quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

"Chove sem parar..."

Prefeitura do Rio abre licitação para obras da eclusa na Praça da Bandeira.
Supervia se pronuncia: "Indispensável!"

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Barcas S.A. disponibiliza frotas para duas novas linhas: Niterói - Praça da Bandeira e Niterói - Avenida Brasil.
Moradores se pronunciam: "Vai ser mais uma opção pra quem quer fugir do engarrafamento na Ponte e na Radial Oeste, né?"

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Secretário de Defesa Civil do Rio de Janeiro orienta os cidadãos: "Em qualquer treinamento de situações de emergência, temos que estar preparados. Por isso, orientamos a todos os que andam de metrô e trem, que levem velas e fósforos."

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Prefeito do Rio em entrevista no Bom Dia Rio: "Todos os nossos trabalhos foram muito bem pensados. O projeto de construção da Via Binário foi planejado para a integração com as Barcas S.A., que já criou duas linhas integrando Niterói à Avenida Brasil e à Praça da Bandeira. Até 2016, haverá a integração destas linhas através de botes de pequeno porte na Binário. Porque somos um rio!"

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Projeto Porto Maravilha: levando o porto até a Presidente Vargas. Via Binário inaugura testes de navegabilidade. "Um sucesso!" - comemora Eduardo Paes, prefeito do Rio.
 
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Via Binário tem esse nome porque funciona em dois sistemas: fluvial e marítimo.

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Barcas S.A. amplia rede ligando Praça da Bandeira ao Trevo das Margaridas.

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Não para de chover! Já já, vou substituir minha árvore de natal por uma vitória-régia de natal!

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Fico sempre com pena quando vejo a situação de algumas pessoas que sofrem as consequências das enchentes. Até que lembro que muitas destas mesmas pessoas são aquelas que jogam lixo no chão e entopem bueiros... Aí, a consternação diminui muito.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

A polêmica das biografias não autorizadas

Confesso que minha opinião não está completamente formada sobre o assunto, mas, a despeito de toda antipatia que nutro pela figura da Paula Lavigne, tenho uma tendência a achar a proposta do Procure Saber, de lutar contra a ADIN que pugna pela inconstitucionalidade do artigo 20 do Código Civil, uma grande baboseira.

Mas, repito, nem eu estou plenamente convencido disto e acho que uma postagem no blog, um debate no Facebook, ou um mero tweet com seus 144 caracteres, são espaços limitados demais para expor todos os fatores, nuances e filigranas envolvidos...

Quando lidamos com direitos constitucionais é preciso haver ponderação sempre, especialmente pelo fato de que muitos deles são conflitantes entre si. É o que acontece com a liberdade de expressão e a reparação do ofendido. Ou o direito do autor e o direito de imagem, etc.

Vivemos num país supostamente democrático e, na tentativa de extirpar de uma vez os abusos da famigerada Ditadura, a Constituição previu muita, muita, mas muita liberdade mesmo. E isto foi sensacional! Dizer o que se pensa, como, quando e onde se quer dizer é uma utopia sem precedentes.

O problema disto é que quem fala o que quer pode ser penalizado como não quer. E aí é que começa a brincadeira!

Por um lado, o Direito nos possibilita a reparação do ofendido. Então, tudo bem, podemos falar qualquer coisa por aí que, se o sujeito de quem se falou não gostar, a gente pode reparar a posteriori, e está tudo resolvido. A questão é que um dano moral pode nunca mais ser desfeito. Uma reparação pode funcionar sempre como um "cala a boca", mas não passa de uma forma de minimizar o caso. "Toma aqui, você nunca mais terá sua honra de volta e seu nome será manchado para sempre, então, aceite aqui estes milhares de reais e fique quietinho".

Por outro lado, porém, dentro das liberdades que a Constituição nos trouxe, é clara demais que a censura prévia estará proibida. Tá lá no artigo 5º IX, e no art. 220, § 2º, procure saber (ah, eu não resisti ao trocadilho infame!). E aí, qualquer tentativa de coibir uma publicação do que quer que seja sob o pretexto de que aquilo não atende o interesse público e de aquilo viola a privacidade e de que aquilo viola a honra, etc, etc, etc, é censura sim!

Mas, o conteúdo ofensivo viola a imagem do indivíduo e o direito de imagem do indivíduo também é assegurado constitucionalmente. Xeque. E agora? Bem, o Direito Administrativo, o Direito Civil, o Direito Penal, há muito tempo já preveem que os interesses sociais estarão sempre acima dos interesses privados. Isso nada mais é que o reflexo da nossa Constituição. Xeque-mate.

Se nosso direito prevê a liberdade de expressão, a vedação à censura e a possibilidade de reparação posterior, minha opinião é a de que a movimentação do Procure Saber para coibir as biografias não autorizadas é uma grande bobagem que, sob a máscara de proteção da honra do biografado, corrobora com a formação de uma sociedade com cada vez menos senso crítico.

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Bom dia. Uma moeda valiosa.

Bom dia não é dinheiro. Dê sem avareza.

As recepcionistas do prédio onde trabalho são rigorosamente instruídas para nunca, jamais, sob qualquer hipótese, nem mesmo sob tortura, responderem "bom dia" quando cumprimentadas. Acho que é motivo para dispensa por justa causa se o fizerem.

Que a Economia preconiza cortes de gastos desnecessários no ambiente de trabalho, não é novidade. Funcionários que desperdiçam insumos podem ser advertidos, suspensos e até despedidos. A novidade é pensar que "bom dia" também entra nesta categoria. Posso até vislumbrar o patrão passando sabão nas pobres subalternas: "Vocês estão pensando o quê? Que meu dinheiro é capim?! Onde já se viu, distribuir bom dia assim, para qualquer um que entrar no prédio?!"

Algumas vezes, de acordo com o nível de estupidez  do interlocutor, até ficamos receosos de soltarmos um sorridente "bom dia" e recebermos em troca um daqueles chavões de grosseria, como "se for bom, amanhã eu te digo" ou "não há de nada de bom neste dia". Honestamente, eu preferiria receber qualquer uma destas respostas. Seria uma prova de que as atendentes estão vivas. Por vezes, penso que estou diante de esculturas de cera do Madame Tussauds, até que me dou conta de que as estátuas costumam ser mais expressivas.

Sabe aquele insuportável sistema, tipo Captcha, que - a pretexto de impedir spam e evitar automatização nas buscas virtuais - só serve para confundir nossos olhos com hieróglifos ilegíveis e atrapalhar nossa vida corrida de eterna procura por Conhecimento e Sabedoria (também conhecido como Google)? Pois é, frequentemente penso que deveria ser desenvolvida uma ferramenta similar aqui no prédio, algo que comprovasse que as recepcionistas não são robôs. Quase sempre penso em dar um soco no balcão da recepção e gritar "Bom dia! Se você é humana, repita comigo: J - h - 2 - B - x - Z - 3 - 5."

Já pensei que o Setor de RH do condomínio talvez tivesse participado de programa inclusivo para contratação de estrangeiros fugitivos de algum regime ditatorial, que não falam língua portuguesa, ou quem sabe, no fomento à contratação de portadores de necessidades especiais: garotas mudas e sem movimento facial. Descartei a ideia no dia em que adentrei o saguão do edifício em velocidade hábil o suficiente para ver todas interagindo entre si, sorridentes e felizes, enquanto comentavam - em um sonoro português - algum fato que desaprovavam na conduta de uma terceira que não se encontrava ali para se defender das acusações desabonadoras. Naquele momento, respirei aliviado por constatar que não estava diante de zumbis devoradoras de cérebro, estátuas de cera ou surdas-mudas cubanas, dei um sorriso e disse "bom dia". Fez-se um silêncio imediato, o ar se tornou abafado - reza a lenda que alguns pombos caíram mortos no pátio externo do prédio -, olhares confusos foram trocados entre elas que, sem saberem como reagir, limitaram-se a permanecer caladas. Não eram zumbis, não eram mudas, não eram estrangeiras. Eram apenas mal educadas.

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Mate um professor de fome.

Molequinho esperto aquele tal de Dudu! Quando mais novo, era viciado num joguinho, desses de tabuleiro, em que o jogador atira um dado e avança casinhas, seguindo seus comandos de acordo com a sorte. A estratégia do jogo era simples: havia uns vilões que deveriam ser combatidos e uns heróis que os derrotavam. Cada jogador era um mocinho, que, no manual do joguinho, tinha o nome de “político do PMDB”. Os vilões eram os terríveis “professores”, aqueles monstros do mal que viviam como escória e traziam uma maldição chamada “baixo salário”. Eram manipulados de acordo com o lance dado pelo jogador.

“Mate um professor de fome” era o sucesso da garotada! Todos com seu dadinho pronto, lançado ao ar rumo à casa final do tabuleiro: a Prefeitura do Rio. Não fora o Dudu quem inventara o jogo, claro. Tratava-se de uma brincadeira tradicionalíssima, arraigada no folclore brasileiro desde priscas eras... Mas, o Dudu, ah, o Dudu era imbatível! Ganhava todas!

Lançava o dado e ia contando. Um... dois... três... “Você chegou ao dia 15 do mês e não tem dinheiro para pagar seu aluguel. Volte uma casa”. Outro lance. Um... dois... três... quatro... cinco... “Você aprovou aquele aluno que vivia cabulando aula e que, no dia da prova, xingou a sua mãe. Parabéns! Avance sete casas”. Assim, prosseguia o joguinho, lance após lance, dado após dado, com avanços e retrocessos, comando atrás de comando. “Você fez greve, mas não recebeu o aumento que merecia. Volte duas casas”; “Você ganha o mesmo que um policial, mas ele tem direito de te jogar bomba de gás lacrimogênio e spray de pimenta. Fiquei duas rodadas sem jogar.”. E assim ia até chegar à penúltima casa, que dizia: “Você trabalhou a vida inteira educando um bando de bicho selvagem que nunca fez nada por você. Agora se aposentou e continua ganhando uma miséria. Não resistiu ao tempo e morreu, sua jogada se encerra aqui. O político que te guiou até aqui é o vencedor! Parabéns! Avance uma casa e seja o Prefeito do Rio!”

Fim do jogo.

O tempo passou, os jogos de tabuleiros saíram de moda, mas Dudu continuava com seu espírito lúdico! Outrora campeão em “Mate um professor de fome”, agora era mestre em um joguinho eletrônico que anda fazendo tanto sucesso quanto aquele: “Mate um carioca de vergonha”.

quinta-feira, 11 de julho de 2013

Quem representa o quê?

Originalmente escrito em 10 de julho de 2013.
O texto já estava pronto quando o Senado rejeitou a emenda proposta pela Câmara dos Deputados.

Nietzsche disse que sem música, a vida seria um erro. E, sem pretender soar apocalíptico, parece que o Brasil começa dar seus primeiros passos em direção a esta realidade. Na última semana, o Plenário do Senado Federal aprovou a já famigerada PLS 129 - na origem, Projeto de Lei 5.901/13, que modifica a Lei 9.610/98, que trata sobre a arrecadação e distribuição dos direitos autorais por suas mais diversas modalidades de utilização. O projeto de lei envolve uma série de medidas que visa a aumentar a transparência do ECAD, entidade única legitimada a arrecadar e distribuir os direitos autorais e aqueles que lhe são conexos, pela execução pública de obras musicais, literomusicais e fonogramas.
 
Não pretendo aqui advogar a favor do ECAD, de quem sou empregado. Soaria até bastante óbvio que eu, na qualidade de seu advogado, destrinchasse loas à sua atuação, ressaltando suas virtudes e escondendo suas mazelas, mas não é esta a proposta deste texto. Aliás, como empregado do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição, conheço de perto - ou melhor, de dentro - suas práticas trabalhistas e se minha proposta fosse escrever levando-as em consideração, talvez o viés deste texto fosse bem menos engrandecedor.
 
No entanto, concedendo a César o que lhe é de direito, é preciso avaliar com olhos de quem conhece a atuação da entidade nas práticas de arrecadar de usuários e distribuir a titulares valores dos direitos autorais. E dentro desta perspectiva, o que se vê é um desmando do Congresso Nacional. Não fosse o bastante aprovar um projeto de lei que estatiza direitos de natureza ontologicamente privada, retirando cada vez mais de seus titulares a disponibilidade sobre os mesmos, emendou-o para que eventos beneficentes e filantrópicos fossem isentados da arrecadação de direitos autorais pelas obras musicais neles utilizadas e é este o texto que aguarda votação na Câmara dos Deputados.
 
Nada contra medidas que proponham humanizar as pessoas e tornar o mundo um lugar melhor, possibilitando uma coexistência harmoniosa e pacífica, como preconizada por Rousseau e por Thomas Morus. Mas obrigá-las a isto se afigura uma violação tão grave e perigosa à liberdade e à propriedade quanto qualquer outra.
 
É tentador supor em um primeiro momento que obrigar compositores e titulares de direitos autorais e conexos a cedê-los é colocar em prática da forma mais absoluta a função social da propriedade e o direito de acesso à cultura. Porém, uma análise mais profunda pode revelar, em longo prazo, um perigo até então despercebido: o desserviço à cultura pelo desestímulo à produção artística por parte de compositores que receberão cada vez menos a contraprestação do seu trabalho intelectual.
 
O ECAD tem figurado frequentemente como bode expiatório perante diversos segmentos da sociedade, muitas vezes julgado por gente que desconhece sua atuação e ignora os processos que envolvem o repasse de dinheiro arrecadado aos seus verdadeiros proprietários, os titulares a quem representa. Nunca ouvi ninguém falar bem de uma entidade que cobra. Seja de que natureza for. Não falam bem da Companhia de Água e Esgoto, não falam bem da Companhia de Luz, mesmo cientes do quão necessárias são a água e a eletricidade. Como esperar diferente de quem promove cobrança sobre a música tocada? No entanto, é preciso lembrar que o ECAD não age por si mesmo, mas por poderes conferidos pelos próprios titulares de direitos autorais e conexos.
 
Quando o Governo estipula que será criado um órgão próprio para controlar os preços praticados pelo ECAD, não é este quem sofre maior prejuízo. É a comunidade artística. É gente que sobrevive às custas do seu trabalho intelectual, gente que produz música. Esta mesma sem a qual, como dito lá em cima, Nietzsche garantiu que a vida seria um erro. Fora que a experiência já revelou que uma entidade governamental gerindo direitos privados, o extinto CNDA, funcionou apenas como um braço do Estado interventor ditatorial, não se coadunando com a livre iniciativa que rege o mercado dentro de uma Democracia.
 
Quando o Governo determina em que ocasiões o ECAD pode ou não cobrar pela execução musical pública, está dizendo que não cabe ao artista decidir seu próprio valor, bem como não lhe cabe dispor plenamente sobre sua própria criação. O que me parece evidente é que boa parte da classe artística deixará de produzir e isto levará inevitavelmente a uma derrocada cultural, ao empobrecimento em vez de fomento.
 
Não estou aqui pregando a atuação livre e isenta de regras pelo ECAD. Não vejo como ruins as mudança de algumas diretrizes já obsoletas da Lei 9.610/98. Vejo com bons olhos a fiscalização do ECAD, visão que não se estende à intervenção desmedida como a que isenta de pagamento de direitos autorais os eventos filantrópicos. Não cabe ao Estado dizer quando o ente privado deve ou não incentivar a beneficência. Antes, deveria o Estado propiciar incentivos aos artistas que cedessem seus direitos autorais à entidades beneficentes. A lei deveria favorecer os titulares, não os usuários de música.
 
O que surpreende é testemunhar ícones de resistência política, como Chico, Gil e Caetano, de braços dados a gente como Renan Calheiros, criminoso absolutamente mais nocivo à sociedade que qualquer boleto de cobrança emitido pelo ECAD, defendendo uma lei que prejudica mais que beneficia a classe da qual fazem parte. Músicos inteligentes, intelectuais que outrora lutaram pelo direito de livre manifestação de pensamento e agora parecem rendidos a um sistema falho que demanda maior discussão.
 
O que vejo é uma lei ser votada sem o necessário debate e sem a necessária compreensão de como o ECAD realmente atua, sendo apoiada por um grupo de artistas - mestres em sua arte de fazer música, mas talvez não plenamente esclarecidos sobre o funcionamento da gestão coletiva de direitos autorais. O que vejo é um escritório arrecadador e distribuidor recebendo à sua revelia determinações legais impostas qualquer jeito, por um Congresso ignorante, para não dizer oportunista - considerando-se o grande número de rádios e TVs de propriedade de Deputados e Senadores, usuários interessadíssimos em obstaculizar a arrecadação de direitos autorais.
 
Belchior que me perdoe, mas nossos ídolos não são mais os mesmos. E o ECAD pode até não me representar. Mas, novamente, a César o que é de César: fala com a voz de milhares de titulares de direitos autorais nacionais e estrangeiros.

quarta-feira, 3 de julho de 2013

O Gado de Todas as Estações

O que mais irrita não é o metrô ficar dez minutos parado em cada estação, atrasando a viagem. Mais que isto, o que realmente é insuportável é ouvir as reses estalando a língua nos dentes, numa crescente sinfonia de "tsc-tsc", em sinal de exasperação, sem, no entanto, moverem um dedo sequer para saírem da sua condição de gado.

É tão grande e estarrecedora a apatia dessa gente que começo a me questionar, em devaneios fantásticos, qual seria sua reação se, em vez de ar refrigerado, saísse pelos dutos gás tóxico. Tenho a sensação assustadora de que todos veriam uns aos outros tossindo, asfixiando-se, caindo ao seu lado, agonizando, mas, em vez de tomarem uma atitude, continuariam internamente amaldiçoando o sistema, enquanto suas línguas e dentes entoariam uma ladainha de "tsc-tsc", até que todos morressem sem oxigênio.

O que mais me entristece é pensar que esse gado não integra aquele milhão de pessoas irresignadas que foi para as ruas protestar. Ao contrário, essa massa faz parte do restante, os outros cento e sessenta milhões de eleitores despolitizados que, preocupados demais com o horário de cada partida e cada chegada, com o lugar mais próximo à porta, com a rasteira que vão passar na pessoa ao lado para garantirem uma poltrona, vendem seu voto a qualquer um que lhes assegure um botijão de gás, mantendo o Estado da mesma forma de sempre. Mantendo, inclusive a eterna sinfonia de línguas e dentes: tsc, tsc, tsc, tsc...

sexta-feira, 21 de junho de 2013

#SentaBrasil

Inicialmente, percebi que a mídia estava criando uma forte pressão com o intuito de transformar em bárbaros os manifestantes, mostrando insistentemente a ação de grupos isolados responsáveis por atos de vantalismo, atribuindo aos próprios manifestantes a responsabilidade pelos quebra-quebras que, infelizmente, tem se revelado frequente durante as passeatas. Posteriormente, parece-me, as ações de vândalos ganharam contornos maiores e não necessitaram do reforço dos meios de comunicação para aparecerem.

Ontem à noite, o Centro do Rio de Janeiro se transformou em um cenário desolador com a ação desmedida dos brutamontes: fecharam o cerco, encurralando manifestantes; estações de metrô trancadas, bombas de gás lacrimogênio atiradas para dentro de bares, ônibus e até no pátio do Hospital Souza Aguiar!
Somando-se ao evidente interesse de mostrar de forma exagerada as ações da turma dos bagunceiros, hoje se vê na Barra da Tijuca e na Baixada Fluminense, que os protestos aparenetemente se transformaram em meras desculpas para a ocorrência de saques, roubos, pancadarias...

O resultado disto tudo é um notório enfraquecimento de uma movimentação que começou tão engajada, bonita e disposta a lutar por uma causa justa. Quem não está nas ruas e assiste aos noticiários, tem medo de sair de casa. Quem está na ruas, pronto para a luta justa, se desanima diante da desordem que os vândalos ocasionam.

O que acontecerá depois disto? Será que, como meus temores me assombravam, vamos voltar para a nossa vidinha de sempre, desistindo de mostrar nossa força enquanto Povo? Vamos continuar reclamando de tudo, desbafando em redes sociais, descontando em filhos, esposas e maridos os aborrecimentos que juntamos ao longo do trajeto traçado entre o metrô lotado, a fila do hospital, os aumentos de preços e o trânsito caótico? Vamos mesmo redobrar a força dos políticos que estarão prontos para dizerem que sempre estiveram com a razão, quando os manifestos se pulverizarem por não terem tido qualquer razão palpável de existir?

Não é isto que desejo para o País. Não é isto que desejo para o Povo que, há menos de uma semana atrás, acordava de um sono tão longo. Será este Povo obrigado a viver novamente em estado letárgico crônico, reforçado pela falsa impressão de que nada adiantou e que tudo foi em vão? Será que o Povo deverá carregar consigo a mágoa decorrente das pequenas alas dissidentes, voltando cada indivíduo a olhar ara si mesmo, porque um bando de baderneiros transformou em patuscada uma briga que era séria?

Entendo que não. Parar agora só daria ao Povo um atestado de incompetência. Assinaríamos uma declaração de que somos apenas uma massa disforme que se acumula em vão para causar desordem. Uma massa que se desfaz porque uma semana depois – uma mísera e efêmera semana! – o fato de não termos conseguido almejar o que queremos demonstrou que era hora de parar!

Não, não podemos parar! Não podemos desistir! Não podemos nos intimidar com essa atitude vergonhosa do governo, que tenta enfraquecer as manifestações populares, atribuindo-lhes a responsabilidade pelas violências cometidas, o que ainda vem sendo reforçado pelos grupos de bandidos oportunistas que se valem do movimento para saquearem lojas e causarem desordens!

É preciso continuar, mas de outro modo! Vamos mostrar para essa corja toda quem é que destrói a cidade e causa terror! Nas próximas manifestações, vamos sentar!!! Isso mesmo, sentados, quietos, em silêncio, imóveis. Em vez de agendarmos o ponto de encontro em um local e caminharmos até outro, façamos assim: marcamos o ponto de encontro no local de destino e sentamos! Pronto! Quietinhos, silenciosos e em paz!

Um milhão de pessoas sentadas nas ruas param o Brasil! Um milhão de pessoas sentadas não destroem patrimônio, nem agridem pessoas! Um milhão de pessoas sentadas não camuflam quem destrói patrimônio, nem quem agride pessoas! Um milhão de pessoas sentadas permitem que as câmeras vejam quem realmente está destruindo tudo ao redor! Um milhão de pessoas sentadas, ocupam no mínimo um espaço de duas milhões de pessoas de pé! Não será isto o suficiente para chamarmos atenção sobre nós?

Com a mídia do mundo inteiro apontada para o Brasil, com a pressão que a FIFA vem exercendo sobre o país, ameaçando cancelar a Copa das Confederações se não forem tomadas medidas drásticas de segurança, eu acredito que as forças policiais serão mais cautelosas antes de iniciarem um ataque em pessoas sentadas e em silêncio. Faltar-lhes-ia desculpas suficientes para justificarem o uso de bombas de efeitos moral e balas de borracha em uma população de fato pacífica. Impediria também que oportunistas se aproveitassem das condições para transformar em pândega uma luta que é do Povo!

O momento é de continuarmos! Sentados, sim. Sem, no entanto, perdermos a altivez. Sem jamais perdermos a razão.

terça-feira, 18 de junho de 2013

Sejamos vigilantes.

Confesso que tenho um receio: como tem sido tudo neste mundo de comunicações instantâneas e velocidades estonteantes, tenho muito medo que toda esta agitação que aí está queime seu combustível em alguns poucos dias, antes de colher seus frutos.

É preciso ser vigilante. Não deixemos que a repetição seja confundida com a mesmice.
 

Ontem à noite, li postagens no Facebook, de gente que, pela manhã, estava inflamada pelo espírito revolucionário, dizendo coisas como "já deu, né? Chega de falar de manifestação".

NÃO, PESSOAL! NÃO DEU! NÃO ESTAMOS MAIS DISCUTINDO O SUCESSO SERTANEJO UNIVERSITÁRIO DA TEMPORADA OU O AXÉ QUE FARÁ O CARNAVAL DO ANO QUE VEM!


Tudo que está aí fora, o povo nas ruas, a revolta justificada, tudo isto deve permanecer enquanto não forem tomadas providências para que melhorem a situação do povo e mudem o panorama político, social e econômico que está imperando há anos e ninguém fazia nada. ISSO SIM JÁ DEU! Isso sim, é que se tornou cansativo! Vamos continuar indo às ruas! Vamos continuar incomodando!

Verás que um filho teu não foge à luta

Texto com adaptações e acréscimos, originalmente escrito em 17 de junho de 2013, no caminho de volta para casa, imediatamente depois de participar das manifestações populares que tomaram conta do Centro do Rio de Janeiro.

Percorri dois nichos da manifestação popular que se instaurou no Rio de Janeiro nesta noite. E no balanço do que pude ver, a área ao redor da Assembleia Legislativa demonstra a selvageria, não dos manifestantes – acepção usada para definir os representantes da indignação popular legitimados para agirem em nome do povo – mas, de arruaceiros oportunistas que vampirizaram o movimento para causar destruição e praticar atos de vandalismo.

O cenário ao redor da ALERJ é de guerra. Igrejas históricas depredadas, muros pichados, vidraças quebradas, carros destruídos, bancos saqueados... É vergonhoso testemunhar a ação destes parasitas sociais que, em nome de uma suposta indignação, causam tumultos injustificados e ensejam uma atitude controladora da Polícia. Por momentos, senti vergonha de estar ali, perguntando-me se eu estava mesmo sendo representado por aquelas pessoas.

Felizmente, vi que, mesmo neste cenário, o número de manifestantes é imensamente maior que o de vândalos. Tive tempo de ver um idiota sacando uma lata de spray para pichar a Igreja de São José, mas tive tempo de me emocionar também com os revoltosos sérios e justos gritando indignados: "Não faça isto! Quer que percamos a razão?", enquanto o retiravam à força. Então, novamente me lembrei o que eu estava fazendo ali e me senti representado.

Se nas redondezas da ALERJ o clima era tenso e desolador, o mesmo não pude dizer do que vi na Cinelândia.

Vi jovens em uníssono clamando por justiça social, harmonizando-se entre si. Um imenso mar de pessoas. E vi mesmo pessoas, humanos, como há muito tempo deixara de ver no Homo sapiens.

Vi e ouvi a execução do Hino Nacional e, pela primeira vez em muitos anos, senti que aquilo fazia sentido. "Verás que um filho teu não foge à luta" não me soou, naquele momento, algo fantasioso, fictício e distante da minha realidade.

Hoje testemunhei – e agradeci por poder ter estado lá – o Povo. Não o bicho que agoniza, mas o gigante que acorda. Não vi uma coletividade de indivíduos. Vi um organismo unitário e coeso.

E não pude caber em mim de contentamento.

Polícia também é povo!

O povo briga entre si – dividido entre manifestantes e baderneiros, e a PM, inicialmente designada para controlar o movimento foi tão algoz como vítima. Há um consenso de que os vândalos inseridos no grupo de manifestantes não são bem-vindos. No entanto, para justificar os atos de uma das partes, parece que se faz necessário corromper os da outra. Assim, o que se vê é a PM acusando os manifestantes de vandalismo e os manifestantes acusando a PM de truculência.

A PM – enquanto corporação estatal, coesa e unificada – estava ali para conter os grupos dissidentes, proteger os manifestantes e assegurar o direito constitucional de manifestação popular. E não vou aqui incitar as acusações dizendo quem começou o quê!

Fato é que, dentro da PM, há os filhos da puta que andam na contramão da organização e partem para a violência desmedida, dando choques elétricos em manifestantes pacíficos. Mas, da mesma forma, dentro da massa revolucionária, há os agitadores da violência, que incitam atos de vandalismo, depredação do patrimônio e agressão!

Precisamos todos – e já! – parar de nos acusarmos mutuamente e generalizarmos os grupos, tomando o gênero pela espécie. Não podemos mais continuar com essa metonímia acusatória! Separemos o joio e o trigo e aprendamos a reconhecer que há baderneiros nos dois lados.

A Polícia apoia o movimento, desde que não haja pessoas armadas e a manifestação seja pacífica, mas como combater o perturbador da ordem que se infiltra na massa e covardemente ataca os policiais, como já ocorreu? Sim, isto aconteceu! EU VI! Aquele soldado, comandante, ou sei lá qual sua patente, que deu choques elétricos nos passantes em São Cristóvão neste domingo último não representa a categoria policial, da mesma forma que o trombadinha que atirou pedras nas vidraças da ALERJ na data de ontem não representa os manifestantes!

O que vejo na Internet e na boca das pessoas com quem converso é que há sempre dois lados contrapostos, como se fossem grupos mutuamente excludentes: os policiais e os revoltosos. E se você é amigo da PM, é traidor do movimento! Da mesma forma, se milita em favor da causa revolucionária, é vítima da PM!

Mas, não é assim que a banda toca! Policial também é povo. Manifestante também preza pela ordem. Então, em vez de ficarmos disputando uns contra os outros, devemos nos juntar! A polícia, os bombeiros, todos já necessitaram do apoio do povo num momento bem recente da nossa história. Bombeiros foram presos por organizarem greve e o povo onde ficou? Da mesma forma, agora, o povo precisa da Polícia!

Agora era a hora de haver uma união entre estas duas categorias: manifestantes e policiais. Da mesma forma que houve agressões injustas por parte dos baderneiros infiltrados nos manifestantes, houve agressões injustas por pessoas sem caráter infiltradas na polícia. Deveria haver combate de ambos os tipos, em ambos os grupos. E os representantes de fato destes dois grupos deveriam estar de mãos dadas. A polícia séria deveria assegurar a manifestação séria, garantindo sua segurança e combatendo tanto os policiais sórdidos quanto os manifestantes sórdidos. Da mesma forma, os manifestantes sérios deveriam fazê-lo, expulsando de seu grupamento aqueles que fossem detectados traindo o movimento legítimo em nome da anarquia desmedida e do caos.

Assim, talvez, quando o Governo se apercebesse de que não poderia mais contar com a população que o elegeu, tampouco com o apoio da polícia, mudanças sociais começariam a acontecer. Porque não existe força na cisão. É na união que a encontramos!

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Porque todo poder emana do povo...

Pouco depois dos 20 anos de idade, eu surtei. Durante uma dificílima quebra de paradigmas pessoais, olhei para minha curta vida pregressa e percebi que não havia muito dela de que me lembrar. Era uma estranha sensação de tempo desperdiçado. Um vazio pretérito que seria impossível preencher. Uma etapa que jamais retornaria. Aquilo tudo me caiu como uma paulada na cabeça e entrei em parafuso. Decidi que correria atrás do tempo perdido e, ainda que fosse incapaz de retornar à infância e à adolescência, eu ainda gozava da minha juventude e faria dela algo de que pudesse me orgulhar.

Espectador distante da História que os livros contam, sempre vi com olhos invejosos as manifestações populares que fizeram no mundo e construíram o mundo. Imaginava os franceses do século XVIII, cansados da opressão do Antigo Regime, que se uniram e tomaram a Bastilha, iniciando uma era revoltosa que mudaria a história da França. Invejava os alemães que, no final dos anos 80, derrubaram o Muro de Berlim, unificando as Alemanhas.

No Brasil – impedido de estar ao lado por questões temporais – admirava de longe os guerrilheiros que, para desafiarem a Ditadura, cheios de coragem, arriscavam-se às mais humilhantes privações de direitos e às mais dolorosas torturas, abrindo mão da liberdade e mesmo da vida. A união entre as pessoas me parecia algo pelo qual valia a pena viver e morrer.

Aos 12 anos de idade, do interior da Bahia vi com olhos curiosos e pouco esclarecidos o Brasil inteiro reunido no movimento que se intitulou “Cara Pintada” para depor o então Presidente da República Fernando Collor de Mello. Em minha cabeça de quem compreendia pouco – ou quase nada – o cenário político nacional, soava um tanto surpreendente como aquelas pessoas, cidadão comuns, jovens, estudantes, conseguiram, com a força de sua união, derrubarem a autoridade máxima do governo, o Presidente da República!

Sem entender de onde vinha aquele poder, apenas achei tudo aquilo lindo. Lindo e emocionante!

Quando entrei em minha crise identidade, eu já compreendia o significado do termo juspolítico “representatividade”, e percebia que aquele poder que derrubara o Presidente Collor não era algo sobrenatural. Ao contrário, era o Poder em seu estado mais natural possível, nas mãos de quem realmente deveria mantê-lo: o Povo. Aquilo era Democracia e eu entendia perfeitamente porque toda aquela movimentação dos idos de 1992 me emocionou daquela forma.

E tudo isto apenas contribuiu para me dar uma certeza: minha vida era uma folha em branco. E passei a invejar aqueles jovens da França Absolutista, do Brasil Militar e os Caras Pintadas!

Por mais dez anos, segui minha vidinha mediana, cada vez mais angustiado com os rumos políticos em que nosso país veio caminhando.

Cada vez mais indignado com as acomodações de um povo passivo, que a mim parecia ter apagado do seu passado glorioso toda essa coragem de outrora. Vi a moeda ganhar força e se desvalorizar. Vi professores, policiais e bombeiros mal remunerados, abaixando a cabeça para desmandos governamentais. Vi nossos “representantes” no Congresso ganhando, roubando, corrompendo, lucrando, usurpando, enquanto cada vez mais cidadãos comuns padeciam com baixa renda, desemprego, descaso e violência. Vi filas em hospitais e gente morrendo por falta de atendimento. Vi crianças sem escola e mães sem comida. Vi o transporte público se tornar dia a dia mais insuportável, ônibus, trens e metrôs se transformando em armas, assassinando pessoas a caminho do trabalho. Gente comum. Como eu, como o padeiro, como minha vizinha. Gente que não pode fazer muito para mudar a realidade posta por quem de fato mantém o poder, o Governo. Gente igualzinha àqueles que peitaram os militares nos Anos de Chumbo, gente igualzinha àqueles que asseguraram o impeachment do Collor. Gente que dormia...

Hoje, o Brasil vivencia um momento de turbulência. E os tremores, ao que parece, acabaram acordando o gigante adormecido. E com arrepios na espinha e pupilas dilatadas, pude testemunhar a formação de uma grande e bela manifestação popular. O Povo novamente indo às ruas, gritando palavras de ordem, cansado de ser feito de gado, resgatando o sentimento de civilidade e demonstrando que não é nenhum disparate as pessoas comuns mudarem a realidade impostas por aqueles que as governam. Porque hoje entendi que governar não significar mandar, mas, obedecer!

E agora, diante disto tudo, passada minha crise existencial dos 20 anos, aos 30 posso fazer diferente. Não sou mais um moleque de 12 anos perdido em uma cidadezinha no interior da Bahia. Estou no olho do furacão e sei que tenho que fazer minha parte. Ainda que sozinho, eu não possa mudar o mundo. A hora é esta.

Quero, daqui a alguns anos, olhar para este momento histórico e não mais ver que tudo passou e eu estive de longe observando. Quero lembrar que fiz parte disto. E estou seguindo meu caminho, rumo às manifestações, rumo a um sonho: o de ver finalmente, a palavra Democracia fazer algum sentido.

terça-feira, 12 de março de 2013

Reminiscências

Era o típico garoto desajustado. Com poucos amigos, de poucas palavras, tinha um universo girando em ritmo alucinante dentro de si, tão rápido que nunca conseguia pará-lo. Em seu mundinho solitário sentia-se deslocado. Tudo de si sobrava em si próprio. Sentia-se incômodo para si mesmo. Não sabia onde pôr as mãos, como caminhar sem parecer flutuar – até hoje não aprendeu –, nunca acertava o tom da própria voz: tinha receio de suavizar sua fala e parecer excessivamente delicado, de um modo como não se enxergava; tinha insegurança de torná-la grave e revelar sua farsa, tornando-se ridículo. Seu maior receio era que soubessem quem era.

E assim, desaprendendo a sentir o mundo que o cercava, trancou-se em sua própria prisão. Cumpriu sua pena resignadamente sem sequer ter certeza se praticara de fato algum crime. A única vez que tentara tinha sido infrutífera. Mas, jamais conseguiria tirar das mãos a culpa pelo ato não finalizado. Todo cumprimento de pena se lhe afigurava ínfimo e mesmo quando teve oportunidade de se ver livre, não soube de imediato o que fazer do vasto mundo que se apresentava sob seus pés.

Daquele passado então não bastante remoto, lembrava-se de um par de amigos. Gente que admirava em silêncio, pelo simples fato de viverem, de respirarem sem culpa. Admirava-se de que em seus pares existisse vida. E agora, via diante de si a oportunidade de começar sua própria vida. Não sabia direito o que fazer com ela. Tudo lhe soava novo e isso o assustava. As pessoas certas agora estavam todas ali e o desajustado, que já não era mais tão garoto, foi se encaixando lentamente em algum nicho onde se sentia inteiro... Onde sentia a si mesmo e ao qual poderia talvez pertencer.

Quando o garoto cruzou a fronteira que separava o menino do homem, o homem chorou. Chorava por saber que o garoto jamais voltaria e que a vida jamais lhe traria de volta a chance de ser outra vez menino. Tinha agora que olhar para frente. Via-se um homem – e agora já sabia como modular sua voz, que o tempo revelou ser grave. Ainda assim, sentia-se um farsante. Tudo em si lhe sobrava. Não soube o que fazer de si quando garoto, como aprenderia o que fazer de si como adulto? Em criança, achava que o mundo dos adultos seria desgastante. Em adulto, adquirira a certeza.

Mas, nada mais lhe restava a fazer, senão crescer. O que tinha de mais importante se perdeu. E o que mais lhe doía era perceber que só sabia que o que se fora faria falta por já ter perdido. Comera da maçã e não conseguiria voltar atrás. Mas, tivera sorte de encontrar, ao longo do caminho, outros desajustados. Aquela gente estranha, tão estranha, tão perturbada, tão retorcida, tão desviada que era tudo o que mais parecia consigo.

Finalmente estava livre. Não havia mais um garoto desajustado. Havia um mundo em completo desajuste que não se coadunava com o garoto, que sempre estivera certo e havia se tornado um homem, este sim, indefectível.

Novas leis norteavam seus passos, mas como não podia deixar de ser, teria que dar adeus. E deixar para trás – o que quer que fosse – soava injusto. Não tinha muito. Não juntara. Não colecionara. Tudo o que tinha eram lembranças de um atormentado vazio que, por mais que se esforçasse, jamais conseguiria preencher. O passado ficou para trás e aquele espaço deixado vago pelo dia de ontem não poderia ser coberto pelo de hoje. E o de amanhã lhe causava temor. Aprendera a detestar surpresas. Aprendera a odiar o desconhecido.

Lentamente, porém, o que lhe era familiar passava a ser desinteressante. Paredes que outrora lhe davam segurança, agora lhe pareciam claustrofóbicas. Queria sair da zona de conforto. Sempre que pode, acende uma vela àquele garoto desajustado. Faz uma prece e pede para que descanse em paz. Seu tempo acabou e a idéia de que seu espectro desorientado ronde seu mundo não o agrada.

Hoje ele já sabe onde colocar as mãos. E nada lhe sobra de si. Tudo é falta. Não a falta árida da escassez, mas a falta doce, a ausência do que pode vir a ser. A perspectiva. Deseja que cada dia seja diferente e vislumbra com certa paz um porvir. Em verdade, aguarda-o, com a certeza de que todo o tempo que lhe resta no mundo não será o bastante. Porque tem dentro de si todo um universo em movimento. E espera que não pare enquanto respirar.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Retratos de Família, de Tyto Neves: poesia disfarçada de técnica

Se acaso pretende ler um livro sobre técnicas fotográficas, cheios de explicações sobre EXIF, aberturas, velocidades e ISOs, esqueça. Mas, se pretende ler um livro que o ensine a fotografar, então está no caminho certo. Porque fotografia envolve técnica sim, mas é, sobretudo, emoção. E emoção existe de sobra neste belo livro, publicado pela iPhoto Editora, de autoria do fotógrafo Tyto Neves.

O primeiro impacto de “Retratos de Família”, kit composto de um livro e um DVD, acontece quando abrimos a embalagem e nos deparamos com a delicadeza e o capricho de um laço em fita envolvendo seu conteúdo. Talvez uma simbologia aludindo aos laços afetivos que unem os familiares entre si, talvez um pequeno presente para agradar os leitores, talvez um pouco de cada coisa. Seja como for, demonstra um tipo de zelo que faz jus à encadernação primorosa em capa dura e páginas de boa gramatura.

Ilustrado com belíssimas fotografias, o livro narra, com uma linguagem simples, objetiva e dinâmica, a trajetória profissional do autor que, aos 29 anos de idade, resolveu mudar de profissão para viver da gratificante missão de produzir imagens. Sem, no entanto, limitar-se a ser uma autobiografia, a obra traz diversos esquemas de iluminação, ilustrando-os com retratos feitos a partir de cada um deles, de tal forma que o leitor consegue prever os resultados dos esquemas que vier a praticar.

O livro aborda ainda alguns tipos de equipamentos necessários para a realização de cada tipo de trabalho, trazendo um breve panorama das lentes e das fontes de luz mais adequadas ao tipo de ensaio que se propõe a fazer. E, de forma bastante elucidativa - e inspiradora - traça estratégias de mercado que auxiliarão o iniciante na carreira de fotógrafo profissional.

Mas, o que realmente chama atenção é que, enquanto ensina as técnicas necessárias para obtenção de bons retratos de família, o autor conversa com o leitor, expondo-se de um modo tão natural que em alguns momentos, temos a impressão de que não estamos lendo um livro, e sim que estamos frente a frente com o Tyto Neves em uma mesa de café durante um agradável bate-papo em uma tarde qualquer. E é aí que se encontra o diferencial desta obra.

Repleto de sutilezas, o livro brinca com o próprio título, porque além de ensinar a fazer fotos, a obra é, em si mesma, um retrato. Um retrato da própria família do autor, muitíssimo bem delineado pelas histórias ali contadas. Diante da emoção transmitida pelo texto, conseguimos sentir a cumplicidade existente entre o escritor-fotógrafo e sua esposa, o carinho demonstrado pelos próprios filhos e a prioridade concedida à própria família, sabiamente colocada em primeiro plano antes de qualquer trabalho.

Com tudo isto, é fácil perceber que as lições transmitidas em “Retratos de Família” refletem o conhecimento não apenas fotográfico do autor, mas, sobretudo, do valor essencial da família. E por tal razão, ao leitor fica a sensação de poder confiar plenamente em seus ensinamentos, eis que trazidos por quem tem gabarito e compreende a família enquanto base para formação do indivíduo. Dotado, portanto, de grande habilidade para capturar sua essência em uma fotografia.

O DVD que acompanha o livro mantém a mesma qualidade de todo o trabalho, complementando magistralmente seu conteúdo. Quem já teve contato com o Tyto Neves e teve a oportunidade de assistir a um de seus vídeos publicados no YouTube, sabe que encontrará a mesma atmosfera leve, bem humorada e didática que lhe é peculiar.

Obra mais que recomendada tanto a fotógrafos iniciantes e experientes, "Retratos de Família" deve ser lido e relido, além de estar sempre ao alcance da mão para servir de consulta e inspiração.