terça-feira, 14 de maio de 2019

A necessária democratização do conhecimento como fator de transformação social

Reclamamos do coleguinha que faz bobagem na política, que é racista, que é homofóbico, que é machista, que é preconceituoso... Mas, o que já fizemos para lhe mostrar o outro lado da moeda? Como agimos para orientá-lo à mudança?

Achamos ruim aquela família pobre e ignorante que "não sabe votar", mas o que já fizemos para lhes ensinar a votar? Falamos para as pessoas a língua que as pessoas entendem? Ou será que vivemos debatendo ideias com intelectuais no ambiente acadêmico, apenas falando difícil para inflarmos nosso próprio ego? Você já parou para pensar na sua responsabilidade pelas atitudes do outro?

Já fiz parte de grupo de WhatsApp em que havia cerca de cinquenta homens gays fazendo contato para amizade, flerte, etc. Dessa galera, a maioria reproduzia um discurso heteronormativo, nocivo e segmentador, dizendo que na hora da paquera "não curtia homens afeminados". Alguns iam além e diziam que não gostavam sequer de andar com esses homens afeminados, porque entendiam que eles os expunham ao ridículo, "denunciando" sua sexualidade para a sociedade que, supostamente não poderia saber que eram gays.

Muitas vezes revirei meus olhos, impaciente com o preconceito arraigado, até que, cansado de ler tanto discurso machista e heteronormativo, saí do grupo.

Em uma conversa sobre racismo, criminalidade e exclusão social, um familiar meu que não chegou a cursar o nível médio, num dado momento comentou:

"Falam que é minha responsabilidade porque aqueles pretos da favela debandaram para o crime. Minha responsabilidade por quê?! O que eu fiz? Eu não tenho culpa de nada. Não fiz nada para levá-los ao crime. Por que eu sou responsável?"

Irritado com o comentário racista, encerrei a conversa ali mesmo, deixando aquelas perguntas ecoando no ar, sem respostas.

Em mesa de bar, bebendo com amigos acadêmicos, por diversas vezes destilei discursos lindíssimos, explanando o quão prejudicial era a "imposição de padrões de masculinidade pela mídia, que se replicavam no discurso de homens, mulheres, heterossexuais, homossexuais, bissexuais, na forma da busca pela padronização comportamental e estética, influenciando a formação de gostos e elementos de atratividade sexual, fomentando o preconceito contra tudo o que subvertesse o padrão estabelecido".

Já discursei em rodinhas de intelectuais acerca das "movimentações sociais pós-abolição da escravatura, que excluíram os negros da sociedade de consumo, obrigando-os a viverem à sua margem, em guetos e favelas, e negando-lhes condições mínimas de subsistência digna, de forma que, impedidos de viverem inseridos no mesmo contexto social dos brancos, ricos e privilegiados, resvalaram para a criminalidade, como alternativa para a própria sobrevivência" e de como o "direito penal e a cultura carcerária são fatores de controle social, uma vez que, aliados com a mídia de massa que reforça a cultura do medo, tende a incutir na cabeça do cidadão socialmente incluído a ideia de que aqueles excluídos precisam ser mantidos neste status quo, já que representam uma ameaça à ordem social vigente".

Refletindo sobre isto, perguntei-me qual foi minha contribuição efetiva para mudar a sociedade à minha volta, a comunidade palpável, concreta, tangível. E lembrei da oportunidade que tive de orientar cinquenta homens gays, em linguagem que os fizessem compreender, sobre como seu discurso heteronormativo havia sido moldado por imposição de padrões comportamentais e como isso reforçava o preconceito e a homofobia dentro da própria comunidade gay, influenciando o aumento das taxas de violência contra pessoas LGBT. Eu poderia ter mudado o pensamento de cinquenta pessoas! E cada uma dessas pessoas poderia ter mudado o pensamento de outras cinquenta...

Pensei na oportunidade que tive de conversar com meu parente racista sobre não ser sua, especificamente, individualmente, a responsabilidade pela criminalidade, mas mostrando-lhe que tanto ele quanto eu fazemos parte de um sistema excludente e que, por causa desse sistema, existe um incremento dos números na criminalidade praticada por quem é socialmente excluído. E então, perdi a oportunidade de fazer com ele aprendesse uma lição e a replicasse para outros parentes e amigos, ampliando o pensamento sobre a necessidade de inclusão social de quem é marginalizado, incentivando a criação de projetos de inclusão social para melhorar a comunidade em que vivem.

Em vez disto, acabei me rendendo à minha impaciência contra a ignorância alheia, virando as costas para quem, de acordo com meu pensamento egocêntrico e vaidoso, deveria saber o mínimo e tinha obrigação de não ser racista, de não ser homofóbico o heteronormativo.

É comum sermos pessimistas com o cenário político quando constatamos que uma passeata composta por cem mil pessoas não representa mais que 0,07% de um universo de 150 milhões de eleitores e que, nas urnas, o resultado poderá ser diferente daquele pleiteado naquela manifestação popular.

Quase sempre lembramos que a maior parte da população não tem educação ou consciência política e não pensa de forma crítica, votando em qualquer candidato em troca de um botijão de gás ou de uma cesta básica. E quase sempre os criticamos por isso. Mas, o que já fizemos para levar a estas pessoas algum pensamento político que as faça refletir para além do imediatismo necessário à própria subsistência? Será que paramos para pensar que, se hoje somos instruídos como somos, foi porque algum dia houve alguém que se dispusesse a nos instruir?

Queremos a transformação social, mas o que fazemos de fato para consegui-la? Em vez de debatermos juridiquês, sociologismos e filosofismos apenas para outros teóricos, quantas vezes os levamos para o churrasco de domingo, traduzidos em linguagem digerível para pessoas que, muitas vezes, não têm o mesmo cabedal teórico que nós?

Passamos anos problematizando o machismo e a misoginia, mas hoje ainda vemos aquele vizinho analfabeto, alcoólatra, praticando abuso contra sua esposa. E quando tentamos lhe mostrar, de forma que se faça compreensível pela sua base de conhecimento, dizendo-lhe que "é preciso ajudar nas tarefas de casa, sim.", uma parte da intelectualidade vigente se volta contra os termos usados e passa a debater sobre a necessidade de não se usar o termo "ajudar", pois a obrigação do homem nas tarefas de casa deve ser compartilhada e equivalente à da mulher. Deixo claro que não sou contrário a debates teóricos e problematizações sobre terminologias. E também entendo que a obrigação mas tarefas domésticas são de ambas as partes que coabitam. Mas, antes, sou favorável a ações paralelas e simultâneas e, se a forma daquele homem – que teve seu caráter moldado em um meio no qual o pensamento machista foi massificado em sua cabeça – entender que para fazer cessar o sofrimento da mulher, é preciso que ele "ajude em casa", defendo que lhe seja assim ensinado, até que os teóricos cheguem a um consenso acerca da melhor terminologia. Isso é democratizar o conhecimento. Isso é transformar a realidade com ações práticas baseadas em teorias estudadas. Enquanto pessoas estudiosas se revoltam, alegando ser um erro grotesco usar o termo "homem feminista" e defendem que o correto é "homem pró-feminismo", a esposa continuará sofrendo violência doméstica até que se chegue a um consenso sobre a palavra mais adequada para orientar o homem que pratica essa violência?

Nosso conhecimento não é democrático quando não se faz compreender na língua que o nosso interlocutor entende. E aqui, insisto que, se por um lado é essencial haver debates entre pensadores dentro da academia, por outro lado urge que as elucubrações intelectuais saiam pelos portões das universidades e alcancem as ruas, as associações de bairro, as comunidades carentes. Se o seu conhecimento técnico, acadêmico, hermético, não dialoga com a sociedade, ele serve para quê?