sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

O preço é alto

Depois de ler uma matéria acerca de uma decisão do STJ, de que crianças com idade abaixo de seis anos completos antes de 31 de março não podem ingressar no ensino fundamental, e de verificar questionamentos de mães sobre o impacto desta decisão, comecei a lembrar da minha própria história educacional.

Faço aniversário em maio, no dia 23. Quase três meses depois da idade limite estipulada pelo Conselho Nacional de Educação, ratificada pelo STJ. Aprendi a ler com quatro anos e não cursei a alfabetização. Pulei do “pré”, direto para a primeira série, aos cinco anos de idade. Era o mais novo da turma, realidade que permaneceu até meus 15 anos, quando, em 1995, cursei o 2° ano do Ensino Médio, naquela época, ainda chamado 2º Grau. Nesse ano, fui reprovado e, ao repetir o 2° ano, finalmente estudei com colegas na mesma faixa etária que a minha - "adequados" à turma.

O que posso dizer é que, ao longo da minha vida escolar, sofri muita pressão por ser o "mascote" da turma, que entrava sempre na classe como o "menino prodígio" e assim era obrigado a me portar. Uma nota abaixo de 8,0 era praticamente uma afronta! Lidar com isso durante a infância era até OK. Até porque eu gostava de estudar e era vaidoso o bastante para sentir prazer em mostrar meus conhecimentos. E sobre a adaptação, o que significaria ter um ou dois anos a menos que os colegas, não é?

Mas, ter 12 anos numa turma em que a maioria tinha 13 ou 14 foi brutal e fez um estrago enorme na minha cabeça. Eu ainda era criança no meio de pré-adolescentes. O sentimento de desajuste trouxe uma confusão imensa e um processo de adaptação complicadíssimo. Enquanto os outros falavam em namoricos de escola, eu ainda pensava em gibis da Turma da Mônica e jogos de tabuleiro. Obviamente, era alvo de bullying pelos mais velhos. Sem falar na autoestima completamente prejudicada, já que eu era a companhia desinteressante, com quem ninguém queria andar. Afinal, meus interesses eram apenas os meus e não eram compartilhados por aquela turma de mocinhas e rapazotes, ocupados demais em aprender a lidar com a puberdade. E toda essa confusão mental – como não poderia deixar de ser – refletiu no meu desempenho escolar. De “menino prodígio”, “tornei-me o aluno relapso”, a ponto de reprovar em quatro disciplinas (duas das quais eu amo, frise-se: História e Química). O preço é alto.

A sensação de não pertencimento a nenhum grupo fez o estrago que fez na minha adolescência e isso só começou a se aliviar entre meus 17 e 18 anos, quando comecei a me ajustar um pouco mais, já que comecei a andar com pessoas da mesma idade e com os mesmos interesses. E nesta fase, novamente, as pequenas diferenças de idade realmente passam a ser pequenas, possibilitando o convívio harmônico entre os mais novos e os mais velhos.

Porém, o estrago já havia sido feito, lá atrás, entre os 12 e 14 anos, e “começar” a me adaptar aos 18 significou que, pelo menos, por mais uns cinco anos seguintes ainda havia uma série de conflitos para serem quebrados. O preço é alto.

Portanto, pais e mães que querem incentivar a antecipação da vida escolar de seus filhos, tenham muito cuidado antes de quererem adiantar sua série. Pode até ficar bonitinho no boletim, mas na cabeça da criança, pode gerar linhas ilegíveis e cálculos com resultados que nunca batem. E o preço disto? Ah, é alto. Muito alto.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Chuva de Verão

Chuva de verão

Caem do céu, sem lamento, choro ou mágoas.
Pesadas, resvalam em apressadas faces
Escorrem pelo chão: genocídio de águas...
Morrem solitárias. Não há quem as abrace?

Líquida joia, diamante diminuto
Donde vem a plúmbea ausência de suas cores?
Tudo é cinza: seus sorrisos, suas dores!
Tudo é brilho: seus reflexos, seu luto!

Chove... chove... O céu desaba em fragmentos!
Galhos que se curvam, folhas que valsejam
Quando passa em seu cortejo o nobre vento.

Que rufem os trovões à Sua Majestade,
Rodopia o mundo (Vejam! Vejam!)
Quando desce com noite a tempestade.

Rio, 19/02/2016.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

A Cura da Transfobia e a Ressaca Depois do Carnaval

Depois de duas semanas polêmicas, nas quais falei de racismo, suburbanos e gays, vi, durante o Carnaval, circulando nas redes sociais, umas fotos de um rapaz bonitão beijando uma travesti. Vários ângulos, vários cliques e vários comentários, todos repetidos à exaustão. Desde os cliques, que sempre denotavam o imenso prazer do rapaz e do travesti de estarem um com o outro; aos comentários, que sempre mencionavam, em tom constrangedoramente jocoso, o suposto papel de trouxa que o rapaz teria feito ao ser enganado por uma travesti.

Depois de falar sobre tantos temas capazes de despertar a ira de muitos e o apoio de outros tantos, num intervalo tão curto de tempo, prometi a mim mesmo que não comentaria sobre o caso. Mas, eis que ainda hoje, passados mais de sete dias depois do Carnaval, parece-me que não se passaram os efeitos colaterais da bebedeira e dos desvarios típicos da Festa da Carne. E assim, numa constante embriaguez de ideias turvas, a capacidade de falarem besteiras parece não ter fim. Sim, ainda hoje, vi o assunto ser trazido à tona outra vez.

Novamente o mesmo tom ridicularizando o rapaz. Sempre o pobre rapaz, vítima das artimanhas da travesti do mal, enganado em sua honra, ridicularizado em sua masculinidade profundamente abalada. Poderia discorrer agora sobre este papel da vilã sórdida e enganadora atribuído à travesti e o papel de mocinho inocente enganado atribuído ao rapaz, e com um elo de ligação para abordar o papel da enganadora Eva ao trouxa do Adão, discorrer de forma prolixa sobre feminismo e misoginia, mas preferirei não fazê-lo. Não ainda.

Em uma semana na qual um pastorzinho com "a cara do leão" devorador de ovelhas trouxe novamente à mídia a então ultrapassada e medieval discussão sobre cura gay, achei por bem focar nos temas homofobia e transfobia.

E vendo novamente a repercussão das fotos do Casal Frisson deste Carnaval, a pergunta que faço é: Será mesmo que o rapaz foi enganado? Desdobrando o questionamento em inúmeras outras perguntas, será que ele não pode ter escolhido deliberadamente uma travesti para se relacionar durante o Carnaval, ou quem sabe, para além das festividades? O fato de o rapaz ter um perfil físico capaz de imperar no imaginário e nos desejos de muitas mulheres e de muitos homens tira de si o direito de escolher uma travesti para beijar durante o Carnaval?

Em uma semana na qual se falou sobre cura gay, acredito que seria muito mais saudável se tramitasse no Congresso uma lei que instituísse a cura da homofobia e da transfobia. Até porque, de acordo com a Organização Mundial de Saúde, homossexualidade não é uma doença, fobias são. Claro que este projeto de lei que prevê a cura da homofobia e da transfobia não passa de uma brincadeira utópica da minha cabeça. Mesmo porque, ainda de acordo com a OMS, a cura de algumas fobias pode ser obtida através de cirurgias que retiram parte do cérebro do paciente. E no caso de transfóbicos e homofóbicos, como retirar parte de um órgão que estas pessoas não têm?

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Vai ter suburbano, sim!

Aos nove anos, saí do Espírito Santo, onde nasci, para morar na Bahia. Quando dizia aos meus colegas que iria embora para a Bahia, a reação deles e a minha era sempre de pena e de autocomiseração. Afinal, eu iria para a Bahia, aquele lugar feio, subdesenvolvido, com terra árida e cuja população tinha um alto índice de pessoas negras. Era de dar pena uma criança branca e de olhos claros, acostumada a uma terra civilizada, repleta de outras pessoas brancas e de olhos claros, ter, de repente, que enfrentar aquela realidade nova e assustadora.

Assim, segui rumo ao meu exílio para o Nordeste do Brasil, lugar onde, antes mesmo de lá pisar, fui ensinado a odiar ou do qual me compadecer. Vivi meu preconceito e sofri por causa dele. Uma espécie de banzo me acompanhou por eu ter sido obrigado a lidar com aquela gente inferior a tudo aquilo que eu era.

Era de dar pena. Não, não a situação do menino branco, capixaba e mimado, que achava assustador ter que enfrentar os bárbaros nordestinos e inferiores. Mas, o tipo de criança mesquinha e preconceituosa que ensinaram este moleque a ser.

Um dia eu cresci e me dei conta de que era baiano, era fascinado pela cultura negra, deslumbrado com a capoeira, os atabaques, a culinária típica, era apaixonado pelo sertão de solo e feições rachadas e aquelas pessoas simples, cheias de histórias para contar. Estava livre do garoto antipático e preconceituoso que um dia fui e me sentindo grato por ter tido contato com culturas diferentes daquelas em que fui criado.

Aprendi a simpatizar com a pobreza, com o subúrbio, com negritude, com o sotaque carregado, com o som das periferias, com a batalha das pessoas que carregam latas d'água na cabeça ou cestas de salgados para vender na praia. E qual não foi minha surpresa quando me dei conta de que... Epa... Meu pai é negro, minha avó era lavadeira e eu nunca fui tão branco assim; ah, e sempre fui pobre.

Mas, nunca deixei de lado meu gosto tido por elitizado. Quando passei a curtir samba e ópera com a mesma intensidade, literatura de cordel e poesia simbolista com a mesma emoção, ballet e passinho com o mesmo encantamento, percebi que eu podia transitar livremente entre todos os mundos. E não trazer qualquer tipo de rótulo era libertador.

Infelizmente, ao longo da vida, convivi com muitos "antigos eus", gente que carrega tanto preconceito , que não consegue enxergar a própria  pequenez diante de um universo tão diversificado.

Lidar com tudo que nunca foi meu fez de mim um possuidor de tudo. Longe de mim carregar um discurso demagogo e despeitado, desdenhando do que não posso ainda alcançar, para supervalorizar aquilo que é costumeiramente menosprezado. Sim, eu adoro a Zona Sul carioca e adoraria morar em uma cobertura gigantesca na Vieira Souto, de frente para o mar. Sim, adoro restaurantes caros e requintados, e quem me dera eu pudesse frequentá-los diariamente. Adoro assistir a concertos de música clássica no Theatro Municipal e quem me dera não tivesse vizinhos ouvindo som alto e atrapalhando meu sossego em casa quando quero o silêncio.

Mas, gostar de tudo isto não me impediu de morar no subúrbio do Rio e saber aproveitar o que esta gente pobre, negra e de baixa instrução tem a oferecer de melhor! E põe "de melhor" nisso! Frequentador assíduo da praia de Ipanema até uns anos atrás, não senti pena de mim mesmo quando tive de me mudar para a Baixada Fluminense, como sentia vinte e tantos atrás quando saí do Espírito Santo para a Bahia. Ainda acho que Nova Iguaçu possui os melhores restaurantes com os melhores atendimentos da região.

Mas, tudo isso não me impediu também de encarar as pessoas chocadas, estupefatas, estarrecidas e abismadas, repletas de um deprimente misto de asco, medo e piedade porque em dado momento eu precisei ou optei por frequentar lugares tidos como abaixo de suas condições. Cresci lidando com isto. Do Espírito Santo fui para a Bahia. De uma cidade à beira-mar, fui cursar faculdade e morar numa favela à beira da estrada. Ao vir para o Rio, saí de um bairro perto da praia (mas que também não era Zona Sul e exigia a travessia de um túnel para chegar nela) para outro no subúrbio, de onde me afastei mais para ir para a Baixada, até voltar para o subúrbio, onde vivo atualmente. E todas essas fases sempre acompanhadas de olhares e questionamentos, comentários preconceituosos e discriminativos de muita gente à minha volta.

Quando deixei de escolher Ipanema e Leme, substituindo-os por Madureira e Inhaúma, passei a ser julgado. Lidar com gente preconceituosa nunca foi surpreendente, diante da trajetória que vivi e narrei acima. Mas, sempre foi imensamente desagradável. Dias atrás, exaltei o Parque Madureira, minha opção no verão deste ano, e fui surpreendido pela pergunta de um morador de Campo Grande, bairro da Zona Oeste, imensamente mais longe e ainda mais carente que o subúrbio da Zona Norte:

"- Parque Madureira? Mas, lá não tem muito favelado?"

Depois de revirar meus olhos verticalmente em quase 180 graus, sorri e respondi, seguindo-se o diálogo:

 - Óbvio que tem! Madureira é uma favela. E eu, que moro aos pés do Morro do Dezoito, na Piedade, sou favelado também. Eu estava lá. Como eu, muitos outros.
 - Você não é favelado! Você é civilizado..
 - Não sou? Claro que sou! E você também, né? Você mora em Inhoaíba, Campo Grande!
 - Não. Favelado, quero dizer, bandidinho, baderneiro, você sabe, né?
 - Sim, sei. Infelizmente os conceitos se mesclam. Favelado agora virou sinônimo de bandido. Preto, pobre, suburbano, tudo isso é sinônimo de bagunça, confusão, baixaria. Não, o Parque Madureira é um dos lugares mais incríveis que conheço aqui no Rio! Tem preto, tem pobre, tem favelado, tem funkeiro, tem tia gorda gritando com Cleudismar e o Cleydson... Tem tudo isso! E por isso mesmo é incrível. Porque nos coloca em contato com gente de verdade, de todo tipo, de todo modelo, de toda variedade...

Infelizmente esse pensamento ridículo, prevalente em mentes pouco evoluídas, se multiplica a cada geração que perpetua a (des)educação que recebeu.

Nesta semana, ouvi de um morador da Tijuca, bairro de classe média da Zona Norte, a mesma Zona Norte onde também se encontra Madureira, comentários que não me despertaram menos que asco e desprezo, sobre a área de lazer que escolhi: "(...) Mas, vai para a porra de Madureira!? Você tá me debochando, adoro você, mas MADUREIRA? (...) ele é muito fofo para ir para Madureira. (..) Comer pastel em MADUREIRA?!"

Sim, Madureira! Se pessoas pequenas não sabem abrir os olhos para o que foge de sua zona de conforto e não conseguem aproveitar o que há de melhor em cada uma das regiões além das suas, só lamento pela redução de seus horizontes, e pela limitação do seu prazer.

Felizmente, quando criança fui morar aos nove anos na Bahia, fui apresentado àquela gente então estranha, naquela terra seca e encarquilhada, que descobri, tempos depois, que era muito mais chuvosa e próspera que muitos outros lugares por onde andei. Conheci a capoeira e o candomblé, a simplicidade sertaneja e ostentação das praias mais belas em que já pisei, o sotaque carregado e o vocabulário estranho que substitui "canjica" por "mungunzá". Felizmente, quando adulto, conheci Madureira e suas pretas roliças e bundudas, seus feirantes, suas frequentadoras de baile charme, seus homens de pele curtida pelo sol escaldante, a algazarra de suas crianças, as Velhas Guardas de suas escolas de samba, e seu parque.

Por tudo isso, se eu tiver mesmo de escolher entre o preto favelado do subúrbio e o burguesinho tijucano metido à besta, não pensarei duas vezes antes de fazer minha opção: Madureira, aí vou eu.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

O Racismo e a Relativização nas Discussões

Hoje vi uma foto de um rapaz e uma moça, ambos brancos, fantasiados de Aladim e Jasmine. O rapaz carregava em seus ombros um garotinho, moleque, de uns quatro anos, talvez, negro, que compunha o conjunto, fantasiado de Abu, o simpático macaquinho do Aladim.

Todos na foto pareciam felizes, inclusive o menino. Quem me mostrou a foto apenas me disse "Olha isto!". Fiquei algum tempo olhando sem compreender exatamente o que ele queria dizer com "isto". A fantasia do grupo? A beleza dos envolvidos? A composição da foto? Por alguns poucos segundos fiquei perdido, até que li parte do texto que acompanhava a foto e perguntei "é sobre racismo?". Era. "Não é um absurdo?"

Por mais uns segundos, minha mente vagueou pelo sorrisão da criança nos ombros do rapaz, ambos pareciam estar bem felizes juntos. Alguma relação de carinho parecia haver entre os dois. E resisti um pouco antes de enxergar racismo naquela imagem.

Depois de ter protagonizado, dias atrás, um pseudodebate no qual não pude sequer finalizar meu ponto de vista acerca de um ponto exposto e, antes de terminar de dizer o que eu tinha para dizer, fui sumariamente tachado de racista (eu, racista?! LOGO EU, RACISTA?!?!), tentei enxergar com outros olhos a situação exposta na foto - cobrando de mim mesmo para que não a visse com olhos de quem sempre carregou o privilégio e a comodidade de ter a pele branca em uma sociedade segregacionista como a nossa - até comentei, de forma vaga, concordando que a imagem era forte ao trazer um casal branco vestidos de príncipe e princesa e uma criancinha negra vestida de macaco, "Gente, que coisa..."

Mas, o que realmente me marcou ao ver a foto foi o semblante de alegria dos três ali. Não enxerguei racismo na relação carinhosa de duas pessoas brancas e uma criança negra. Até me culpei por não enxergar aquela forma "tão óbvia" de discriminação, segregação. Em algum ponto obscuro da minha mente eu cheguei a pensar que as pessoas que me apontaram o dedo, julgando-me racista, tinham razão. Que vergonha!

No entanto, tentando enxergar o melhor de cada um, prática esta que sempre tomo por princípio, felizmente, comecei a me perguntar: "será que alguém contextualizou a imagem?", "será que a criança não foi idealizadora da brincadeira?", "será que o casal de pessoas brancas não é de tios, amigos, ou mais, pais adotivos de uma criança negra?", "será que a atuação não era mais que apenas fantasia de carnaval, fazendo parte de alguma peça teatral ou algo de tipo?". Não creio que uma criança a quem alguém discriminaria por ser negra seria carregada e segurada com tanto afeto como aquela na foto, pelo casal que a discriminaria. Não creio.

Uns dias depois do tal pseudodebate que, ao que me parece, custou-me uma amizade, fui criticado por outro amigo - este permanece, felizmente - alegando que eu sou excessivamente "relativizador" e que algumas situações não permitem qualquer olhar condescendente, devendo ser sumariamente categorizadas valoradas, limitadas por uma caixinha, organizadas na prateleira, exigindo um julgamento imediato, sem ampla defesa, sem sopesagem dos fatores.

Vestir uma criança negra como um personagem, que calha ser um macaquinho, seria uma destas situações que não permitem qualquer tipo de relativização? Ainda que esta criança fosse adotada por um casal inclusivo que decidiu dar a ela um futuro digno, retirando-a de um orfanato? Ainda que esta criança nunca tenha tido uma oportunidade na vida de se divertir fantasiada do que quer que seja em um bloco de carnaval? Ainda que esta criança negra não seja a única em um grupo que contenha outras crianças também fantasiadas de Iago, sultão ou outros personagens da história do Aladim?

Não sei se algumas destas conjecturas é real, mas não consegui deixar de pensar nelas antes de apontar o dedo para o casal por uma foto, dentro de um contexto que não conheço, e julgá-los sumariamente como racistas, como fez o tribunal das redes sociais. Apenas para lembrar, este tribunal foi responsável pelo assassinato de Fabiane de Jesus, no Guarujá, em 2014, espancada até a morte após ser confundida com uma sequestradora de crianças. Apenas porque não relativizaram a situação. Porque não pensaram que “poderia não ser”.

A imagem pode ser impregnada de racismo? Pode, sim. Não conheço o casal, não conheço a criança, não conheço a circunstância. Então, é claro que pode! Mas, pode também não ser. E de pensar isto jamais abrirei mão.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Silêncio! É de lei.

“Ah, mas posso fazer o barulho que eu quiser até às 22 horas!”

Não, seu sem educação! Você não pode! Não invoque o Santo Nome da Lei do Silêncio em vão. E que lei é esta, sobre a qual todo mundo fala, mas ninguém sabe exatamente o que diz? Então, em nível nacional não existe – pelo menos, ainda não – uma lei tratando especificamente sobre o assunto. 

Mas, cada Estado tem sua autonomia e um Poder Legislativo que lhe permite criar leis também. E este é o caso da famosa Lei do Silêncio.

No Brasil, quem se aproximou disto foi o Decreto-Lei nº 3.688/1941, também conhecido como Lei de Contravenções Penais, aquela lei que trata de “pequenos delitos”, graves o bastante para serem puníveis, mas brandos o suficiente para não serem considerados crimes. E está lá, em seu artigo 42, a previsão que coíbe a perturbação do sossego alheio:
“Art. 42. Perturbar alguém o trabalho ou o sossego alheios:
I – com gritaria ou algazarra; 
II – exercendo profissão incômoda ou ruidosa, em desacordo com as prescrições legais; 
III – abusando de instrumentos sonoros ou sinais acústicos;
IV – provocando ou não procurando impedir barulho produzido por animal de que tem a guarda:Pena – prisão simples, de quinze dias a três meses, ou multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis.”
Como se pode perceber, a lei não é muito precisa em definir o nível tolerável de barulho e o que pode ser considerado ou não abusivo. Tampouco estabelece um horário dentro do qual seja permitido perder a linha em detrimento do sossego dos seus vizinhos.

Mas, de onde então se tirou essa ideia de que somente depois das 22 h é que se deve limitar o barulho? Provavelmente, da sua estupidez! OK, grosserias à parte, isso deve ser proveniente de alguma ou outra lei diferente, dependendo do Estado em que você more.

Falarei apenas da Lei Estadual nº 126/1977, em vigor em todo o Estado do Rio de Janeiro. Se você mora em outro estado, vale a pena fazer uma pesquisa no Google sobre a legislação daí.

A Lei Estadual nº 126/1977 proíbe a produção de ruído capaz de prejudicar a saúde, a segurança e o sossego públicos. E para não incorrer na mesma imprecisão da Lei de Contravenções Penais, enumera, em seu artigo 2º, quais são os ruídos considerados prejudiciais:
“Art. 2º – Para os efeitos desta Lei, consideram-se prejudiciais à saúde, à segurança ou ao sossego público quaisquer ruídos que:
I – atinjam, no ambiente exterior ao recinto em que têm origem, nível sonoro superior a 85 (oitenta e cinco) decibéis, medidos na curva C do “Medidor de Intensidade de Som”, de acordo com o método MB-268, prescrito pela Associação Brasileira de Normas Técnicas; 
II – alcancem, no interior do recinto em que têm origem, níveis de sons superiores aos considerados normais pela Associação Brasileira de Normas Técnicas;
E aqui, acho importantíssimo atentar para o inciso I, que estabelece um critério bastante objetivo para se determinar se o ruído deve ou não ser proibido: o limite de 85 decibéis em ambiente externo àquele de onde o som se origina. Este sempre será meu principal critério para eu saber se poderei chamar a polícia ou não! Com um decibelímetro (que hoje em dia se consegue facilmente através de aplicativos em smartphones) em mãos, farei a medida dentro da minha casa para saber se o som do meu vizinho, fora de sua casa (local onde se origina), se encontra acima do limite. Independentemente do horário.

Vale ainda mencionar o rol previsto no artigo 3º, que estabelece modalidade específicas de ruídos, que estarão sempre proibidos:
"Art. 3º- São expressamente proibidos os ruídos:
I - produzidos por veículos com o equipamento de descarga aberto ou silencioso adulterado ou defeituoso;
II - Produzidos por aparelhos ou instrumentos de qualquer natureza utilizados em pregões, anúncios ou propaganda na via pública ou para ela dirigidos, desde que ultrapasse o nível sonoro superior a 85 (oitenta e cinco) decibéis. 
III - produzidos por buzinas, ou por pregões, anúncios ou propaganda, à viva voz, na via pública, em local considerado pela autoridade competente como “zona de silêncio”; 
IV - produzidos em edifícios de apartamentos, vila e conjuntos residenciais ou comerciais, em geral por animais, instrumentos musicais ou aparelhos receptores de rádio ou televisão ou reprodutores de sons, tais como vitrolas, gravadores e similares, ou ainda de viva voz, de modo a incomodar a vizinhança, provocando o desassossego, a intranquilidade ou desconforto;
V - provenientes de instalações mecânicas, bandas ou conjuntos musicais e de aparelhos ou instrumentos produtores ou amplificadores de som ou ruído, tais como radiolas, vitrolas, trompas, fanfarras, apitos, tímpanos, campainhas, matracas, sereias, alto-falantes, quando produzidos na via pública ou quando nela sejam ouvidos de forma incômoda;
VI - provocados por bombas, morteiros, foguetes, rojões, fogos de estampido e similares; 
VII - provocados por ensaio ou exibição de escolas-de-samba ou quaisquer outras entidades similares, no período de 0 hora às 7 horas, salvo aos domingos, nos dias feriados e nos 30 (trinta) dias que antecedem o tríduo carnavalesco, quando o horário será livre.
VIII - produzidos em Casas Noturnas, acima de 55 decibéis, a partir das 22 horas.”
Vejamos que este rol se encontra no título das proibições, que, exceto a previsões dos incisos VII e VII, não especifica horários de permissão, do que se pode deduzir que os ruídos acima especificados são simplesmente proibidos, justamente por serem considerados prejudiciais à saúde, ao sossego e à segurança.

Então, ao contrário do que se afirma comumente, de que qualquer ruído será permitido, desde que seja praticado antes das 22 h, o que se tem é a proibição expressa de barulhos acima de 85 dB em ambiente externo ou barulhos acima do considerado normal pela ABNT, dentro do ambiente em que se origina. E isto, a qualquer horário!

Vale aqui mencionar que a “lenda urbana” das 22 h tem sua razão de existir, com base no inciso VIII do artigo 3º e com base em alguns incisos do artigo 4º, que trata justamente das permissões. No entanto, ao contrário do que diz o senso comum, não são quaisquer sons que se permitem antes das 22 h. Na verdade, a lista tem uma natureza mais restritiva que concessiva, uma vez que, contrario sensu, deixa subentendido que os ruídos ali presentes são permitidos apenas no intervalo de tempo entre 7h e 22h. Vejamos:
“Art. 4º - São permitidos - observado o disposto no art. 2º desta Lei - os ruídos que provenham:
I - de sinos de igrejas ou templos e, bem assim, de instrumentos litúrgicos utilizados no exercício de culto ou cerimônia religiosa, celebrados no recinto das respectivas sedes das associações religiosas, no período das 7 às 22 horas, exceto aos sábados e na véspera dos dias feriados e de datas religiosas de expressão popular, quando então será livre o horário; 
II - de bandas-de-música nas praças e nos jardins públicos o em desfiles oficiais ou religiosos;
III - de sirenas ou aparelhos semelhantes usados para assinalar o início e o fim da jornada de trabalho, desde que funcionem apenas nas zonas apropriadas, como tais reconhecidas pela autoridade competente e pelo tempo estritamente necessário;
IV - de sirenas ou aparelhos semelhantes, quando usados por batedores oficiais ou em ambulâncias ou veículos de serviço urgente, ou quando empregados para alarme e advertência, limitado o uso ao mínimo necessário;
V - de alto-falantes em praças públicas ou em outros locais permitidos pelas autoridades, durante o tríduo carnavalesco e nos 15 (quinze) dias que o antecedem, desde que destinados exclusivamente a divulgar músicas carnavalescas, sem propaganda comercial;
VI - de explosivos empregados em pedreiras, rochas e demolições, no período das 7 às 12 horas;
VII - de máquinas e equipamentos utilizados em construções, demolições e obras em geral, no período compreendido entre 7 e 22 horas;
Parágrafo único – As serras dos tipos adotadas em construção de edificações, situadas em regiões urbanas, no âmbito do Estado do Rio de Janeiro, só poderão operar em recintos devidamente protegidos contra ruídos.
VIII - de máquinas e equipamentos necessários à preparação ou conservação de logradouros públicos, no período de 7 às 22 horas;
IX - de alto-falantes utilizados para propaganda eleitoral durante a época própria, determinada pela Justiça Eleitoral, e no período compreendido entre 7 e 22 horas.
Parágrafo único - A limitação a que se referem os itens VI, VII e VIII deste artigo não se aplica quando a obra for executada em zona não residencial ou em logradouro público, nos quais o movimento intenso de veículos e ou pedestres, durante o dia, recomende a sua realização à noite.”
Sendo assim, se você se encontra na condição vizinho mal-educado e barulhento, não se garanta no fato de estar perturbando sua vizinhança antes das 22 h. Você pode ser enquadrado nas penalidades previstas na lei, inclusive na de Contravenções Penais. E se você se encontra na condição de vítima desse tipo de gente – o que é o meu caso – não hesite antes de chamar a polícia. Se alguém se recusar a atender você, sob o falso fundamento de que ainda não são 22 h, você já tem informação suficiente para rebater.

Nunca é demais lembrar que o direito de um termina quando o do outro começa.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Crônicas de um AdvoGADO

QUANDO O DIA COMEÇA COM VOCÊ JÁ QUERENDO MANDAR SERVENTUÁRIO IMBECIL VAZAR PARA A MERETRIZ QUE DEU À LUZ.

Estava eu, lindo, loiro e serelepe – “melhor atriz do Brasil, e amada pelo povo brasileiro” (VIEIRA, Suzana) – seguindo mais um dia feliz de trabalho, em uma empresa linda e bela, em um agradabilíssimo dia de verão carioca, quando me deparei com a informação de que teria HOJE, Dia de Vossa Mãe Iemanjá, uma audiência em uma das Varas Cíveis no Reino de Tão Tão Distante, que a ética me impede de revelar qual é.

Para confirmar a informação, como sempre faço, entrei no site do TJ para me certificar de que a audiência aconteceria, e vi – “meninos, eu vi” (PIRAMA, Juca) – que a data seria no próximo 23 (“são oito dias para o fim do mês, faz tanto tempo que não lhe vejo...” ABELHA, Kid). Eram duas informações diferentes que precisavam ser confirmadas.

Liguei para o Cartório em Tão Tão Distante, quando uma ternurinha, que não era a garota papo firme que o Roberto falou, me disse que não haveria nenhuma audiência marcada, nem hoje, nem dia 23, nem nunca mais, muahahahahaha! Riu maleficamente e desligou o telefone, não sem antes fazer uma ameaça: “certifique-se com o Gabinete!”

Lá fui eu ligar para o Gabinete, com três informações diferentes, quando o palhaço, digo, serventuário, me atendeu. Depois de explicar duas ou três vezes a situação, insistindo que eu tinha três informações discrepantes, as três prestadas pelo mesmo cartório, e que eu precisaria esclarecer qual delas seria real, seguiu-se o seguinte diálogo:

- Dr. (já adorei, porque reconheceram minha pompa e me chamaram pelo título que mais gosto #SQN), não posso dar informações por telefone. Para isto, o Dr. precisa vir aqui.

- Querido, eu quero a informação por telefone, justamente para não ter que ir aí. Até porque o erro na informação é de vocês. Eu ainda tenho que ir aí resolver, pessoalmente, uma situação por um erro que a Vara cometeu?! Se fosse para ir aí, eu já iria por ter uma audiência designada para hoje.

- Ah, sua audiência é hoje? – Pausa dramática para minha cara de paisagem, quando expliquei mais uma vez a situação.

- Então, acho que você ainda não me entendeu. É justamente isso que quero esclarecer: se minha audiência é para hoje ou não. Afinal, se eu tenho três informações divergentes prestadas por vocês, gostaria de saber qual delas é procedente para não ter que dar viagem perdida até São João de Meriti, digo, até Tão Tão Distante. Então, você pode confirmar pelo menos isto?

- Ah, então sua audiência é para hoje, né? Espera um pouco. Vou conferir a informação e já volto. – porque para o Serventuário esperto e ágil, somente seria justificável dar a informação por telefone quando a audiência estivesse agendada para o mesmo dia.

Passaram-se alguns instantes quando me volta o néscio, com um tom de voz muito, muito, muito pouco amistoso:

- O DOUTOR NÃO TINHA DITO QUE A AUDIÊNCIA ERA HOJE?!

E foi neste momento que minha paciência, que se encontrava em seu volume morto, acabou:

- Não, quem disse que a audiência seria hoje foram vocês mesmos, aí da Vara Civ...

- DOUTOR, POR FAVOR, NÉ? SUA AUDIÊNCIA É DIA 23! O DR. ME FEZ PRESTAR INFORMAÇÃO TELEFÔNICA À TOA. POSSO SER PUNIDO POR ISSO! QUANDO FOR ASSIM, POR FAVOR, VERIFIQUE NO SISTEMA DO TRIBUNAL A DATA CORRETA.

- Ah, então é dia 23 mesmo, né? – Respirei fundo, agradeci a informação, desliguei o telefone, segurando na minha garganta o sonoro “vá tomar no olho do seu cu!” que minha boca jamais pronunciou.

E o salário, ó.