segunda-feira, 20 de abril de 2020

"Como explicar o Lula presidiário?"

Passada uma década da saída do Presidente Lula do cargo de Chefe do Executivo, ainda me deparo frequentemente, sempre que teço qualquer crítica ao atual governo, do sanguinário Jair Bolsonaro, sou confrontado com questionamentos do tipo "E o Lula?", "O Lula foi preso, Babaca!" ou "Como explicar o Lula presidiário?".

Para além de toda a pobreza retórica presente no discurso que insiste em não rebater críticas, limitando-se a trazer novos (ou nem tão novos assim) questionamentos, como os mencionados acima, uma coisa que eu REALMENTE gostaria de entender é quando pessoas usam um fato construído por qualquer pessoa, passível, portanto, de erro, como fato inquestionável e absoluto. E olha que eu tô só falando de "erro", nem tô entrando na questão do lawfare e da perseguição nítida, disfarçada de institucionalidade.

"O Lula foi condenado e preso" é um discurso em voz passiva. Mas também pode ser dito na forma de voz ativa do seguinte modo: "O Judiciário condenou e determinou a prisão do Lula". Aqui o verbo foi conjugado por outro sujeito e, sem entrar na questão do Lula ser ou não culpado dos crimes pelos quais foi condenado, quando dissemos que alguém (judiciário) praticou um verbo (condenou) em um objeto (o Lula), estamos dizendo que alguém fez algo.

Não existem dados prontos quando estamos falando de construção de sociedade. Tudo é criação. Tudo é ação. E como ação humana, tudo tem um propósito ou uma motivação. "O Judiciário prendeu o Lula" não diz nada sobre a conduta do Lula. Antes, diz do próprio Judiciário.

Reforço que não estou sequer adentrando – ainda – na inocência ou na culpa do acusado. Apenas, tratando o discurso de forma abstrata. Podemos até substituir o Lula por outro réu. Imagine eu dizendo "O Judiciário perseguiu Bolsonaro". Isso fala mais sobre o judiciário ou sobre Bolsonaro? A mim, fala mais sobre o Judiciário. "O Lula foi preso" ou "o Judiciário mandou prender o Lula" significa que pessoas com alguma intenção praticaram um ato. Presumir que a prisão do presidente seja justa pressupõe que o ato praticado pelo judiciário seja revestido de alguma validade. Jesus Cristo foi preso. Quem o prendeu, fez por quê? Eduardo Cunha foi preso. Por que o foi? Lula foi preso. Por quê? Dá para pressupor necessariamente que todas as prisões foram justas e corretas? Basta lembrarmos que menos de dois séculos atrás o Judiciário garantia aos senhores de engenho a propriedade de pessoas negras escravizadas, o que talvez demonstre que o Judiciário garantir ou não qualquer coisa não induz à pressuposição da validade, da legitimidade, da moralidade desta coisa;

Dizer que o Lula foi preso como algo posto, válido, natural, inquestionável, significa dizer que o Judiciário não erra, que o Judiciário não persegue, que o Judiciário não age dolosamente para condenar alguém que prejudique algum dos seus interesses. Francamente, soa até ingênuo supor que as decisões do Judiciário sejam todas imutáveis e inquestionáveis, como se não fossem passíveis de serem revistas.

Qualquer explicação para o Lula ter sido preso pode não ser nada esclarecedora. Ele pode ter sido preso por crimes que cometeu. Pode ter sido preso por perseguição política. Pode ter sido preso por erro judicial. Tentemos agora explicar, não "o Lula ter sido preso", mas, "o Judiciário ter condenado Lula à prisão".

E aqui a gente começa a debater sobre a inocência do presidente. O Judiciário expressamente condenou o Lula "sem provas, mas com convicção". Na minha formação de advogado, uma coisa eu aprendi: sem provas não há imputação de fato ilícito. Eu jamais poderia condenar alguém sem prova expressa, inquestionável e inequívoca de que essa pessoa tenha cometido o ato pelo qual está sendo acusada. Se o Lula é inocente, não sei. O que sei é que não tenho prova de que ele é culpado. E se eu quiser condenar com base na presunção, posso pressupor que a pessoa que rebate crítica ao Bolsonaro perguntando pelo Lula é uma pessoa desprovida de um mínimo de inteligência e precisa ser calada. Imagina que desagradável eu tentar calar uma pessoa a comentar nesta postagem apenas por pressupor e acreditar que qualquer comentário seu não deva sequer ser levado em consideração. Só com base em presunção, sem nenhuma prova. Imagina mandar prender alguém por isso... Então, sobre a culpa ou a inocência do Lula eu não falo. Mas, sobre o julgamento dele ter sido justo, isso eu posso afirmar com absoluta segurança: não foi.

Um juiz mancomunado com a acusação, instruindo o Ministério Público a forjar as provas que ele mesmo iria analisar formalmente nos autos; um juiz que havia recebido convite para ser ministro do STF pelo governo do então candidato a presidente, caso vencesse as eleições. Vale mencionar que o candidato ganhava de todos os demais nas pesquisas, exceto do próprio Lula. O juiz sabia que somente poderia ser nomeado se tirasse do jogo eleitoral a único candidato que estava liderando as pesquisas, deixando o caminho livre para o candidato que fizera a proposta. Essa manobra utilizando as instituições para fazer parecer válida é o que chamamos de lawfare. Está nítido.

Por fim, lembremos que quem manda no Estado são os donos de capital, os financiadores de campanhas, mantenedores de caixa dois, donos de empresas que serão contratadas pelo Estado para prestação de serviços, fornecimento de produtos, que serão favorecidas com leis que retiram direitos trabalhistas e promovem isenções fiscais... Com esses detentores do dinheiro aliados ao projeto neoliberal do candidato Bolsonaro mandando no Estado, é fácil notar que há um interesse do Estado, nos seus poderes constitutivos, o que inclui o Poder Judiciário, em proporcionar o cenário perfeito para a implantação do projeto neoliberal do candidato Bolsonaro. Assim, é fácil notar que o Judiciário faz o jogo político de modo a defender os interesses dos donos do dinheiro. Nem precisa ser esperto demais para explicar então que o Judiciário em todas as instâncias tinha interesse em neutralizar o Lula para abrir o caminho para o projeto neoliberal que enriqueceria ainda mais os empresários financiadores do Estado.

Bolsonaro testa os limites da democracia, desmoraliza o Estado e pratica uma série de crimes de responsabilidade

O Poder Estatal, que pertence ao povo e em cujo nome deverá ser exercido, é tripartido em Executivo, Legislativo e Judiciário. Isto significa que os Três Poderes juntos formam um poder único, soberano, pertencente ao povo, constituindo o Estado. Assim, os Três Poderes devem ser harmônicos entre si, para que se complementem, atuando em conjunto; mas devem também, num sistema de freios e contrapesos, fiscalizarem-se mutuamente, a fim de que cada um tenha suas respectivas competências de atuação garantidas, ao mesmo tempo em que tenha, cada qual, um controle da sua própria atuação, evitando-se, assim, um exercício irregular por seus representantes e membros.

A isto se dá o nome de Poder Estatal, que é previsto e tutelado pela Constituição Federal, sendo esta a principal Lei de um Estado, devendo ser, portanto, resguardada, a fim de que se mantenha a própria unidade estatal. A atuação conjunta dos Três Poderes garante o exercício da democracia, previsto pela Constituição Federal.

Neste domingo, testemunhamos o Chefe do Poder Executivo, Excelentíssimo Senhor Jair Messias Bolsonaro, Presidente da República, liderar uma manifestação com o intuito de "resgatar o AI-5" (Ato Institucional nº 5,  de 1968, que dissolveu o Congresso Nacional e cassou inúmeros direitos políticos e civis da população brasileira) e incitar o fechamento do STF, Supremo Tribunal Federal, órgão de cúpula do Poder Judiciário. Vimos, portanto, o Poder Executivo liderando uma manifestação visando a impedir a atuação dos outros dois Poderes Estatais, o Legislativo, representado pelo Congresso Nacional, e o Legislativo, representado pelo STF.

O ato praticado pelo Chefe do Executivo fere de morte a democracia construída na Constituição Federal, configurando-se uma investida de um dos poderes estatais contra os outros dois. A gravidade deste ato configura indubitavelmente crime de responsabilidade do Presidente da República, passível, por conseguinte,  de pena de perda do exercício do cargo que lhe fora confiado pela população através das eleições.

A Lei nº 1.079/1050, recepcionada pela nossa Constituição em 1988, conceitua em seu artigo 4º os crimes de responsabilidade como sendo aqueles atos pelos quais o Presidente da República atenta contra a Constituição Federal, e, também, dentre outras opções, contra a existência da União, o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário e dos poderes constitucionais dos Estados e a segurança interna do país.

O que vimos hoje foi Jair Bolsonaro insuflando a população a manifestar-se contrariamente à atuação dos outros dois Poderes. Em uma analogia grosseira, apenas para facilitar o entendimento, seria como se um órgão vital do seu corpo forçasse, de alguma forma, que outros órgãos vitais deixassem de funcionar, causando-lhe a morte. O Poder Executivo tentou asfixiar o próprio Estado ao tentar que o Poder Legislativo e o Poder Judiciário fossem desconstituídos, esvaziados.

Jair Bolsonaro atentou contra o livre exercício dos poderes políticos ao tentar subverter a ordem política vigente, incitando as forças armadas a desobedecerem sua função prevista constitucionalmente, de serem força de atuação para garantir a segurança do Estado nacional, e não força integrante do governo, bem como incitando-as a atuarem contra a sociedade civil e as instituições democráticas, criando animosidade desnecessária. Equadra-se, então, no crime previsto pelo artigo 7º, 6, 7 e 8, da Lei nº 1.079/1950, e ainda nos crimes contra a segurança nacional, previstos nos artigos 17 e 18 da Lei nº 7.170/1983.

Ao atentar contra a segurança nacional, Jair Bolsonaro  incorreu também no crime de responsabilidade previsto no artigo 8º, 4, da Lei nº 1.079/1950.

Jair Messias Bolsonaro, neste domingo, 19 de abril de 2020, testou os limites da nossa democracia ao confrontar tão explicitamente os poderes Judiciário e Legislativo.

Urge que sejam tomadas medidas punitivas pela sua atuação como Chefe do Executivo, sob pena de que, em não o fazendo, o Estado torne inequívoco que os poderes do Presidente da República são irrestritos, exercidos ao alvedrio do interesse popular, sem qualquer freio, contrapeso e punição pelo abuso. Não há patriotismo na atuação do Presidente. Antes, o que se vê é uma ameaça ao Estado constituído que, se nada fizer, mostrará que se acovardou e, de fato, acabou.

Quem se diz patriota é quem deve zelar pela mantença do Estado nos moldes da Constituição Federal, repudiando veementemente a participação do Presidente da República Jair Messias Bolsonaro nas manifestações antidemocráticas deste domingo. Precisamos pressionar o Presidente da Câmara dos Deputados, Excelentíssimo Senhor Rodrigo Maia, para que saia da sua posição omissa, como tem se mantido nós últimos pedidos de Impeachment já protocolados pela oposição, e a receber pedidos de impeachment do Presidente da República que certamente serão protocolados por órgãos e/ou representantes que prezam pela democracia, oriundos dos atos atentatórios deste domingo, 19 de abril. Precisamos pressionar a Câmara dos Deputados, para que autorize imediatamente o seu julgamento. E precisamos também pressionar o Senado Federal a condenar o presidente Jair Bolsonaro pelos crimes de responsabilidade praticados.

O país não pode se calar.

#ForaBolsonaro
#ImpeachmentJá

domingo, 5 de abril de 2020

Amigos e algozes

"Ain, amigo, que exagero você dizer que Bolsonaro quer matar os gays, os índios, os negros. Ele fala isso, mas é só brincando. Claro que ele não vai cumprir nada disso."

Engraçado que a gente vota num candidato esperando que ele cumpra promessas de campanha, né? O gado votou num cara que fazia promessas de campanha, mas acreditando que ele não iria cumpri-las.

Agora estamos vendo a necropolítica bolsonarista pautando a sociedade no utilitarismo à produção capitalista. Se é velho e não produz bem de consumo, com valor de mercado, pode morrer. A previdência agradece! A reforma da previdência foi aprovada para assassinar idosos a longo prazo. Não foi o bastante. Bolsonaro e seus asseclas surfando na onda da pandemia sonham com a morte dos idosos a curto prazo mesmo. Tanto que, vendo a morosidade com o que vírus vem dizimando a população, decidiu acelerar o processo, conclamando outros idiotas como ele a um jejum. Chamam isso de fé. Chamo de carência de nutrientes e redução da imunidade.

Enquanto isso, o gado, que apostou suas fichas na mentira, esperando que as promessas de campanha de Jair Bolsonaro fossem meras bravatas, seguem passando pano. "Ain, amigo, é claro que foi só força de expressão. Ele não ia falar isso a sério. Ele é assim, espontâneo."

Espontaneidade é o novo coringa. É a fórmula que permite que qualquer coisa seja dita ou seja feita e que apostas às cegas possam justificar o fato de a política se tornar um jogo de dados. A gente não acredita no que ele está dizendo, então a gente vota nele assim mesmo porque não sabe o que vem por aí, já que o que ele disse não virá.

Quem apertou 17 tacou o foda-se. Sabia da probabilidade do resultado, nas ficou indiferente à sua consumação. No direito penal, isso tem um nome: dolo eventual. Os crimes praticados por Jair Bolsonaro têm coautoria. E a participação de cada eleitor é fixada com seu respectivo dolo.

Amigos não colaboram com nossos algozes. Bolsonaristas, não contem comigo para nada. Absolutamente nada.

"Onde não queres nada, nada falta."

Uns três anos atrás, iniciei minha jornada rumo ao desapego, partindo para uma vida minimalista. Na ocasião, até comecei a compartilhar no Facebook o tanto de coisas das quais eu estava me desfazendo, roupas, livros, cds, bugingangas de todos os tipos e teve gente manifestando preocupação com minha sanidade mental, perguntando-me "o que estava acontecendo" comigo. Por "estava acontecendo", lia-se, "que tipo de loucura havia me alcançado para que, de repente, eu começasse a me despojar das minhas posses".

Ainda estou longe do minimalismo que eu gostaria de alcançar, mas no meio do caminho, aprendi algumas coisas. O verso da música O Quereres, do mestre Caetano Veloso vem sendo repetido por mim mesmo como um mantra nos últimos três anos. Percebi que estamos tão habituados à acumulação que, quando notamos que acumulamos tantas inutilidades e resolvemos que não as queremos mais, somos imediatamente questionados acerca da nossa saúde mental. É um processo de "naturalização do acúmulo" que nos faz ver como uma patologia o súbito desejo de não mais possuir.

A cultura indiana budista nos ensina que a dor vem do desejo, e que quando abrimos mão de desejar paramos de sofrer a falta. Não sou budista e tampouco pretendo discorrer sobre conceitos budistas. O que exponho aqui é a minha leitura particular acerca desse entendimento, sem nenhuma pretensão de saber se estou alinhado ao pensamento budista e se a minha ideia de desapego é a mesma adotada pelos adeptos dessa religião/filosofia.

Onde não queres nada, nada falta. Se você não deseja algo, não ter esse algo deixa de ser um sofrimento para você. Essa é a minha ideia de desapego e tento trazê-la para minha vida nas coisas mais simples. Antes de 2016, morei em uma casa imensa no bairro da Piedade, cujo banheiro possuía um box separando a área do chuveiro da área da pia e do vaso sanitário. Acredito que a casa da maioria das pessoas que lerá este texto tem um banheiro semelhante. Estamos acostumados a essa noção de banheiro. Se dissermos para pessoas da mesma classe média a que pertencemos e da mesma sociedade em que nos encontramos para que pense em um banheiro, sou capaz de apostar que seu banheiro mental terá um box para o chuveiro.

Quando me mudei para a minha casa atual, cinco vezes menor que a anterior, meu primeiro pensamento ao avisar meu banheiro foi "não tem box! Vaso, pia e chuveiro dividem o mesmo espaço! Vou molhar tudo quando tomar banho!" À época, mudar para esta casa era uma necessidade financeira. Então, a contragosto, aceitei a ideia de um banheiro sem box.

Meu primeiro banho na casa nova, evidentemente, molhou o banheiro inteiro. Apegado à ideia de que um banheiro deve ser seco após o banho, sendo apenas permitido manter o box molhado, tratei de passar um pano de chão em tudo, secando-o por completo. Até meu segundo banho. Ali, caiu a ficha. Por que diabos um banheiro que iria molhar a cada uso deveria ser enxugado? Aquilo era apego. Eu havia me apegado à ideia de que a parte fora do box dos banheiros devia ser seca. Apegado a tal ponto que a área de um banheiro sem box também deveria ser seca. No segundo banho, desapeguei. Não desejar um banheiro seco me permitiu não sofrer por não poder mantê-lo assim. Banheiros molham! Se não tenho um box separando, não preciso me importar em evitar isto. Hoje, tenho minhas dúvidas se, podendo escolher, eu escolheria um banheiro com box. A praticidade de sair do banho e não me importar em enxugar o banheiro me mostrou que não querer um banheiro seco permite não sentir falta de tê-lo. Onde não queres nada, nada falta.

Em 2020, estamos vendo nossa sociedade virando de pernas para o ar com a pandemia do coronavírus. Estamos vendo as crianças sem aula atrasarem seus anos letivos e pensamos "chegará dezembro e meu filho não terá terminado o ano!". Estamos vendo formandos universitários pensando "como vai ser para pegar meu diploma? Sem ele eu não tenho como ingressar no mercado de trabalho!" E aí eu pergunto: teremos um mercado de trabalho quando tudo isto acabar? Se acabar. Toda a discussão acerca da provável quebra da economia pelo prolongamento da quarentena revela exatamente o que um banheiro molhado me revelara três anos atrás: estamos apegados e talvez seja necessário praticarmos o desapego. Quem disse que banheiros precisam ser enxutos quando saímos do banho? E por que achamos que nossos filhos precisam encerrar o ano letivo antes de dezembro?

O medo que sentimos da economia quebrar revela que estamos tão apegados ao modelo de produção capitalista neoliberal que, quando vemos uma mera probabilidade de que ele venha a ruir, entramos em pânico. Queremos nos manter nesse modelo atual. E por querermos algo, sofremos quando não o temos. Onde não queres nada, nada falta. E onde queremos, sofremos a falta.

Essa sacudida que o coronavírus deu no mundo serviu, pelo menos, para um propósito: revelar a fragilidade do sistema de produção neoliberal. Empresários desesperados começam a conta de que quem produz seus lucros é a força de trabalho dos seus empregados. É o trabalhador que gera a riqueza. Isso o coronavírus nos mostrou. Então, urge que nos desapeguemos do modelo tradicional de produção e aceitemos que talvez nossa sociedade jamais volte a ser como era antes. Em vez de nos mantermos presos, apegados a uma ideia de mundo, podemos enxergar aqui a oportunidade da mudança.

Onde não queres nada, nada falta. Mas, quantas vezes você reclamou da exploração do seu trabalho e da sensação de falta de reconhecimento, da falta de ganho justo, da falta de tempo, do excesso de cansaço? Por que então é para esse sistema massacrante que você pretende voltar? Se não quiser existir nesta estrutura capitalista, não lhe fará falta não tê-la. Talvez tenha chegado a hora de você praticar o desapego e abandonar a ideia da sociedade que você conheceu. E assim, quem sabe, você nunca mais tenha que se preocupar em secar o chão do seu banheiro depois de um banho.

sexta-feira, 3 de abril de 2020

Doenças que matam mais

Em uma grave falha argumentativa, vejo muita gente fazendo comparações estapafúrdias, pautadas em falsa simetria, da pandemia do coronavírus com outras doenças que matam muito mais.

Chamo de falha argumentativa porque a linha de defesa comumente adotada por essas pessoas é aquela pautada no fato de que, se há tantas doenças que matam mais do que o coronavírus, não faz o menor sentido mobilizar a população em um alarmismo desnecessário para controlar a pandemia, já que não a mobilizamos para todos os demais casos também.

Este é o pulo do gato que muita gente parece não se dar conta. Tomam como premissa básica, sólida e imutável o fato de que pessoas morrem todos os dias por várias doenças e o fato de que ninguém faz nada para mudar isso. Usam esse pretexto de forma estruturante, como se a sociedade fosse naturalmente constituída sobre a desigualdade social e, consequentemente, sanitária.

Assumem, portanto, como dado posto, que é normal, aceitável e imutável que pessoas morram diariamente de diversas doenças, a maioria delas relacionadas a condições de precariedade de saneamento básico, falta de atendimento nos hospitais públicos, ou dificuldade de acessos a medicamentos caros. Quando se valem desse raciocínio, o que essas pessoas estão dizendo é que está dentro do parâmetro de normalidade que haja uma grande parcela da população sofrendo as consequências da pobreza e que esse fato é o que é, encerrando-se em si mesmo como um axioma, uma espécie de dogma que não precisa ser questionado.

Dentro do raciocínio lógico, a formação de uma sentença passa pelo processo silogístico, que relaciona duas outras sentenças antecedentes, para se chegar a uma conclusão. Sabemos que eu e você morrerei a qualquer momento, não porque isso seja uma informação dogmática, sem outras que a precedem. Mas, porque somos seres humanos. E porque seres humanos são mortais. Se todo ser humano é mortal e se eu sou um ser humano, logo, irei morrer. Continuando a seguir esta linha de pensamento, temos uma sentença (a de que iremos morrer) baseada em outras duas (a de que somos humanos e a de que seres humanos são mortais). Mas, a premissa que estabelece que somos humanos e a premissa que estabelece que humanos são mortais também não foram dados prontos. Vieram de outras premissas, que lhes antecederam. Então, sempre devemos contestar um dado questionando quais foram os processos que o antecederam e que culminaram em sua formação. Quais foram as premissas anteriores que formaram aquela premissa que estamos utilizando como pressuposto?

Trazendo este pensamento para o contexto aqui discutido, quando criamos o silogismo de que não deveríamos nos preocupar em mobilizarmos a sociedade por causa de uma doença porque já temos outras doenças que matam mais, esse raciocínio foi construído da seguinte forma:

PREMISSA 1:
SE temos doenças que matam mais e estão relacionadas à pobreza.

PREMISSA 2:
SE não criamos alarme em razão dessas doenças.

CONCLUSÃO:
LOGO, não deveríamos nos preocupar com o coronavírus.

A fórmula é simples. E parece encerrar-se em si mesma. No entanto, se tomamos a premissa 1 e a premissa 2 como partida para uma conclusão óbvia, precisamos enteder de onde surgiram ambas as premissas. Ou, em outras palavras, essas premissas foram a conclusão de quais outras premissas que a antecederam?

Sim, temos doenças que matam mais e eu poderia tentar dar um exemplo de silogismo que leva a tal conclusão: SE algumas doenças surgem diante de falta de saneamento básico, e SE pessoas pobres têm carência de saneamento básico, LOGO, doenças relacionadas à falta de saneamento básico atingem pessoas pobres. SE doenças matam pessoas pobres e SE isto acontece porque lhes falta saneamento básico, LOGO, a criação de políticas públicas capazes de reduzir a carência de saneamento básico poderia interferir para redução das doenças relacionadas a tal carência.

Sim, ninguém faz nada para mudar isso. E se isso é tomado como uma premissa, temos aqui um novo silogismo. SE pessoas morrem de doença relacionadas à pobreza e SE ninguém faz nada para mudar isso, LOGO pessoas não morreriam de doenças relacionadas à pobreza se houvesse medidas sendo tomadas para evitar.

Gostou do exercício? Continue praticando. Cada premissa que você toma como pressuposto foi construída a partir de outras. E aqui, o que fica claro é que, acrescentando a essa lógica elementos de moralidade sobre o que deveria e o que não deveria ser feito com base nos valores que nossa sociedade usa para se constituir, o que se pode inferir é que se as pessoas estão morrendo por diversas outras doenças e não há qualquer mobilização para com elas, não deveríamos parar de nos mobilizar por causa da pandemia do coronavírus. Deveríamos, sim, começar a nós mobilizar também por todas essas outras doenças que matam mais que o coronavírus.

Se essas doenças estão relacionadas à pobreza, então devemos combater a pobreza. Se a pobreza está relacionada à desigualdade social, devemos combater a desigualdade social. Se a desigualdade social está relacionada à concentração de renda, devemos combater a concentração de renda. Se a concentração de renda está relacionada a políticas públicas ineficientes que priorizam o empresariado em detrimento dos trabalhadores, devemos combater estas políticas públicas. Se o combate a essas políticas públicas está relacionada à mobilização da população para pressionar seus governantes, então devemos pressionar os nosso governantes.

Sociedade se constrói. E se constrói com a colaboração de todos. Pobreza e desigualdade não são fenômenos naturais que devem ser aceitos como fato posto. Doenças que matam mais que o coronavírus não devem servir de parâmetro para impedir medidas de combate ao coronavírus. Pelo contrário, medidas de combate ao coronavírus adotadas por toda a sociedade é que deveriam estar servindo de parâmetro para que deixássemos de naturalizar outras doenças, tomando-as como ponto de partida para nivelar nossa conduta e justificar nossa omissão.

Por que chamamos o motorista do Uber de Uber e não de uberista?

Pois acredite, este não é um questionamento inútil e nem é para ser engraçado. Já existe uma análise dentro do direito trabalhista e da sociologia do trabalho que questiona os perigos desse hábito. Quando a gente chama um TRABALHADOR pelo nome da sua EMPRESA, a gente o despersonifica, desumaniza. E quando despersonificamos a pessoa, tirando dela a sua humanidade, levamos junto a sua possibilidade de ser sujeito de direitos.

Ou por que foi tão necessário coisificar o negro na nossa sociedade escravagista, e por que nossa sociedade de consumo ainda o faz, perpetuando a exclusão social? A propaganda nazista, ao comparar judeus a ratos, desumanizou toda uma população, tornando menos desconfortável ao cidadão alemão o ato de abrir o gás tóxico ou de acender os fornos. Não viam "pessoas", viam "judeus", que eram o mesmo que "ratos".

O processo de invisibilização da pessoa é lento e quase imperceptível. Despersonificar o MOTORISTA DO UBER, transformando-o no UBER, tira do usuário a responsabilidade sobre uma PESSOA, que tem um trabalho precarizado e não reconhecido como vínculo de emprego pela maior parte do Judiciário. E se a sociedade não enxerga o ser humano sendo explorado, passa a não se importar. Deixa de comprar o barulho, mantendo muito confortável a situação da EMPRESA, que lucra absurdamente em cima do trabalho de uma PESSOA, e que tem publicidade gratuita entre seus usuários, quando não elogiam o motorista e sim o aplicativo.

Contratamos o Uber, o iFood, o Rappi, e pouco nos importamos com as condições que tais empresas fornecem aos "uberistas", "ifoodistas", "rappistas". E quem é desumanizado se torna invisível. Não importa se está chovendo canivete, nossa fome não se preocupa se UMA PESSOA vai se molhar e passar frio para trazer nossa comida. Apenas pensamos que um aplicativo fará isso por nós.