domingo, 5 de abril de 2020

"Onde não queres nada, nada falta."

Uns três anos atrás, iniciei minha jornada rumo ao desapego, partindo para uma vida minimalista. Na ocasião, até comecei a compartilhar no Facebook o tanto de coisas das quais eu estava me desfazendo, roupas, livros, cds, bugingangas de todos os tipos e teve gente manifestando preocupação com minha sanidade mental, perguntando-me "o que estava acontecendo" comigo. Por "estava acontecendo", lia-se, "que tipo de loucura havia me alcançado para que, de repente, eu começasse a me despojar das minhas posses".

Ainda estou longe do minimalismo que eu gostaria de alcançar, mas no meio do caminho, aprendi algumas coisas. O verso da música O Quereres, do mestre Caetano Veloso vem sendo repetido por mim mesmo como um mantra nos últimos três anos. Percebi que estamos tão habituados à acumulação que, quando notamos que acumulamos tantas inutilidades e resolvemos que não as queremos mais, somos imediatamente questionados acerca da nossa saúde mental. É um processo de "naturalização do acúmulo" que nos faz ver como uma patologia o súbito desejo de não mais possuir.

A cultura indiana budista nos ensina que a dor vem do desejo, e que quando abrimos mão de desejar paramos de sofrer a falta. Não sou budista e tampouco pretendo discorrer sobre conceitos budistas. O que exponho aqui é a minha leitura particular acerca desse entendimento, sem nenhuma pretensão de saber se estou alinhado ao pensamento budista e se a minha ideia de desapego é a mesma adotada pelos adeptos dessa religião/filosofia.

Onde não queres nada, nada falta. Se você não deseja algo, não ter esse algo deixa de ser um sofrimento para você. Essa é a minha ideia de desapego e tento trazê-la para minha vida nas coisas mais simples. Antes de 2016, morei em uma casa imensa no bairro da Piedade, cujo banheiro possuía um box separando a área do chuveiro da área da pia e do vaso sanitário. Acredito que a casa da maioria das pessoas que lerá este texto tem um banheiro semelhante. Estamos acostumados a essa noção de banheiro. Se dissermos para pessoas da mesma classe média a que pertencemos e da mesma sociedade em que nos encontramos para que pense em um banheiro, sou capaz de apostar que seu banheiro mental terá um box para o chuveiro.

Quando me mudei para a minha casa atual, cinco vezes menor que a anterior, meu primeiro pensamento ao avisar meu banheiro foi "não tem box! Vaso, pia e chuveiro dividem o mesmo espaço! Vou molhar tudo quando tomar banho!" À época, mudar para esta casa era uma necessidade financeira. Então, a contragosto, aceitei a ideia de um banheiro sem box.

Meu primeiro banho na casa nova, evidentemente, molhou o banheiro inteiro. Apegado à ideia de que um banheiro deve ser seco após o banho, sendo apenas permitido manter o box molhado, tratei de passar um pano de chão em tudo, secando-o por completo. Até meu segundo banho. Ali, caiu a ficha. Por que diabos um banheiro que iria molhar a cada uso deveria ser enxugado? Aquilo era apego. Eu havia me apegado à ideia de que a parte fora do box dos banheiros devia ser seca. Apegado a tal ponto que a área de um banheiro sem box também deveria ser seca. No segundo banho, desapeguei. Não desejar um banheiro seco me permitiu não sofrer por não poder mantê-lo assim. Banheiros molham! Se não tenho um box separando, não preciso me importar em evitar isto. Hoje, tenho minhas dúvidas se, podendo escolher, eu escolheria um banheiro com box. A praticidade de sair do banho e não me importar em enxugar o banheiro me mostrou que não querer um banheiro seco permite não sentir falta de tê-lo. Onde não queres nada, nada falta.

Em 2020, estamos vendo nossa sociedade virando de pernas para o ar com a pandemia do coronavírus. Estamos vendo as crianças sem aula atrasarem seus anos letivos e pensamos "chegará dezembro e meu filho não terá terminado o ano!". Estamos vendo formandos universitários pensando "como vai ser para pegar meu diploma? Sem ele eu não tenho como ingressar no mercado de trabalho!" E aí eu pergunto: teremos um mercado de trabalho quando tudo isto acabar? Se acabar. Toda a discussão acerca da provável quebra da economia pelo prolongamento da quarentena revela exatamente o que um banheiro molhado me revelara três anos atrás: estamos apegados e talvez seja necessário praticarmos o desapego. Quem disse que banheiros precisam ser enxutos quando saímos do banho? E por que achamos que nossos filhos precisam encerrar o ano letivo antes de dezembro?

O medo que sentimos da economia quebrar revela que estamos tão apegados ao modelo de produção capitalista neoliberal que, quando vemos uma mera probabilidade de que ele venha a ruir, entramos em pânico. Queremos nos manter nesse modelo atual. E por querermos algo, sofremos quando não o temos. Onde não queres nada, nada falta. E onde queremos, sofremos a falta.

Essa sacudida que o coronavírus deu no mundo serviu, pelo menos, para um propósito: revelar a fragilidade do sistema de produção neoliberal. Empresários desesperados começam a conta de que quem produz seus lucros é a força de trabalho dos seus empregados. É o trabalhador que gera a riqueza. Isso o coronavírus nos mostrou. Então, urge que nos desapeguemos do modelo tradicional de produção e aceitemos que talvez nossa sociedade jamais volte a ser como era antes. Em vez de nos mantermos presos, apegados a uma ideia de mundo, podemos enxergar aqui a oportunidade da mudança.

Onde não queres nada, nada falta. Mas, quantas vezes você reclamou da exploração do seu trabalho e da sensação de falta de reconhecimento, da falta de ganho justo, da falta de tempo, do excesso de cansaço? Por que então é para esse sistema massacrante que você pretende voltar? Se não quiser existir nesta estrutura capitalista, não lhe fará falta não tê-la. Talvez tenha chegado a hora de você praticar o desapego e abandonar a ideia da sociedade que você conheceu. E assim, quem sabe, você nunca mais tenha que se preocupar em secar o chão do seu banheiro depois de um banho.

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