Assaltam-me, vez ou outra, pensamentos mórbidos
acerca do fim da vida. Não a vida como um todo. Não falo aqui de uma grande
catástrofe capaz de exterminar todo e qualquer ser vivente. Falo apenas da
minha vida. Do fim da minha vida. É natural. É periódico. É inevitável.
Especialmente depois de ter vivenciado situações peculiares em que o pensamento
de morte se fez diariamente presente. E aqui, reservo-me o direito de repetir o
velho clichê de que a morte é a única certeza que temos da vida.
Algumas semanas atrás, questionando-me acerca do
que eu escolheria como meu próprio funeral, cheguei à conclusão de que considero todos estes ritos extremamente primitivos, arcaicos e desnecessários.
Existe toda uma indústria que lucra com a morte alheia e eu não gostaria de
alimentá-la. Mas, não somente isto. Acho realmente – não sei exatamente porque
– pouco civilizado cavar um buraco, depositar um cadáver vestido para gala,
como muitas vezes jamais se vestiu durante sua vida inteira, enquanto parentes
e amigos se despedem chorando, lamentando a perda e, por fim, jogando terra
naquele resto que um dia foi uma pessoa.
E a mera probabilidade de vir a ter esculturas
cristãs e placas com orações ornando meu sepulcro me causa uma ojeriza quase
táctil. Como ateu, consideraria afrontosa a presença de um padre, um pastor ou
qualquer tipo de sacerdote fazendo da minha morte o pretexto para a realização
de um culto a uma entidade na qual vivi sem acreditar, proferindo sermões
vazios de sentido, em que predominassem o tom resignado por, em tese, eu habitar dali em diante um lugar
melhor. Definitivamente, estar debaixo da terra jamais seria um lugar melhor
para mim. Especialmente ao se considerar o misto de claustrofobia e tafofobia
que sempre carreguei comigo.
Descarto com a mesma veemência o ritual da
cremação. Não vislumbro o menor sentido quando imagino minha mãe ou algum outro
parente vivo me levando pra casa sob a forma de cinzas, especialmente depois de
eu ter sido queimado, lançando no ar certa quantidade de dióxido de carbono.
Rituais fúnebres são poluentes. Rituais fúnebres são antiecológicos. E
egoístas. Para satisfação da vaidade dos familiares, gastam-se fortunas com os
melhores esquifes, com roupas novas, muito provavelmente confeccionadas com
materiais não biodegradáveis, que levarão centenas de anos para se decomporem. E
eu não me sinto confortável com a ideia de que minha morte produzirá degradação
ao meio ambiente, sendo-me suficiente a que produzo em vida.
Sempre defendi a ideia de doar todos os meus
órgãos aproveitáveis e ter a sensação de que minha morte não terá sido em vão.
No entanto, tendo enfrentado um câncer, existe uma grande possibilidade de
que nenhum será aproveitável. E ainda que sejam alguns, o que fazer com
todo o restante? Quilos de ossos, músculos e gorduras simplesmente depositados
sob a terra para apodrecerem sem ao menos servirem de adubo a algum espécime
vegetal em estado natural, que porventura esteja ameaçado de extinção? Inútil
desperdício.
Saltando de pensamento a outro, tomei uma decisão
que pode parecer insana aos olhos dos desavisados. Mas, quem se importa? É livre o
meu direito de dispor do meu corpo morto. O artigo 1.881 do Código Civil em
vigor me dá a liberdade de decidir como será meu rito fúnebre, como minha
vontade derradeira.
Não tenho andando com paciência para trâmites
legais nos últimos tempos, por isso, faço deste texto meu codicilo público. Pelo
menos até que tenha tempo de elaborar um na forma prevista em lei. Se algo grave
me ocorrer antes que tenha criado todas as disposições testamentárias e codicilares,
que sirva este texto como comprovação de minha vontade: quero virar comida de
animais carentes, sejam eles cães, gatos, ou alguma outra espécie de carnívoro que viva na rua ou seja mantido em
instituições para proteção.
Não, isto não é uma brincadeira. Tampouco tem a mera intenção de causar algum choque. Apenas saltou-me à mente como uma
epifania, num momento de reflexões diversas sobre o sentido de viver e morrer,
mostrando-me que, para os valores que agreguei ao longo da minha vida, eu não
poderia ter um fim mais nobre!
Quero meu cadáver fatiado em bifes suculentos e
jogados aos animais miseráveis que vivem - e sobrevivem - sem eira nem beira e que conhecem apenas o
dia de hoje, o qual, muitas vezes termina sem que haja qualquer mudança em sua condição famélica.
Nada há de chocante em tudo isto. Quem fatiaria um com um ser humano e o atiraria a cães famintos? A mesma indústria que gira em torno da morte. Nesta hipótese, entretanto, movimentada por um fim nobre. Antes que argumentos vagos de que esta logística se torne
impraticável unicamente por parecer macabra, questiono se é menos soturno depositar
um cadáver numa caixa e atear fogo até torná-lo cinza; se é menos apavorante
despir, banhar, vestir com roupas novas, perfumar e cobrir de flores um ser
inerte e gelado, que nenhuma utilidade terá, senão apodrecer lentamente até
desfazer-se em pó.
Não é isto que quero para mim. Quero em vida sentir o alívio de que
pelo menos por um dia cães sarnentos e gatos vadios, filhos de ninguém, tenham
sido alimentados com carne fresca, não por mim, mas de mim. Por que se o amor verdadeiro
é aquele que ultrapassa os meandros da morte, assim é o amor que tenho para dar.