segunda-feira, 30 de julho de 2012

Palavras a um amigo morto

Acostumara-me com a distância, o que não me impedia de sentir falta dos momentos alegres que um dia tivemos juntos. Mas, por não nutrir expectativas de revê-lo, habituara-me à ideia do “nunca mais”. Os anos em nada diminuíram o carinho que sentia; mas aprendera desde então a gostar de longe, imerso nas lembranças de um tempo que sabia jamais voltaria.

Não obstante tudo isto, a notícia da morte de um amigo – ainda que distante e de quem aprendera a não sentir falta – não deixa de ser perturbadora. Embora não seja uma lei absoluta e irrevogável, a ordem natural das coisas impõe que as gerações antecessoras deixem o mundo dos vivos antes da geração que a sucede. E a perda de um amigo de minha geração me faz refletir acerca das possibilidades... Seria o abre-alas dando início a uma sucessão de perdas que culminaria, fatalmente, na minha própria?
Ver morrer um amigo é ter a certeza de que se iniciou a loteria às avessas, cujo prêmio ninguém quer levar, embora dele ninguém escape. E agora, José? Tristeza por quem morreu? Nenhuma. Quem parte deixa para trás a consciência de si próprio e, não sentindo a própria partida, não pode mais sofrer por estar privado da vida. José simplesmente não sabe que deixou de ser José. E jamais saberá. Mantido na ignorância do não saber, não se apercebendo de si próprio, jamais poderá notar que não é mais. Lamento por quem fica? Por alguns. Estaria sua mãe idosa bem assistida doravante? Não saberei dizer, afinal, estando tão longe...
Morrer é a única certeza que se tem da vida. Uma certeza que tem em seu bojo tantas formas diferentes de dúvidas que, por tal razão, revela-se intrigante... Ao enfrentar minha doença, acreditei que eu seria o primeiro a abrir o portão por onde todos passariam depois de mim em momentos, de causas e numa ordem desconhecidos. Então, chegando sorrateira, veio de surpresa a notícia de que meu amigo agora está morto.
O que mais me irrita em tal circunstância é todo o teatro que se faz em cima dos fatos. O aparecimento repentino de melhores amigos para sempre, a aparição de uma insincera saudade eterna revela o quão corriqueira ainda é esta tradicional beatificação instantânea e automática das pessoas, como se o simples fato de acabarem de falecer, lhe transformassem imediatamente em santos. Ainda bem que assim não é. Não tenho amigos santos e não será como um que me lembrarei de quem se foi agora. Meu amigo era homem e trazia consigo todas as falhas humanas. Amigo safado, algumas vezes mau caráter, imensamente chato e inconveniente. Este sim partiu. E não era menos meu amigo por levar consigo todos esses defeitos. Era meu amigo. Alguém com quem eu podia contar. Alguém com quem me diverti. Alguém de quem um dia me despedi, enquanto enchia o bagageiro de um carro com as caixas da minha mudança, com a certeza de que não o veria novamente...
E agora, José? Você jamais poderá me dar a resposta. Então, resta-me dizer adeus sem desejar que descanse em paz. Em sua atual condição de morto, não mais poderá distinguir paz e tormenta, dor e gozo... E agora, continuaremos todos os que aqui ficamos tocando em frente nossas vidas, enquanto não atravessamos o portal que você agora nos abriu.

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Memórias Perdidas

Ao envelhecer, o ser humano tende a perder sua memória imediata e a de curto prazo, concentrando-se em eventos longínquos, rememorando tempos distantes, de uma época em que a sanidade física e a mental eram companheiras mais presentes.

Por vezes, senti-me aterrorizado, pensando em como deve ser ruim ver o corpo se deteriorar aos poucos e, junto com ele, a lembrança das experiências que acabamos de vivenciar - bem menos interessantes que as da juventude, é fato -, como aquela desagradável dor nas articulações causadas pelo leve ato de espreguiçar. Causava-me imensa angústia imaginar que triste prisão deve ser viver no passado, pensando em amigos que se foram e parentes já mortos, sem ao menos ter a consciência do mundo ao seu redor.

Hoje, percebo o quanto a natureza é sábia. Envelhecer não deve ser um processo fácil, especialmente quando vemos o tempo passando por nós, levando consigo muito de nossa história, carregando para longe pessoas, lugares e coisas que amamos. Pior que estar só é ter a consciência de estar só. Como sempre repito à exaustão, a ignorância é uma dádiva e quando apagamos de nossa mente os estalos que nossas articulações têm vivenciado nas últimas semanas, concentrando-nos nos desafios de corrida e natação que vencíamos quando jovens, não será isto um recado da natureza para nos aliviar os ombros do peso de uma existência frágil e penosa?

Quando um dia é sempre igual ao anterior e, durante os últimos cinco ou dez anos, simplesmente apagamos o que fizemos no dia anterior, estamos resumindo nossa impossibilidade de andar a apenas algumas horas, as últimas. Assim, diminuímos o tédio de estarmos anos a fio em uma cadeira de rodas. Quando lembramos nossos melhores amigos de juventude, sem nos darmos conta de que todos estão mortos há anos, estamos apenas vivendo o ontem, como se os tivéssemos encontrado há, quem sabe, uma semana ou um dia...

Assim, o velho mantém-se jovem, renovando-se a cada dia dentro do universo que é sua mente, permitindo-se viver uma vida que seu corpo decrépito insiste em tentar negar.