopo de reduzir as diferenças.

Quando um pensador de direita, conservador, assume que os debates se pautam na "vilanização" da direita, isto me parece problemático por configurar que o próprio pensador lhe atribui tais valores.

Por fim, a proposta de Eduardo Wolf é a de que, por não serem esquerda e direita conceitos fixos que se encerram em si mesmos e, que por causa disto, devem ser sempre analisados à luz de um parâmetro comparativo, hoje não seriam precisos para delimitarem espectros políticos e ideológicos. Decorrente disto, conclui que em vez de utilizarmos termos direita e esquerda, mais sentido faria que fossem usados os termos conservador e progressista, que, de acordo com ele, melhor definiriam os dois grupos ideológicos.

Para mim, há tempos já estava clara essa imprecisão na utilização das palavras direita e esquerda, já que ambas necessitam sempre de um referencial ("direita ou esquerda em relação a que?"), fazendo sentido que se almeje substitui-los por conservadores e progressistas, sendo o primeiro aquele grupo formado por quem pretende manter – ou conservar – a sociedade tal como se encontra, e o segundo, aquele que, reconhecendo necessidade de reestruturação social, tem por objetivo mudar a sociedade.

Desta forma, considerando-se que o conservador – ou a nova direita – assume como ponto de partida que as desigualdades sociais decorrem de uma natureza humana, na qual, com o respaldo que me é dado pelas ciências sociais, eu sequer acredito, e para os conservadores já se trata de fato posto; considerando-se que os conservadores também já assumem como pressuposto inequívoco que o modelo de organização social europeu colonizador deve ser reproduzido por todas as demais organização sociais, sem respeitar as diferenças de cada uma delas; considerando-se, ainda, que o pensamento republicano liberal do século XVIII, é dogmático no tocante às vantagens do republicanismo, da descentralização do poder e/ou da duração de mandatos, em oposição à concentração do poder vitalício na mão do rei, por adotar como premissa inquestionável que a concentração do poder vitalício será sempre prejudicial, continuo não convencido de que tal pensamento proporcione melhores condições às sociedades. Por todos esses motivos, continuo achando que deve ser rechaçado por gerar mais desigualdade e injustiça.

A quem tiver interesse, segue o link com a entrevista: https://youtu.be/22W9zQH3MYg