segunda-feira, 6 de junho de 2022

A História no Direito é Uma História Para Boi Dormir

De acordo com o que aprendemos na universidade, o Direito é a ciência do dever ser e não do ser. Isso significa, dizem, que o aplicador da norma deve pautar sua decisão naquilo que deve se tornar realidade, e não na realidade em si. No entanto, de qual ponto de partida saímos, se o dever ser desconsidera a realidade fática (ou aquilo que já é) para transformá-la? O grande paradoxo do direito aplicado pelo poder estatal é assumir que a ciência do dever ser tem por premissa a manutenção e a perpetuação do que já é.

Quando criança, odiava História e perguntava qual a importância de estudar fatos temporalmente tão longínquos que, aparentemente não tinham qualquer importância para o contexto no qual eu me encontrava. Ouvia sempre a resposta de que ao estudar o passado, a História explica o presente, o que também não ficava muito claro para uma pessoa de dez anos de existência no mundo. Já adolescente, e alimentando o desejo de ingressar no curso de Direito, passei a ouvir que teria muita dificuldade para ser jurista sem gostar de História. Esta é uma das maiores lendas que permeiam as faculdades de Direito, pelo menos as brasileiras.

Junto com o mito que romantiza a profissão do jurista, quando nos dizem que se somos profissionais do Direito, é porque somos inteligentes, o do aplicador da norma que entende de História é outra mentira. Raros foram os seres pensantes que dentre advogados, juízes, promotores, defensores públicos, delegados e outros profissionais jurídicos que conheci nos últimos 22 anos, desde que ingressei e saí da universidade e passei a exercer a advocacia. Ao me preparar para o vestibular, já no final da adolescência, passei a gostar de História e imaginei que, então, eu poderia ter uma carreira promissora no Direito, já que estaria cumprindo um suposto requisito essencial para seguir a carreira.

Do cenário jurídico brasileiro, a História passa longe. Profissionais formados em técnica judiciária, que é ensinada na faculdade sob o nome de Curso de Direito, decoram leis e atuam de forma limitada e superficial, numa espécie de silogismo que determina que se a situação X acarreta a aplicação da norma Y, em ocorrendo tal situação X, aplicar-se-á a norma Y. Fim. Não precisa ser inteligente para passar em concurso. Basta decorar leis sem qualquer tipo de reflexão acerca dos seus enunciados. Eu arriscaria dizer que o Direito é uma área de atuação dominada por pessoas medíocres (basta analisar detidamente a atuação do nosso Judiciário para chegarmos a essa conclusão).

Hoje, aos 42 anos de existência num mundo que preexistia a mim, compreendo perfeitamente a importância do estudo da História. Tenho hoje a consciência de que os fatos se concatenam entre si em uma relação de causa e consequência, e que o mundo tal como conheço hoje resulta de uma série de interações de fatos passados. Daí a necessidade de abolir abstrações, idealismos e generalizações típicas do Direito, para uma análise da materialidade, a realidade concreta que nos circunda. E aqui é exatamente onde vejo como o jurista, para exercer esse direito porco que vemos no nosso dia a dia, não precisa de História para nada.

Da mesma forma que advogados que resumem sua atuação a uma eterna fórmula "se P, então Q" não são necessariamente pessoas inteligentes. Quase nunca são. E é exatamente essa gente que alcança sucesso profissional, conceituado aqui como ganhar dinheiro (ainda que a um altíssimo custo de adoecimento mental e físico). Se juristas precisassem de História ou de inteligência, seríamos uma categoria comprometida com transformação social, justamente por estarmos imbuídos de uma consciência de que a sociedade se molda pelos fatos históricos que se concatenam em um sistema integrado. Se você tem compromisso com a transformação social, talvez isso até signifique que você seja uma pessoa pensante.

E aí, vou te dizer, prepare-se para se tornar uma pessoa frustrada quando se der conta de que sua inteligência de pouco ou nada servirá, senão para esbarrar na má vontade, no descompromisso e na mediocridade de quem toma por pressuposto que o mundo é imutável e que nada há que se fazer quanto a isso. E quem faz isso galga as posições mais poderosas em uma organização social que valoriza a mesmice e impõe a estupidez cega como padrão existencial. Essa é a realidade do Direito que sai das universidades e adentra os tribunais. O juiz de hoje é o que um dia eu fui aos dez anos de idade quando dizia que História não servia para coisa alguma. Porque tanto esse aplicador da norma quanto um moleque sem estudos e sem vivência não conseguem ligar o passado como causas do presente.

sábado, 30 de abril de 2022

Saia justa alimenta o capital?

Teve gente falando em "gafe". Jornais reportaram a notícia sempre recheadas de termos adversativos, como "apesar", "embora", referindo-se ao fato como algo negativo, uma "saia justa", um "constrangimento", um "climão".

No Baile Vogue 2022, realizado nesta sexta, dia 29, no Copacabana Palace, duas participantes, a ex-BBB Natália Deodato e a cantora Pepita foram vestindo roupa idêntica, um vestido de uma grife mineira. Bem humoradas, as duas contornaram a situação com piadas. Mas, diante do fato de duas pessoas usarem um vestido igual ter virado notícia de um acontecimento quase trágico, ponho-me a pensar sobre valores. E nem me refiro ao preço da peça, que considero escandaloso, de R$ 1.800,00. Falo sobre a importância concedida à ideia de exclusividade em nossa sociedade, tornando-se um valor a ser almejado.

Qual o constrangimento de ver alguém com traje igual ao seu num evento, senão o de que sua roupa deveria ser somente sua? Qual é valor afrontado quando alguém copia seu look, senão a sua noção de que aquele visual deveria ser exclusivo seu?

Vaidade anda de mãos dadas com a exclusividade. Vivemos a noção de exclusividade em uma infinidade de lugares. Almejamos não sermos apenas amizades, mas queremos ser "o melhor amigo". Queremos ser "a filha favorita", "o parceiro sexual e afetivo". Se até nossos amores precisam ser exclusivos, por que nossas roupas não seriam?

Essa valoração da ideia de exclusividade me soa corolário das subjetividades moldadas pelo capitalismo, especialmente pelo neoliberalismo. O capital confere poder a quem tem uma posição de superioridade sobre os demais, e por isso eu poderia supor que vislumbramos ser especiais porque somos condicionados a entender que a especialidade, a exclusividade, a posição de destaque, nos confere poder.

A mim não faz sentido a noção de especialidade ou exclusividade como um valor em si mesmo. Adepto do pensamento de que todos deveríamos ser tratados com Igualdade de direitos e deveres, em uma sociedade que teria abolido o poder (e talvez por isso mesmo uma utopia), eu não buscaria, no mundo que almejo, ser objeto de adoração de ninguém. Ser posto num lugar de exclusividade e especialidade não me agradaria.

A vaidade que alimenta a famigerada indústria da moda cria a ideia de que é uma gafe, uma saia justa, uma vergonha, um climão, duas pessoas com um mesmo vestido se encontrarem num evento. Essa vaidade se contrapõe ao suposto desejo que essas mesmas pessoas manifestam, e qua quase sempre vem sob a forma de um dado: "somos todos iguais". Somos mesmo? Ou apenas deveríamos ser, mas não estamos nem perto disso?

Não tenho pretensão de afirmar nada, mas apenas de lançar o questionamento. Não é hora de problematizarmos o desejo pela exclusividade? Talvez seja hora de questionarmos se a busca pela exclusividade não reflete a ideia fomentada pelo neoliberalismo, de que somos todos concorrentes uns dos outros, postos como indivíduos, sem vínculos sociais uns com os outros, e que, em razão disso, não nos juntamos para modificar os rumos da nossa sociedade.

terça-feira, 4 de janeiro de 2022

Imersão

Imersão

Nas águas profundas desse mar bravio
Sem temor algum, mergulha de cabeça,
Com a alma despida para que aconteça
Não basta nudez do corpo, se vazio.

De navio a naufragar, saltar sem medo
Depois de enfrentar muitas tormentas,
Espumosas vagas, ondas turbulentas...
Desilusões! Da confiança um arremedo.

Da exaustão após nadar longas braçadas
Deixar-se imergir três dias e três noites.
Abre os olhos! Não te encontra cá o açoite
Neste mar de calmarias alcançadas.

Gustavo Carneiro de Oliveira
Rio, 04 de janeiro de 2022.