sábado, 22 de outubro de 2011

Maria Bethânia e as Palavras

Já lá se vão pouco mais dois anos, quando, em agosto de 2009, na Casa do Saber, na Lagoa, Dona Maria Bethânia apresentou o então chamado “Palavras, Palavras”, encontro literário voltado à divulgação da poesia luso-brasileira, como forma de incentivo às leituras em escolas públicas e privadas.

Diante do estrondoso êxito do projeto, a cantora decidiu levá-lo em turnê país afora, já sob o nome de “Maria Bethânia e as Palavras” ao longo de 2010, causando verdadeiro furor por onde passou, como as cidades de Porto Alegre, Recife, Curitiba e o próprio Rio de Janeiro, durante sua temporada no Teatro Fashion Mall, em São Conrado.

Já tendo assistido duas vezes ao espetáculo, confesso que, apesar de admirador da literatura brasileira e portuguesa, este não estava dentre os meus prediletos, e não me animei quando soube que haveria duas apresentações no Teatro Sesc Ginástico para o relançamento do livro “Maria Bethânia Guerreira Guerrilha”, do escritor Reynaldo Jardim. Assim, quando surgiu o convite, pensei, munido de toda a minha má vontade: “Na falta de um programa mais interessante, eu vou!”. Não queria ouvir Dona Maria recitando os mesmos poemas já citados e recitados, sedimentados em mais de quarenta anos de carreira.

Mas, eis que o “programa mais interessante” não apareceu e lá fui eu ao Teatro Sesc Ginástico, esperando encontrar pouca novidade e atratividade. Felizmente, estava enganado e o que observei no palco não foi uma simples leitura de poesia, mas um verdadeiro show! Maria Bethânia estava com um vigor e uma energia contagiantes. Sua voz estava no auge da beleza. E o repertório, musicalmente ampliado, aumentando para quase duas horas a duração inicial de setenta minutos daquela fase embrionária iniciada na Casa do Saber, comovente.

Após a exibição de um vídeo contendo um depoimento do próprio Reynaldo Jardim, deu-se início à abertura do show – insisto em me utilizar deste conceito – consistente em uma leitura, pelo ator e diretor do espetáculo, Elias Andreato, de excertos do livro que estava sendo relançado na ocasião. A entrada de Maria Bethânia no palco, com a canção “As Ayabás”, foi devidamente ovacionada, seguindo-se a isto uma constante intercalação de textos e músicas, os mais belos!

Claro que nada é perfeito e, como sempre, revirei-me, incomodado diante da heresia cometida contra o Mestre Caeiro, com a insistente transformação do “Poema do Menino Jesus” – notória crítica à Igreja Católica – em uma oração cristã, sendo a proposta reforçada e tornada inequívoca com a imediata execução da ladainha popular adaptada por Tavinho Moura, “Cálix Bento”.

Por outro lado, houve seqüências de beleza absoluta, como a iniciada com a música “Genipapo Absoluto”, continuada com os textos “Distribuição de Poesias”, “Poetas Populares”, intercalados com “O Trenzinho do Caipira”, “Trem de Ferro” e encerrado com a belíssima “Francisco, Francisco”, dentre tantos outros momentos memoráveis.

Outro registro que não pode deixar de ser considerado é a lamentável má educação de alguns integrantes da plateia: O show seguiu impecável e eu já me encontrava em completa imersão catártica quando, para meu horror, umas mulheres horrendas se levantaram de suas poltronas, postando-se em frente ao palco, atirando como se fossem pedras, pétalas de rosas em uma Maria Bethânia que se desconcentrou durante a interpretação de “Menino de Braçanã”. Juro que se essas mulheres tivessem se plantado à minha frente, eu teria perdido minha compostura, dando-lhes chutes nas pernas e pedindo enfaticamente que saíssem dali para que eu pudesse ver o final da apresentação em paz.

Passados esses disparates, Dona Maria contemplou o público com um bis repleto de energia da música que a lançou ao mundo, “Carcará”, encerrando com chave de ouro o evento, que se revelou a mim uma grata surpresa, mudando inclusive meus conceitos acerca do espetáculo “Maria Bethânia e as Palavras”, em muito evoluído desde aquele distante agosto de 2009.

A poesia agradece. A música agradece. E nós, que estivemos presentes nesta manifestação artística que logrou de toda excelência e majestade, saímos regozijados ante um desempenho notável, elegante e na medida certa, da cantora, intérprete e leitora, Maria Bethânia. Uma noite para se tornar inesquecível.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Hoje a noite tem cara de música velha

Hoje a noite tem cara de música velha. Daquelas que, quando éramos crianças, já eram velhas. E tarde da noite, sentávamos à beira do aparelho de som, sintonizado em uma rádio qualquer, e esperávamos ansiosos para gravarmos em um toca-fitas. Porque essas músicas velhas só tocam em rádio tarde da noite.

Nunca entendi porque música velha só toca tarde da noite... Deve ser porque, com aquele gosto de coisa antiga, a noite se torna menos sombria. É quando nos lembramos de que um dia fomos bem pequenos, e nossa maior preocupação era completar a coleção de figurinhas de chiclete antes do nosso melhor amigo. É quando pensamos na nossa mãe nos dando boa noite antes de fechar a porta do nosso quarto. É quando nos lembramos do nosso primeiro dia na escola...

Hoje a noite está quieta. Fria. Úmida. Um tilintar incessante de pingos grossos de chuva que caem de alguma telha quebrada sobre a escada de ferro vem do fundo do quintal e isso é bom. Aumenta a sensação de cara de música velha.

A noite range, como rangem as gravações antigas de um disco de vinil sujo e isso tem cara de música antiga. E é por ter esta cara de coisa velha, quase esquecida, empoeirada, mas que fica ali, presa nas nossas lembranças mais remotas, vindo vez ou outra à tona, que esta noite chuvosa, fria e áspera acaba se tornando terna.

Hoje a noite tem cara de música antiga. E o barulho da chuva que engrossa aumenta a saudade dos dias em que, quando lá longe, num inverno qualquer de uma infância que ficou para trás, sentávamos à mesa da cozinha, ansiosos pela caneca de chocolate quente para acompanhar um bom pão com manteiga.

Naquela época já a chuva causava algum tipo de emoção desconhecida. O vento que açoitava as janelas fazia barulhos assustadores. Por algum tipo de ironia, o medo passava logo quando quedas na rede elétrica banhavam a casa em escuridão porque logo arrumávamos um jeito de nos divertirmos, formando figuras nas paredes com a projeção de sombras criadas com a luz das velas acesas.

Hoje a noite tem cara de música velha. E é por tudo isso que estar sozinho nesta sala a esta hora não me faz mal. Escuto notas que vem de longe, que soaram em um outro tempo, tocaram num outro espaço e ecoaram em outros ouvidos que não os meus de agora... Naquele momento longínquo, faziam-me pensar num futuro incerto, que não se parecia com o dia de hoje.

Agora que aquele futuro é o presente que se descortina, as notas de outrora reverberam nestas paredes, conduzidas, sabe-se lá de onde. Mesclam-se ao tamborilar da chuva, que insiste em cair cada vez mais intensa, e trazem consigo o gosto do abraço quente, que sinto enquanto meus ouvidos captam a melodia da música antiga, cuja semelhança esta noite insiste em carregar.