quarta-feira, 5 de maio de 2021

Um Conto de Pandemia ou Diálogo com um Geminiano

— Até queria, mas não estou no momento para viver um romance agora. Talvez quando concluir o mestrado, tiver um carro, uma casa, colocar o corpo em forma...

— Você acha que vida é algo que espera uma hora certa para acontecer?

— Você não?

— Claro que não! Não é que dedicar-se a seus projetos não seja importante, mas estabelecer fases para experimentar uma existência essencialista e previamente idealizada, a mim parece um tanto irresponsável. Você é feliz?

— Não...

— Então...

— ...mas, vai chegar o momento em que serei!

— Se te faz bem pensar desse jeito...

— E você? Não acha irresponsável viver como se não houvesse amanhã?

— Tire o complemento da sua pergunta e repita.

— "Você não acha irresponsável viver?"

— Agora volte umas casas, lá para o começo da conversa, tire o complemento da sua frase negativa...

—"Não estou num momento para viver"?

— Pois bem. O que te parece?

— Não entendi onde você quer chegar... Mas, diz aí você, que se formou, que entrou no mercado de trabalho, que se habilitou profissionalmente... Vai dizer que cumprir cada uma dessas etapas não te trouxe imensa felicidade?

— Não. Não trouxe. Deveria?

— Não é o que se espera?

— Exatamente! Mas, quem espera? E espera com base em quê?

— As pessoas esperam. Porque é assim que é a vida. A gente nasce, a gente cresce, a gente estuda, se forma, trabalha, adquire bens, casa, tem filhos...

— Que vida é assim? Digo, que vida traz em si, intrinsecamente, essas fases? São etapas inerentes e constitutivas em si mesmas do que se chama vida? E quem não estudou? Quem não trabalha? Não vive?

— Não sei... Talvez não viva. Talvez não como deveria.

— Deveria, deveria, deveria... Você só repete o dever ser. O que deveria ser não é o que é. Essas etapas da existência são frutos de um pensamento criado pela nossa sociedade, que estabelece um tipo de script a ser seguido e nos ensina que deve ser assim. "Você vai ser feliz no dia da sua formatura", "Você vai ser feliz no dia do seu casamento", "Você vai ser feliz quando seu primeiro filho nascer"...  Olha que merda! Criam um roteiro e a gente embarca! Eu não senti essa felicidade idealizada quando me formei. Só senti alívio, não suportava mais a faculdade! Tirar minha OAB? Mais alívio, finalmente poderia trabalhar. Começar a trabalhar? Mais alívio! Poderia pagar minhas contas... O roteiro que nos ensinam transforma em causador de felicidade o que é pra ser um mero momento de transição. Um instrumento para superar uma fase de dificuldade e ingressar em outra. Primeiro nos impõem uma série de dificuldades, como se estivéssemos cumprindo fases de um vídeo game, depois nos dizem "superou uma fase? Isso é felicidade, agora passe para a próxima...

— E alguma coisa em algum lugar te faz feliz?

— ...no fim a gente vê uma caralhada de gente frustrada, seja porque não realiza as etapas que lhes dizem que deve realizar, seja porque, quando as realiza, não encontra o pote de ouro no fim do arco-íris... essa tal felicidade que dizem que deve estar lá! E então a pessoa se frustra, acha que tem algo de errado consigo! E respondendo a sua pergunta, sim, já experimentei momentos felizes. Sentir o vento na cara enquanto ando de bicicleta é uma coisa que me faz feliz. Sabe quando te falei da gambiarra que tive de pensar para consertar meu ventilador? Então... O simples fato de ver meu ventilador funcionando, com uma ideia que eu tive, me deixou feliz. E feliz mesmo! Tipo "uau, sou um gênio!" Por alguns minutos experimentei mais felicidade do que quando finalmente saí da faculdade.

— Estranho alguém ficar feliz com algo que nada tem de grandioso...

— E o que é grandioso para você? O que te faz supor que pegar um diploma é algo grandioso é o valor que te ensinam que um diploma tem. Dizem que casamento é um momento grandioso. Para mim, é um passo para o cadafalso.

— Você não conta, é do contra. Sua opinião sobre casamento sempre foi radical.

— Não se trata disso. Minha opinião sobre casamento sempre foi a "minha opinião". Em parte formada, como todas as opiniões sobre todas as coisas, com base no que experimentamos do mundo. Em parte formada com base na minha subjetividade, que também é fruto do que vejo do mundo.

— Então você diz que tudo que você gosta é porque te ensinaram a gostar?

— Sim e não. Nossa sociedade nos ensina que casar é bom, que se formar é bom, que ter filhos é bom, que trabalhar é bom. A gente então vive para perseguir esse roteiro. Mas, nossas experiências particulares interferem nessa visão geral. Por um lado "o mundo" espera que eu case, porque para "todo mundo", o casamento é um sonho. Mas, eu, querendo ser o diferentão, digo não a essa experiência. E por quê? Porque sou um ser formado em mim mesmo, constituído por valores individuais, originados dentro de mim? Não. Mas, porque minhas experiências vividas ou minhas observações mostram que o casamento não é legal. Eu aprendi a valorar outras circunstâncias que não são compatíveis com a ideia de casar. Então, mesmo eu fugindo do casamento, fazendo parecer com isso que sou uma voz dissonante em meio a uma coletividade que sonha com o dia de jogar o buquê, na verdade sou só uma colagem de outras influências do grupo no qual estou inserido. Se numa escala mais ampla, "o grupo", pensado assim de forma difusa, valoriza o casamento, pode ser que as influências mais diretas que recebi, de pessoas específicas, de leituras específica, de estímulos externos, tenham sido voltadas a cultivar momentos em que estou sozinho. Minha subjetividade foi moldada também.

— Então, você não quer seguir a boiada e viver como a sociedade impõe, mas segue a boiada, vivendo de forma diferente. Não estou entendendo.

— Eu sigo uma boiada dentro de outra. Uma corrente dentro de uma estrutura maior e mais abrangente. Mas, não vamos tergiversar. Voltando ao assunto principal, é necessário entender que, se por um lado seus valores são valores que o meio lhe impõe, por outro lado, você deve abraçar quem você se tornou e aceitar que você pode ser diferente e isso não é nenhum problema. Se você não se sente feliz com um "momento grandioso" talvez porque não exista um momento grandioso em si mesmo, mas um momento ao qual atribuem o valor da grandiosidade. É o tal roteiro do qual estou falando. Eu não preciso estar feliz porque as pessoas dizem que devo estar feliz. Como na formatura, por exemplo. Você pensa que há algo de errado consigo por ter se graduado e não ter se empolgado? Você já viu uma mãe com depressão pós-parto? Já procurou se informar sobre a culpa que sente por não estar feliz com a chegada do bebê, mas deprimida? Vê que ela sofre duas vezes: a primeira dor é a própria depressão em si; a segunda é a culpa por estar deprimida quando o mundo inteiro lhe cobra que esteja radiante. Ela não segue o script e se sente a pior pessoa do mundo.

— Entendo.

— Sabe se essa mãe curtiu a gravidez? Ou se não curtiu a gravidez, mas a novela que passava na TV, ou a promoção à diretoria do setor na empresa em que trabalha... Qualquer coisa. Qualquer coisa que não fosse o marcador "mulher que espera um bebê". O que, no curso do processo a fez feliz, que a maternidade não superou? E por que lhe tiraram isto para a colocarem a ser mãe? 

— É isso que você chama de roteiro?

— Por que você seguiu uma faculdade, que não lhe trouxe felicidade? Por que vai se empregar num emprego que não lhe trará felicidade? Por que pode se prender numa relação que não lhe trará felicidade? Por que não ficará feliz quando segurar no colo seu primeiro bebê?

— Aí, você já está conjecturando...

– Mas, não é esse o cerne de questão! Eu apenas ilustrei que muita gente segue o fluxo. E você está seguindo também! Espero que encontre em algumas dessas etapas um pouco de felicidade. Mas, você não tem garantia alguma de que o fará! Tomara eu esteja errado e você encontre. Mas, você não pode apostar por isso. E aí? Se não acontecer, o que você vai fazer? Vai continuar seguindo o roteiro? Não se trata de te tirar do fluxo, mas apenas te mostrar que você segue um! Para que, amanhã ou depois, se você estiver insatisfeito no rumo que está levando, você possa ao menos cogitar a possibilidade de haver outros... porque as relações entre as coisas são dinâmicas demais para caberem numa escalinha de tempo. Você não quer a porra do namoro? Namore! Vai esperar voltar da Europa, depois de financiar o carro, quando tiver parcelado seu apartamento, após a promoção da empresa em que você trabalhou por dez anos, depois do mestrado, para só então experimentar algo novo?

— Mas, eu estou correndo atrás do meu sonho!

— Que sonho é esse que você persegue e que a cada dia te deixa mais exausto de tudo? Com que estado de ânimo esse sonho vai te encontrar? A vida é o que acontece todos os dias desde que você nasce até quando você morre. Toda a espera não é nada mais que uma projeção de vontade. E não é uma vontade que surge do nada, é uma vontade à qual você é treinado a sentir. E aí, você passa a existência esperando da vida algo que ela não necessariamente irá te dar. Ela até pode. Por sorte. Mas, não necessariamente irá. Enquanto seu evento grandioso não chega, o que você estará fazendo? Isso é vida. Não é nada que tenha em si própria um valor, a não ser o valor que damos a ela. Se você renega todo esse tempo em que O Momento não chegou, você faz o quê? Esse marasmo é vida acontecendo. E todos os dias, a cada dia, a gente precisa tentar encontrar uma razão para estar aqui. Porque senão a existência se torna insuportável! Pra que projetar essa razão para um evento futuro e incerto para então esperar a magia acontecer?

— Parece papo de coach, até me admira você com esse discurso de autoajuda... Chega a ser engraçado você tentar me dizer que a magia acontece a toda hora...

— Você não entendeu nada, então... Não estou tentando lhe dizer que a magia acontece a toda hora, o que estou dizendo é que talvez a magia não venha a acontecer nunca...

— Vai à merda com seu pessimismo!

— ...E isso só se torna um peso quando a gente espera da vida o que ela talvez nunca venha a nos dar. Quando a gente deixa de desejar, a gente deixa de sentir a falta.