segunda-feira, 11 de maio de 2020

A nova direita conservadora segue obsoleta como os velhos liberais

Dia desses um amigo a quem eu outrora definia como liberal, talvez o único com esta qualificação que eu considere com afeto no meu círculo de contatos, tentando explicar seu ponto de vista sobre o mundo, a política e a sociedade, definiu-se como um conservador, corrigindo-me por categorizá-lo como liberal.

Disse-me, então, que conservadorismo seria um termo que melhor descrevia sua perspectiva política, alertando-me se tratar de algo extremamente complexo, que ultrapassaria o entendimento mediano acerca de definições como direita ou esquerda e liberal ou intervencionista. Sugeriu-me um vídeo para que eu assistisse a uma entrevista com o filósofo e escritor Eduardo Wolf, que discorreria sobre quem seria "a nova direita", para que eu compreendesse melhor seu ponto de vista acerca do conservadorismo, como contraponto ao progressismo, de forma que ampliasse minha visão para além da dicotomia "esquerda e direita".

Quando alguém me alerta sobre a complexidade de um tema sem me dar qualquer explanação sobre ele, embora eu me ache minimamente inteligente, não pressuponho que qualquer conhecimento que eu tenha sobre qualquer assunto seja suficiente para tornar fácil o entendimento sobre aquilo que pretendem explicar ou me apresentar. Se me dizem que o assunto é difícil, partirei do princípio de que é, de fato, difícil.

Assim, assisti à entrevista do filósofo Eduardo Wolf, esperando que talvez uma nova forma de compreensão que até então me fosse desconhecida me convencesse de que a nova direita pudesse ser uma corrente ideológica com a qual, quem sabe, eu viesse a me identificar se abrisse mão dos meus preconceitos. Não foi desta vez.

Para minha surpresa, o assunto que eu esperava que fosse "bastante complexo" se mostrou bastante raso e superficial e não me apresentou absolutamente nada que eu já não soubesse e que já não tivesse refutado na construção da minha percepção de mundo.

A entrevista já começou mal quando tomou por pressuposto a existência de uma "natureza humana" sobre a qual se pretendia discorrer. A ideia de natureza humana não encontra respaldo na ciência, sendo tema de um debate antigo entre as ciências sociais – história, sociologia, antropologia, etc. – e as ciências naturais, em especial a biologia. Para as ciências sociais, não existe uma natureza humana. Ou seja, ao contrário do que se verificam em outras espécies animais, que possuem características inatas, gravadas em seu DNA, que conferem a todo o grupo daquela mesma espécie, aspectos comportamentais, inclusive a capacidade de socializar, como as abelhas e formigas, ou instintos de sobrevivência, sexuais ou alimentares, o ser humano é fruto do processo socializador e cultural. Assim, exemplificando, enquanto um filhote de leão que nunca fora antes apresentado a um naco de carne, se for colocado diante do primeiro bife sangrento, avançará vorazmente para se alimentar, sem que ninguém necessite ensiná-lo que aquilo é comida. O ser humano, ao contrário, saberá que algo é comestível porque antes dele outros seres humanos foram socializados, condicionados, ensinados que aquilo – seja lá o que for – é comida. Por isso, enquanto nossa sociedade observa com horror algumas sociedades orientais deliciando-se com carne de cachorro, outras sociedades, como a indiana, nos olham chocadas por comermos carne de vaca, animal que consideram sagrado.

Quando a entrevista já parte da ideia de que existe uma natureza humana a qual se propõe a explicar, a mim já pareceu bastante problemática. Se por um lado, a discussão sobre a existência ou não de uma natureza humana não é pacífica, sendo ainda objeto de debate entre a biologia e a antropologia, por outro, o mais perto de certeza a que já se chegou é a de que, se existem aspectos da humanidade que são inerentes a todo e qualquer ser humano, independentemente da cultura em que esteja inserido, tais aspectos se revelariam apenas potencialmente capazes de definir o desenvolvimento daquele indivíduo, não sendo condicionante de qualquer "destino traçado" se o indivíduo não for exposto a condições sociais que efetivamente estimulem aquele potencial supostamente inato. Repito, SE EXISTIREM.

A entrevista prossegue afirmando que o conservador da atualidade está imbuído do pensamento liberal do século XVIII, formulado por pensadores iluministas europeus e estadunidenses que visavam a derrubar o Antigo Regime, o absolutismo monárquico que concentrava todo o poder estatal na pessoa do Rei. Com isto, propõe-se a tecer loas ao conservadorismo, tomando novamente por princípio que o pensamento liberal, ao asfixiar a tirania absolutista, necessariamente deveria ser aceito como o padrão de comportamento, isto é, o filósofo entrevistado partia já da ideia de que as reformas liberais do século XVIII haviam sido positivas e que, por conseguinte, os conservadores atuais, a nova direita, ao repetir o mesmo padrão de ideias, estaria de acordo com o dever ser. O que se verifica, portanto, é que existe uma moralização maniqueísta que pressupõe, necessária e inegavelmente, que o antigo regime seria em si mesmo uma coisa ruim ou negativa e o ideal revolucionário burguês, inspirado no iluminismo, seria necessariamente algo bom ou positivo.

Não se aventa em nenhum momento que o republicanismo liberal que pairou sobre a Europa e os Estados Unidos no final do século XVIII seria estimulado por uma visão eurocêntrica do mundo e que, se trazia vantagens à sociedade europeia e à dos Estados Unidos – que lhe copiava – não se podia dizer o mesmo para as demais sociedades colonizadas pelo pensamento europeu. Pensadores liberais eram preocupados e comprometidos com a burguesia ascendente. O conservador – ou a direita contemporânea – reproduz, portanto, o mesmo padrão eurocêntrico burguês, que seleciona grupos por sua suposta trajetória evolutiva, justificando, com isso, que países da Europa pudessem invadir outros territórios, dizimar suas populações, suplantar as culturas locais, impor o seu padrão de pensamento, roubar suas riquezas. Tudo porque a natureza humana dos europeus supostamente os faria superiores.

Outro aspecto que me chamou atenção na entrevista foi que o filósofo entrevistado tomou como pressuposto que os debates existentes sobre direita e esquerda já são travados a partir de um ponto moralizador, que coloca a direita como egoísta e individualista, e a esquerda como preocupada com a coletividade. Assumindo que os debates partem desse princípio, propõe-se a construir uma "defesa" da direita, tentando desconstruir a falsa percepção de que a direita seria uma espécie de vilã. Equivoca-se, porém, quando nivela o debate público pela ótica do senso comum, atribuindo aos debatedores uma superficialidade meramente pautada pela moralidade do bem e do mal.

Diferentemente do que dá a entender Eduardo Wolf, os debates mais sérios sobre direita e esquerda têm como elementos estruturais condições objetivas que não estão necessariamente vinculadas à noção de bem ou mal, o que somente viria a se concretizar em um momento posterior, numa etapa em que aspectos subjetivos viessem a ser colados aos objetivos, após um juízo de valor atribuído a cada elemento constitutivo dos conceitos de direita e esquerda.

Neste aspecto, poder-se-ia dizer que, politicamente, o pensamento de direita é atrelado à noção de necessidade de eficiência do ente público, partindo do princípio de que a sociedade é naturalmente desigual, não havendo nada que se possa fazer quanto a isto. Traz as noções de que os indivíduos são recompensados de acordo com o tamanho do seu esforço, o que faria a sociedade melhor ao estimular a todos darem o melhor de si, sendo proporcionalmente recompensados. Assim, se a desigualdade social persiste, isto se dá porque há menos esforço de um grupo e mais do outro.

O pensamento de esquerda, por sua vez, parte do princípio de que as desigualdades sociais não são naturais e, por decorrerem das relações sociais, podem e devem ser combatidas. O valor perseguido pelo pensamento de esquerda é o da equidade, devendo existir uma responsabilidade social de cada membro do grupo para com os demais. Desta forma, o ente público, manifestado pelo Estado, deve ser forte, para fomentar o combate às desigualdades através da gestão de recursos, arrecadando tributos e distribuindo riquezas com o escopo de reduzir as diferenças.

Quando um pensador de direita, conservador, assume que os debates se pautam na "vilanização" da direita, isto me parece problemático por configurar que o próprio pensador lhe atribui tais valores.

Por fim, a proposta de Eduardo Wolf é a de que, por não serem esquerda e direita conceitos fixos que se encerram em si mesmos e, que por causa disto, devem ser sempre analisados à luz de um parâmetro comparativo, hoje não seriam precisos para delimitarem espectros políticos e ideológicos. Decorrente disto, conclui que em vez de utilizarmos termos direita e esquerda, mais sentido faria que fossem usados os termos conservador e progressista, que, de acordo com ele, melhor definiriam os dois grupos ideológicos.

Para mim, há tempos já estava clara essa imprecisão na utilização das palavras direita e esquerda, já que ambas necessitam sempre de um referencial ("direita ou esquerda em relação a que?"), fazendo sentido que se almeje substitui-los por conservadores e progressistas, sendo o primeiro aquele grupo formado por quem pretende manter – ou conservar – a sociedade tal como se encontra, e o segundo, aquele que, reconhecendo necessidade de reestruturação social, tem por objetivo mudar a sociedade.

Desta forma, considerando-se que o conservador – ou a nova direita – assume como ponto de partida que as desigualdades sociais decorrem de uma natureza humana, na qual, com o respaldo que me é dado pelas ciências sociais, eu sequer acredito, e para os conservadores já se trata de fato posto; considerando-se que os conservadores também já assumem como pressuposto inequívoco que o modelo de organização social europeu colonizador deve ser reproduzido por todas as demais organização sociais, sem respeitar as diferenças de cada uma delas; considerando-se, ainda, que o pensamento republicano liberal do século XVIII, é dogmático no tocante às vantagens do republicanismo, da descentralização do poder e/ou da duração de mandatos, em oposição à concentração do poder vitalício na mão do rei, por adotar como premissa inquestionável que a concentração do poder vitalício será sempre prejudicial, continuo não convencido de que tal pensamento proporcione melhores condições às sociedades. Por todos esses motivos, continuo achando que deve ser rechaçado por gerar mais desigualdade e injustiça.

A quem tiver interesse, segue o link com a entrevista: https://youtu.be/22W9zQH3MYg

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