terça-feira, 24 de novembro de 2015

Doce

Doce

Era para ser doce.
Mas, hoje, chafurda na lama.
Porque o que valia
agora não mais vale,
já que o que Vale
despovoa a Povoação.
E o que era Regência,
não rege mais uma gota.
Enquanto Mariana chora.


(23/11/2015)

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

O mar de lama e o mar da ignorância

Tem uma galera compartilhando o Decreto nº 8.572/15, assinado pela Presidente Dilma Rousseff, no dia 13/11/2015, imediatamente depois do desastre que atingiu a cidade de Mariana, em MG, no qual uma barragem da mineradora Samarco se rompeu e ocasionou um mar de lama (que, infelizmente, não é apenas em sentido figurativo). O trágico acidente destruiu famílias, cidades e ecossistemas inteiros e a responsabilidade pela ocorrência está sendo apurada para ser atribuída à Vale do Rio Doce e às empresas envolvidas. Segue a íntegra do texto:

"DECRETO Nº 8.572, DE 13 DE NOVEMBRO DE 2015
Altera o Decreto nº 5.113, de 22 de junho de 2004, que regulamenta o art. 20, inciso XVI, da Lei nº 8.036, de 11 de maio de 1990, que dispõe sobre o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço - FGTS.
A PRESIDENTA DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere art. 84, caput, inciso IV, da Constituição, e tendo em vista o disposto no art. 20, caput, inciso XVI, da Lei nº 8.036, de 11 de maio de 1990,
DECRETA:
Art. 1º  O Decreto nº 5.113, de 22 de junho de 2004, passa a vigorar com as seguintes alterações:
“Art. 2º  (...)
Parágrafo único.  Para fins do disposto no inciso XVI do caput do art. 20 da Lei nº 8.036, de 11 de maio de 1990, considera-se também como natural o desastre decorrente do rompimento ou colapso de barragens que ocasione movimento de massa, com danos a unidades residenciais.” (NR)
Art. 2º  Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 13 de novembro de 2015; 194º da Independência e 127º da República.
DILMA ROUSSEFF
Miguel Rossetto
Gilberto Magalhães Occhi"

Ocorre que este Decreto acima aludido alterou a redação de outro Decreto, o de nº 5.113/04 e, como se viu no texto, atribuiu o caráter de "natural" ao desastre decorrente de rompimento ou colapso de barragem. E por conta disto, como costuma acontecer no Tribunal das Redes Sociais, a galera que o vem compartilhando - sem se aprofundar no tema -, vem demonstrando uma total indignação diante da alteração. Alegam, equivocadamente, que esta modificação, é uma manobra presidencial para extinguir a responsabilidade das empresas envolvidas no desastre, que agora tem caráter de desastre natural.

Não, facebookers, não é disto que se trata! Por favor, não disseminem a falta de conhecimento! O Decreto nº 5.113/04, cuja redação foi alterada pelo Decreto publicado semana passada, regulamenta o artigo 20, inciso XVI, da Lei nº 8.036, de 11 de maio de 1990, que dispõe sobre o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço - FGTS. E, nesta regulamentação, prevê situações, normalmente urgentes, dentro das quais - justamente em virtude da urgência e da necessidade - pode-se antecipar  saque do FGTS, ainda que não se tenha rescindido um contrato de trabalho. 

Assim, o decreto assinado semana passada pela Presidente Dilma, que acrescentou este novo parágrafo único ao artigo 2º do Decreto nº 5.113/04, ampliou as circunstâncias possibilitadoras de saque antecipado do FGTS, uma vez que a Lei nº 8.036/90, em seu artigo 20, XVI, diz:

"Art. 20. A conta vinculada do trabalhador no FGTS poderá ser movimentada nas seguintes situações:
(...)
XVI - necessidade pessoal, cuja urgência e gravidade decorra de DESASTRE NATURAL, conforme disposto em regulamento (...)" (o grifo é meu)
Sendo, assim, conforme diz o texto do parágrafo único do artigo 2º do Decreto nº 5.113/04, a alteração diz respeito tão somente aos fins previstos no artigo 20, XVI, da Lei nº 8.036/90. Ou seja, apenas PARA FINS DE ANTECIPAÇÃO DE SAQUE DO FGTS.

Sem essa de que o Governo está incentivando a impunidade, sem esta de que está alterando a responsabilidade pelo crime ambiental praticado, sem essa de compartilhar informações pela metade e induzir o pensamento medíocre fundamentado em coisa alguma. Porque assim como ruiu a barragem de Mariana, por sua pouca sustentação, assim também ruirão os pensamentos mal sustentados.

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Imposição da iconoclastia

Quando o objetivo é eliminar preconceitos, o processo de desconstrução é muitas vezes - senão sempre - bem-vindo.

No entanto, como em qualquer forma de quebra de paradigmas, é preciso ser parcimonioso, ponderado no julgamento do que deve ser extirpado, por ser fator de alimentação dos preconceitos contra os quais se está lutando, e o que consiste apenas em conceitos, atitudes, pensamentos ou ideias, desprovidos de quaisquer julgamentos de valor.

Do contrário, esta busca indiscriminada pela iconoclastia pode se revelar uma imposição de um ponto de vista, uma ditadura disfarçada, resguardada pelo falso discurso de revisão axiológica que nada mais faz senão  inverter polos, trazendo para o oprimido o discurso do opressor, e para o suposto opressor o papel do oprimido.

Bom senso é fundamental. Nem todo muro precisa ser derrubado, porque contenção nem sempre é prisão. Isto é democrático: reconhecer que o outro pode querer ser diferente de você sem que para o outro aquilo que você é signifique algo menor, pior ou inferior.

Desencontros ou Acomodação Nossa de Cada Dia

Surpreende-me quando as pessoas se encontram em um nível tal de insatisfação com um sistema, mas vivem tão fechadas no Caverna do mito platônico, que não aceitam a busca por uma fórmula alternativa.

Tempos atrás, duas pessoas criticavam o sistema cruel de interesses por trás da vida de paquera e da formação de um relacionamento.

Um discurso apocalíptico e generalista, em padrões aterrorizantes de falta de perspectiva.

Algo próximo disto, do lado dela: "Nós, mulheres, passamos a vida nos produzindo para os homens e lutando por estabilidade financeira, para não sermos deles dependentes. Quando temos a tal estabilidade, não somos mais garotinhas novinhas e precisamos nos produzir mais e mais para compensarmos a ação do tempo sobre nosso corpo. Quando eles querem filhos, de quem nós nem sempre podemos cuidar, não conseguimos satisfazer seu interesse de formar família. Quando aceitamos, ficamos mais e mais acabadas e temos que abrir mão, muitas vezes, da nossa carreira, perdendo a estabilidade financeira. E eles, invariavelmente, nos mantém dependentes, de forma que não temos escolha. E eles também perdem por nós o interesse, indo procurar na rua por garotinhas novinhas e mais atraentes que nós."

Algo próximo disto, do lado dele: "As mulheres se queixam de que não querem ser dependentes dos homens. Mas, quando se interessam por um cara, procuram logo saber sua situação financeira, se tem carro, se mora em casa própria, quanto ganha... Nenhuma fica à vontade para querer namorar um pé-rapado. Nós passamos a vida inteira trabalhando para conseguirmos uma vida social estável e, com isto, chamarmos atenção das mulheres, que estão sempre ocupadas demais gastando com roupas e maquiagens, segundo elas, para nos agradar. O cara tem que ter dinheiro para bancar isto. Homem não gosta de mulher feia. Mas, não é agradável também ter uma mulher que dependa da gente o tempo inteiro!"

A unanimidade no discurso de ambos: "É tudo um jogo de interesse. O sistema é cruel e no fim, todos se queixam, porque é isso. Relacionamentos sexuais e afetivos são isso e nascem fadados ao fracasso!"

É quando alguém timidamente intervém na conversa e sugere: "Não seria mais fácil se interessar apenas por quem se gosta e não por quem pode bancar ou quem aparenta estar mais bem vestida?"

As reações são ainda mais aterrorizantes: "Lá vem a pessoa sonhadora e idealista! Acha que vamos viver pulando de galho em galho? Sem ninguém estável? Trocando de relacionamento como quem troca de roupa? Tendo vários relacionamentos simultâneos, como essa modinha que vem aparecendo aí agora? Sentimento não funciona, não; isso é papo furado!"

Pois é, caros amigos. A busca por alternativas acaba por soar sempre como uma proposta inconcebível quando estamos diante de uma realidade que se impõe a pessoas que preferem se acomodar na infelicidade.

Não, obrigado. Quando pego um ônibus errado, prefiro descer até achar meu caminho correto. Não importa quantas conduções tenha que pegar de novo.

Reflexões de um acidentado

(originalmente publicado em meu perfil no Facebook, após ter sido atropelado em agosto de 2015)
Engraçado como umas palavras têm peso maior que outras num relato. E não, isso não é, de forma alguma uma crítica negativa, tampouco significa que eu esteja aborrecido. Mas, apenas uma constatação de fato que me põe a pensar sobre o uso que damos às palavras.
Percebo que as pessoas parecem nunca ler a frase "estou bem". Ontem, sofri um acidente, um atropelamento, e achei por bem informar à família, aos amigos, aos colegas de trabalho, que havia acontecido. Mas, minha maior preocupação, antes de tudo, era deixar claro que estava fora de perigo. Estava informando o fato, mas sem querer preocupar quem quer que fosse. Relatei o acidente e escrevi várias vezes "não se preocupem, está tudo bem". Mas, a sensação que tive é que ninguém lê esta parte. Repito: não estou criticando. Recebi imediatamente telefonemas desesperados de pessoas preocupadas com meu estado. Nervosas, angustiadas, tensas, que me perguntavam a cada segundo se eu estava mesmo bem e por mais que eu dissesse que sim, pareciam não ouvir e perguntavam de novo e de novo e de novo.
Isso me pôs a pensar em duas coisas: a primeira, vale a pena informar má notícia apenas por informar? Apenas para que saibam que algo aconteceu, mas que não necessariamente você esteja nas últimas? Não é a primeira vez que isto acontece. Outra vez fui assaltado e relatei da mesma forma, enfatizando o "estou bem", mas as reações eram sempre de quem só lia "assalto" e "mão armada".
A segunda, e talvez mais importante das coisas em que pensei, é o cuidado que devemos ter com as palavras que escolhemos. Parece-me que as pessoas tendem a fixar mais as palavras negativas que as positivas. "Acidente", "ferimento", "atropelado", "assalto" têm um peso maior na percepção das pessoas que "estou bem", "foi leve", "não preocupar".
Puxo este gancho para um outro assunto que debatia com uns amigos ainda ontem, cerca de uma hora antes de ter sido atropelado: a sinceridade.
Algumas pessoas se sentem vítimas por não serem compreendidas quando decidem ser "sinceras demais". Não são poucos os relatos que vejo de gente se afirmando muito sincera e de que isso costuma ser encarado como um defeito por muitos que não compreendem a sua "qualidade de falar sempre a verdade".
Em minha singela opinião, acho que a sinceridade também precisa ser dosada. Não a verdade a ser dita, mas como se diz.
Muitas vezes, grosseria e estupidez são distribuídas sob a alegação de "excesso de sinceridade". E, sinceramente (com o perdão pelo trocadilho), acho isso estúpido e grosseiro. Uma mesma verdade pode ser dita de várias formas diferentes e é necessário haver uma dosagem nas palavras e nos tons escolhidos para dizê-la. A vida nos coloca algumas vezes em situações em que a escolha é impossível. Não há opção para dizermos algo a alguém de forma que a pessoa não se doa pelo que foi dito. Mas, sempre haverá a opção para que ela não se doa pela forma como o foi.
Sendo assim, pesemos a intensidade das palavras antes de falarmos algo a alguém, acreditando-nos no dever de sermos honestos. Se não tiver opção, fale algo que você não gostaria de ouvir. Mas, jamais fale de uma forma que você não gostaria de ouvir.
Pensarei nisto se, em algum momento futuro, eu me sentir na necessidade de relatar algum outro fato ruim que, porventura, venha a me acometer.

Pequena fábula sobre o Lobo em pele de Cordeiro ou sobre a Hipocrisia disfarçada de Gentileza.

Era uma vez uma mocinha. Feia, desenxabida, sem noção. Não, não é sobre seus atributos físicos que iremos falar.

Era uma vez uma senhorinha.  Frágil, franzina, mas resistente. Não, não é sobre sua persistência que e trata este pequeno conto.

Mais parece um Hai Kai, tão diminuto que é.

O ônibus estava lotado quando a senhorinha entrou. A mocinha viajava bem acomodada, sentada em sua poltrona, provavelmente conquistada com unhas e dentes no primeiro ponto, de onde o ônibus ainda partiu quase vazio. A senhorinha, contorcendo-se entre os passageiros de pé, estacou no espaço em que cabia naquele corredor abarrotado, ao lado da mocinha feia e sem noção.

Os olhos das duas se cruzaram. Foi um rápido momento de confronto, quase uma acareação, entre aquelas duas desconhecidas. Quase instantaneamente, a mocinha baixou seu olhar para seu celular e continuou digitando freneticamente mensagens para alguém em algum lugar do planeta. A senhorinha seguia resoluta, altiva, orgulhosa por segurar a barra amarela, resistindo bravamente à força da gravidade em cada curva fechada que aquele ônibus cheio desenhava.

Assim, seguiram por cerca de quarenta minutos. Vez ou outra a mocinha levantava os olhos da tela do seu aparelho e chocava seu olhar com o da senhora que ali jazia de pé naquele Navio Negreiro que Castro Alves não ousou descrever.

Até que a gentileza se instaurou:

- Sente-se aqui, senhora - disse a mocinha já levantando, cedendo seu lugar, depois de viajar por cerca de quarenta minutos (faltava menos de quinze para a condução chegar ao seu destino final).

- Não, filha, obrigado. Logo vou descer - respondeu a senhorinha com sua voz delgada.

A mocinha mal conseguiu ouvir de longe suas últimas palavras, pois já descia os degraus daquele ônibus no ponto em que solicitara, segundos antes de ser acometida por aquele gesto de solicitude.

É. E ao final, não pareceu um Hai Kai.

Descrença


(originalmente publicado como postagem no meu perfil do Facebook em 11 de novembro de 2015)

Faz-me falta o não-pensar. O pequeno interruptor de desligar o raciocínio lógico, coerente, irritantemente analítico.

Não preciso de mais emoção. Percebi, finalmente, que tenho de sobra razão e emoção e que as duas coisas não se excluem mutuamente como sempre achei que fosse (achismo este que sempre me conduziu a um muro instransponível todas as vezes em que tentei explicar este tipo de dualidade que trago desde tempos atrás).

Não, não é emoção que me falta. É fé. Esta descrença que me acompanha, sentada sobre os meus ombros, começa a pesar. Esta sim, perde lugar para o pensamento e a racionalidade. E eu queria não pensar mais. Quero poder apenas fechar os olhos e pular de cabeça, sem pensar na intensidade da colisão, mas não necessariamente deixando de sentir o vento no rosto. Apenas acreditando que o fim da linha seria tenro. Sem precisar sopesar fatores e números. Sem precisar ver. Apenas crer. Que sim. Porque sim. Ter fé para aceitar o não-compreensível, para compreender o não-explicável. Para não ter que pensar. Apenas deixar fluir. E sorrir por levar uma certeza calcada sobre nada.

A Nossa Cama

A nossa cama

Corre a noite... Nossa cama testemunha
Meu suor, teu gemido, nosso ardor!
É quando somos bichos, meu amor!
Ofegantes... carne, dente, corpo, unha.

Madrugada. Entorpecidos de cansaço,
deitamos. Nossa cama tão macia!
Felizes, juntos, ao final de mais um dia
Enlevamo-nos, perdidos num abraço...

Dorme, amor meu, dorme comigo
Trago-te em sonhos... (não ouses vir, aurora!)
Mas, eis que a manhã nasce e o sol levanta!

Olho teus olhos. Tua luz! É tanta... Tanta!
E é nesta alcova que minh'alma se enamora,
É nossa cama, nosso reino, nosso abrigo.

(13.11.2015)