sexta-feira, 19 de maio de 2023

Quem não vai, quem não vem

"Poderia alguém aqui pagar-me um passe?"
— Bradara a maltrapilha na catraca —
"Posto que padece minha irmã
De mal que assola um corpo desnutrido.
Carecemos de chegar ao nosocômio,
Parcos são nossos recursos, todavia."

— Prossegue em tristonha ladainha —
"Não nos dá passagem livre o condutor,
Não tendes vós destas mendigas piedade?"


Se algum dia tu escutares tais lamúrias,
Não hesites, bota a mão na algibeira.
Roda a roleta e assegura a tais pedintes
Que possam ir, como voltar possam também.

"Mas, não há neste trajeto um sanatório!"
— Dizes tu apercebendo-te do engodo.

Não te exaltes, camarada, olha em volta.
Quis o destino que estas duas pobres almas
Encarnassem cá também pobres de corpo.
Negara-lhes a sociedade vida digna.
Pensa agora, se até Deus lhes vira as costas,
Que podem ambas esperar do bicho homem?
Não é justo que lhes peça honestidade
Quando ambas só mazelas receberam
Em sua completa existência miserável.
Ademais, ir e vir são dois direitos
Que a ninguém deveria ser negado.

Gustavo Carneiro de Oliveira.
Rio, 20 de maio de 2023.

sexta-feira, 17 de março de 2023

O cão e a dor

O cão e a dor

Quando te morde o velho cão
Que de maus tratos sobrevive
Quem te pode julgar se o enxotas
Quando a dor não mais suportas
Da ferida que na tua mão se abre?

Não tem o cão um juízo
Do sangue que de ti faz jorrar
Nas carnes que em ti dilacera.
Não é raiva o mal do cão, tu bem sabes,
Mas, sua defesa do medo da vida.

E quem te pode então julgar,
Se o cão te ti ganha um afago,
Mesmo que em tua mão ainda lateje
O inchaço da tua pele rasgada?

Mas, se tens tu medo também
Do cachorro aproximar-te,
Quem te pode julgar se dele foges,
Ainda que tenhas ciência
De que ao cão o amor faltou?

Segues tu num dilema cruel:
Se carregas para ti o cão,
Dá-lhe abrigo e acolhida,
Ou se dele tomas distância,
Evitando assim a mordida,
Que doerá novamente amanhã.

Gustavo Carneiro de Oliveira

Rio, 17/03/2023.

domingo, 12 de março de 2023

Che Guevara homofóbico?

"Ain, mas Che Guevara era homofóbico e matava gays", diz a pessoa para defender o capitalismo, que só no Brasil assassinou nos últimos 15 anos uma pessoa LGBT a cada 29 horas.

Em tempo, Che Guevara nunca matou uma pessoa por ser gay. Isso é invencionice da própria ideologia do capital para disseminação de propaganda anticomunista. Considerando que a medicina — ciência produzida na sociedade capitalista à época — dizia que a homossexualidade era uma doença, Che, como médico recomendava os protocolos que a própria medicina — capitalista, vou repetir — orientava: internação compulsória e terapia.

Considerando que a medicina — capitalista — tratou a homossexualidade como doença até 1990, chamar de homofóbico um médico que adotava os procedimentos recomendados pela ciência da sua época é um anacronismo que desconsidera a homofobia intrínseca ao próprio sistema de pensamento de uma época e uma sociedade.

E cá pra nós, defender o capitalismo é defender um sistema patriarcal que impõe a heterossexualidade como norma, estabelecendo como padrão a família composta por um homem e uma mulher, explorando o trabalho reprodutivo feminino enquanto discrimina homossexuais produzindo toda a ideologia subjacente ao número de assassinatos de pessoas LGBT.

Não há de quê.

quarta-feira, 8 de março de 2023

O que estamos fazendo com nossos idosos?

Se em vez de mover esforços para disfarçar a idade que avança as pessoas movessem esforços para que a sociedade tratasse melhor nossos idosos a vida seria tão menos difícil. Ficar velho é natural. Ser descartado por ter reduzida a sua capacidade de produção é produto do capitalismo.

E com isso, vemos idosos sendo chamados de "despesas" ou "rombos previdenciários", abandonados à solidão por seus filhos e netos que, ainda que não quisessem, são obrigados por terem que trabalhar.

Quando você se perguntar porque a sua avó virou reacinha, pense que pode ter sido porque num grupo de Whatsapp ela se sentiu acolhida como não se sente numa sociedade que a trata como um fardo.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

Pequena Crônica Ficcional que Poderia Ter Sido Real

PEQUENA CRÔNICA FICCIONAL QUE PODERIA TER SIDO REAL

— Como advogado, já atuei para um banco, em ações de cobrança, penhora, arresto, sequestro de bens para pagamento de dívidas. Para um comunista, não é nada louvável saber que minha fonte de renda era cobrar dinheiro de gente pobre endividada, ainda mais quando os motivos desse endividamento é justamente a manutenção de um sistema que privilegia os bancos, como aquele que um dia fui obrigado a defender. Sim, se você se forma em direito, em algum momento, poderá ter que defender bandido. A gente precisa pagar conta, colocar comida no prato e garantir um cantinho para dormir. Não tomo para mim a responsabilidade por viver num sistema que me obriga a ser um babaca. Prestei serviço a um grande conglomerado econômico, atuando diretamente a serviço dos burgueses, proprietários daquela instituição financeira para quem eu vendia minha força de trabalho em troca de um pagamento não correspondente à quantidade de trabalho que eu exercia. Eu era um proletário explorado, fudido, como nunca deixei de ser. Minha consciência, no entanto, me obrigava a tomar certas medidas que pudessem, de alguma forma, atrapalhar o bom funcionamento desse sistema de exploração. Obviamente, dentro dos limites possíveis na ínfima posição que eu ocupava na minha área de atuação. Algumas vezes, informei propositalmente o endereço errado da parte ré nas ações para que, quando fosse procurada por oficiais de justiça não fosse localizada e o processo ficasse parado, atrasado. Era pouco, muito pouco, quase nada. Mas, era o que dava para fazer. Não faria diferença para o sistema, mas faria diferença para aquela família atolada em dívidas com o banco.

— Mas, isso não é antiético, Doutor? O Estatuto da Advocacia diz que o advogado deve conjugar todos os esforços para atuar de forma mais eficiente possível para atender aos interesses do sei cliente!

— É por isso que estou falando para você e não para meu cliente ou para a OAB. Mas, cá para nós, o que você me diz sobre ter de usar uma ferramenta que deveria ser uma garantia de paz social, como é o Direito, para penhorar a casa de uma família? Não é antiético deixar pessoas sem moradia para pagar uma instituição que já é bilionária e que lucra a partir do endividamento dessas pessoas? Não é antiético cobrar, mesmo sabendo que essas pessoas foram obrigadas a utilizarem um empréstimo bancário exatamente porque são exploradas por causa de uma estrutura que transforma tudo em mercadoria, inclusive suas vidas, impedindo-as de terem uma vida plena? E sem "doutor", por favor.

— Mas, está na lei e a lei nem sempre é justa.

— E o que você quer para o mundo? Que se cumpram leis que não atendem às reais necessidades das pessoas ou que se faça justiça? Quando a lei é injusta a subversão passa a ser um dever moral.

— Mas, não sou eu quem decide o que é ou não é justo.

— E aí, por causa disso, você prefere deixar que uma burguesia, cujos interesses são diametralmente opostos aos seus, decida por você? O Estado é um campo de disputa no qual se trava uma guerra: a luta de classes. Hoje quem detém o Estado é a burguesia, a mesma do banco, a mesma que cria a lei que favorece o banco, a mesma que toma a casa de quem deve ao banco... E quem permite isso? O Direito, que é emanado deste mesmo Estado a serviço da burguesia e que atua através da lei criada por representantes políticos da burguesia, aplica por juristas a serviço da burguesia. Esse Direito deveria deixar de existir...

— O Direito é uma Ciência!

— Balela liberal! O Direito é um instrumento de controle nas mãos da burguesia. É por isso que você trabalha feito um cachorro e nunca tem tempo de viver a sua vida. É o Direito burguês quem diz quanto tempo você deve passar trabalhando e quanto deve receber por isso. Para nós trabalhadores não serve para nada. Por isso, também é um campo a ser disputado. Quando a classe trabalhadora vencer a luta de classes e tomarmos para nós o Estado, aí faremos o nosso Direito.

terça-feira, 31 de janeiro de 2023

Nojo de isentões. Ódio aos indiferentes.

De um lado um sistema no qual 800 milhões de pessoas morrem de fome enquanto alguns concentram as riquezas, gerando desigualdade social, violência e criminalidade. Do outro lado um sistema que pretende socializar os meios de produção para que todos tenham direito à vida digna, moradia, alimentação,saúde, educação e vestuário. Mas, a pessoa moderada jura que todos os extremos são iguais e prefere ficar no meio. O que é o meio? É onde "apenas" 400 milhões das pessoas morram de fome?

De um lado o racismo, que coloca pessoas negras em condições precárias de existência, submetendo-as à violência policial, discriminação salarial, subempregos ou desemprego. Do outro lado, uma luta antirracista que pretende acabar com essa realidade e colocar pessoas de todas as etnias e raças em igualdade de condições de vida. Mas, a pessoa moderada jura que todos os extremos são iguais e prefere ficar no meio. O que é o meio? É onde não se é racista nem antirracista? É ser "apenas" meio racista?

De um lado a LGBTfobia que padroniza identidades de gênero, orientações sexuais e relações afetivas, impedindo que as pessoas vivam as próprias vidas em paz, promovendo assassinatos de pessoas LGBTQIA+. Do outro lado, uma sociedade em que cada pessoa explore suas potencialidades, experienciando seus afetos de acordo com seus desejos, não se obrigando a cumprir um padrão cis-heteronormativo nas suas relações, em busca da própria felicidade. Mas, a pessoa moderada jura que todos os extremos são iguais e prefere ficar no meio. O que é o meio? É não matar gay, mas tudo bem bater?

De um lado o patriarcado, que põe a mulher em papel de subalternidade frente aos homens, fomentando violências das mais diversas, como estupro e feminicídio, além de promover desigualdade salarial e de oportunidades em função do gênero, objetificação do corpo feminino. Do outro lado, um sistema que põe homens e mulheres em pé de igualdade, permitindo que todos, independentemente do gênero, tenham os mesmos direitos e deveres, seja no mercado de trabalho, seja no cuidado familiar. Mas, a pessoa moderada jura que todos os extremos são iguais e prefere ficar no meio. O que é o meio? É ser "apenas" meio machista e se indignar quando mulheres são assassinadas, mas estar em paz quando apanham dos maridos?

Tenho nojo de isentões, e parafraseando Gramsci, tenho ódio aos indiferentes.

sábado, 28 de janeiro de 2023

Violento é o Capitalismo

Hoje participei de uma reunião da UJC Rio de Janeiro , a União da Juventude Comunista do Rio de Janeiro. Não tinha pretensão de abrir a boca num espaço formado por jovens para jovens. Estava quietinho no meu canto, apenas ouvindo o que aquela garotada inspiradora tinha a dizer. Até que um dos presentes falou sobre violência revolucionária. Era sua primeira vez numa reunião voltada a debater os desafios e as propostas necessárias ao avanço do socialismo numa sociedade polarizada entre uma extrema direita e uma centro-esquerda que constantemente faz um afago no neoliberalismo.

Ali, uma dúvida legítima foi levantada e eu não consegui ficar quieto. É muito comum ver pessoas rejeitarem a saída socialista por entenderem-na como violenta e, consequentemente, como uma medida moralmente reprovável. Quem me acompanha já se acostumou a ver que o discurso moralizador sobre a violência é um assunto que me mobiliza com uma certa força. Primeiro porque debater política é debater estrutura social e não moralidade. E depois porque, ainda que estivéssemos sopesando condutas individuais pelo viés da moralidade, a violência revolucionária não apenas não é imoral, como também é legítima.

Pedi licença e expus em três minutos — o tempo de marcação das falas de cada camarada que pedia a palavra — um resumo do que já ando falando há alguns anos: a violência não é um horizonte, mas muitas vezes é o único instrumento do qual dispomos.

Numa fala um tanto quanto atabalhoada de uma pessoa tímida que não tem muito traquejo em falar para coletividade, chamei atenção para o poder da ideologia que nos faz normalizar uma materialidade de opressão que já é extremamente violenta, mas que naturalizamos a tal ponto de a chamarmos de ordem social. E como essa ideologia impregnada na formação da nossa subjetividade nos faz considerar como violentas justamente as medidas que precisamos adotar para fazer cessar essa realidade violenta cotidiana que permite que 800 milhões de pessoas passem fome num sistema que já produz riqueza para alimentar seis vezes a população mundial, que hoje é de oito bilhões.

Enquanto a moralidade dominante insistir em demonizar meu discurso, tachando-o violento e, portanto, contrário ao que é "o certo", não vou me cansar de repetir as ideias que Paulo Freire traz na Pedagogia do Oprimido: a opressão é a relação inaugurada pela figura do opressor e, portanto, só existe porque existe o opressor. A partir do momento que quem lhe deu causa não lhe dá termo, somos nós que devemos fazê-lo, por qualquer método que se fizer necessário.