sábado, 29 de fevereiro de 2020

Se eu fosse juiz...

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O Código Penal, em seu artigo 59, estabelece que, na dosimetria da pena, o juiz deverá observar a conduta social e a personalidade do acusado, dentre outros critérios necessários para sua quantificação.

Uma analise histórico-biográfica do réu demonstra que ele tem origem em uma família desestruturada, tendo sido vítima de agressão pelos pais; não teve acesso a estudo, sendo-lhe, por conseguinte, negadas oportunidades de inserção no mercado de trabalho. Diante disto, apresentou, ao longo dos últimos cinco anos, uma série de delitos contra o patrimônio, além de praticar comércio de substâncias ilícitas. Evidentemente, este indivíduo não demonstra aptidão para viver em sociedade. Ao menos, não nesta sociedade que o excluiu e marginalizou. A conduta social do réu é completamente incompatível ao que se espera de alguém que possa viver em grupo. Ou melhor, neste grupo específico de pessoas brancas, ricas e privilegiadas, que determinam padrões de comportamento e determina o que é ou não compatível com o grupo que elas dominam.

E por isso mesmo, a conduta praticada pelo acusado não está de acordo com a norma vigente. Norma que visa a assegurar o patrimônio das classes dominantes, assegurando, portanto, o acesso dessas pessoas ao consumo de bens, produtos e serviços. Norma que segrega as classes menos favorecidas, obrigando-as à ausencia do Estado quando este descumpre sua atribuição precípua, que é a redistribuição de riquezas produzidas.

Pessoas como o réu demonstram um risco a essa sociedade dominante e por isso mesmo são jogadas nas periferias para que permaneçam longe, onde não serão uma ameaça ao sistema estruturante da sociedade: o sistema de consumo. Ao afirmar "pessoas como o réu", não me referia à sua personalidade, como se esta fosse algo natural, dado, posto e pronto. Referia-me a pessoas em igual condição social: pobres, negras, residentes em áreas desprezadas pelo Estado, que lhes negou infraestrutura, saúde pública, educação pública, oportunidades de obtenção de fontes de renda. Pessoas como o réu não podem ser consumidoras. Não enriquecem o empresário que vende bens e determina o que é e o que não é um valor social, o que deve e o que não deve ser criminalizado, o que constitui ou não uma ameaça à organização social que o privilegia e que relega a pessoas como o réu os recônditos urbanos, cujas fronteiras devem mantê-los longes.

Pessoas como o réu não têm a mão do Estado lhes concedendo oportunidades de assegurarem a própria subsistência.

Diante do exposto, fica o questionamento: por que o Estado que nega saúde, nega transporte, nega educação, nega renda, nega emprego, nega condições mínimas de dignidade e de sobrevivência deveria esmurrar com seu braço punitivo o cidadão excluído?

Na dosagem da pena, verifico que a personalidade do acusado, como manifestação de um conjunto de condutas moldadas pelas condições em que a sociedade, que agora se sente ameaçada, o manteve por toda a sua vida, apresenta, sim, uma incompatibilidade coexistencial. Verifico, sim, que os antecedentes criminais revelam uma pessoa totalmente inapta para conviver nesta sociedade. Chamo atenção, no entanto, para o fato de que os delitos anteriormente cometidos tinham todos um condão patrimonial, ou seja, o réu furtou e roubou, quando se encontrava desempregado e sem qualquer fonte de rendimentos que lhe garantisse a própria subsistência. Tê-los-ia praticado se tivesse oportunidade de construir honestamente (com base nos valores da sociedade que agora o julga) seu próprio patrimônio? Da mesma forma, o tráfico pelo qual já respondeu penalmente poderia ser descrito como a prática de comércio de substâncias que as leis criadas pelos representantes das elites dominantes determinam como ilícitas. E assim o determinam sem quaisquer critérios objetivos. Comércio. Venda. Forma de obtenção de renda. É evidente que o acusado somente pratica os crimes que pratica por buscar uma forma de garantir sua própria existência.

Diante dos fundamentos ofertados, julgo inocente o réu, que, ao praticar um ato atentatório à sociedade estruturada de forma a sempre ter-lhe negado qualquer oportunidade de vida digna, outra coisa não fez, senão revelar as agruras e inconsistências desse sistema que primeiro desumaniza o excluído social e posteriormente o pune.