sábado, 31 de julho de 2021

Inquietação

Inquietação

Tardam-se as horas, tarda-se o sono!
Arde em brasa o natural leniente.
E aromatiza o gelo que adentra
Em cada fresta, cada vão, cada canto
Com fragrâncias de fresco capim.

Nenhum braço o abraça no frio
Obsceno que lambe seus pés.
Horas avançam, sono não chega,
Mente vagueia nas horas do porvir:

Que surpresa lhe reserva o alvorecer
Quando o dia que chega trouxer consigo
Sorriso acanhado de quem mira nos olhos?

Dorme antes da aurora! Não te cansas?
(Diz de si mesmo para consigo)
Tardam-se as horas, tarda-se o sono!
Todavia é na singeleza das palavras doces
Onde anseia repousar
Quando for presente o futuro
E se esconder o Sol que ainda não nasceu.

Rio, 31 de julho de 2021.

quarta-feira, 28 de julho de 2021

A prisão arbitrária de Paulo e Géssica

O ativista e militante Paulo Gallo, fundador do grupo Entregadores Antifascistas, teve prisão temporária decretada nesta quarta-feira, dia 28/07/2021, juntamente com sua esposa Gessica, após se apresentar voluntariamente ao 11º Distrito Policial de Santo Amaro, em São Paulo. Paulo (Gallo) Lima está sendo investigado por sua participação na manifestação democrática realizada no sábado, dia 24/07/2021, na qual representantes da sociedade civil atearam fogo na estátua do caçador de escravos Borba Gato, colaboracionista do Estado Brasileiro no genocídio da população negra durante o Brasil Colonial.

A prisão temporária é medida prevista pela Lei nº 7.960/1989, e para ser considerada legal, precisa obrigatoriamente cumprir com os requisitos previstos pelo seu respectivo artigo 1º:

"Art. 1° Caberá prisão temporária:
I - quando imprescindível para as investigações do inquérito policial;
II - quando o indicado não tiver residência fixa ou não fornecer elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade;
III - quando houver fundadas razões, de acordo com qualquer prova admitida na legislação penal, de autoria ou participação do indiciado nos seguintes crimes: (...)"

É preciso destacar que o ativista não apenas se apresentou voluntariamente, não oferecendo quaisquer óbices às investigações, como ainda possui domicílio certo, em endereço fixo, e identificação civil. Além disso, o ato pelo qual é investigado não faz parte do rol previsto no inciso III do artigo acima transcrito.

Paulo Gallo é representante da categoria de entregadores de aplicativos, e sua luta é contra a precarização do trabalho e pela melhoria das condições abusivas, impostas pelo avanço das políticas neoliberais do atual governo, que retiram direitos trabalhistas e expõem entregadores a condições aviltantes, cinicamente chamadas de empreendedorismo.

Nós, juristas, precisamos nos mobilizar contra mais essa VIOLAÇÃO DE GARANTIAS CONSTITUCIONAIS praticada contra toda a classe trabalhadora, através dos desmandos deste Estado que há muito deixou de ser democrático, e avança vorazmente contra pessoas que lutam pela manutenção dos seus direitos. É preciso unir a sociedade contra a arbitrariedade e o autoritarismo de um Estado que se rebaixa para a burguesia e avança abusivamente engolindo os trabalhadores deste país!

Hoje, foram o Paulo e a Géssica, amanhã poderá ser qualquer um de nós, que estamos denunciando ilegalidades praticadas pelas instituições. Essas instituições que deveriam zelar pelo povo, real detentor do Poder Estatal, mas que optam por lamber as botas de uma pequena parcela de endinheirados.

Nossa total solidariedade ao militante Paulo Gallo e à sua esposa Géssica. Pela IMEDIATA REVOGAÇÃO DA PRISÃO ILEGAL DECRETADA contra ambos. A estátua de um genocida jamais deve ser motivo de orgulho para um Estado que se diz democrático. Menos ainda deverá ser pretexto para que trabalhadores como Paulo e Géssica sejam coagidos e intimidados por exercerem seu direito assegurado pelo artigo 5º, XVI, da Constituição Federal, de livre manifestação em local público.

terça-feira, 20 de julho de 2021

Quarenta, quarenta e um...

Ontem um amigo na casa dos 30 e poucos anos me perguntou como era ser um homem de 40 anos (para quem não sabe, tenho 41). Questionou se alguma coisa havia mudado na minha vida em razão de ter feito 40 anos.

O número pesa para muitas pessoas. Lembro de terem me feito essa mesma pergunta quando completei 18, uma idade que cria expectativas pela maioridade civil. E minha resposta foi unicamente "grande coisa ter feito 18, é tudo a mesma merda, não muda nada, a não ser que agora eu pratique um crime".

Meu palavreado era bem menos elaborado e eu era bem mais limitado intelectualmente para discorrer sobre o tema idade. Hoje, respondendo a uma pergunta feita forma tão específica, como a de ontem, sobre ser "um homem de 40 anos" posso dizer quase a mesma coisa que disse quando completei a maioridade.

Para mim, interna e pessoalmente, nada mudou quando fiz 40 anos unicamente por ter feito 40 anos. Então, ser um homem de 41, ou ter sido um de 40, de 38, de 35 anos, para mim não fez muita diferença em razão dos números. O tempo é uma medida criada pelo ser humano, e na natureza os processos se dão independentemente de estarmos contando ou não o tempo que levam para acontecer. Uma árvore que cai na floresta continua sendo uma árvore caída na floresta, ainda que não tenha alguém lá para ver. Ainda que não exista alguém para dizer o que é uma árvore ou o que é uma queda, ou ainda o que é uma floresta. O processo pode não ter sido nomeado ainda, mas está acontecendo.

Assim vejo a minha idade. Não me sinto velho, e não me pesa ter 41 anos. Não vou dizer que sou indiferente ao processo de envelhecimento. Mas, é isso: o que talvez venha a me pesar um dia, ou venha a me preocupar, são as transformações no mundo material e concreto, decorrentes do processo de envelhecimento. É a decrepitude física, são as dores, as incapacitações, as limitações impostas, a memória que eventualmente irá se perder, não por causa de um número que corresponda a uma quantidade de anos, mas ao próprio processo de envelhecer em si mesmo.

Na minha vida, experimentei dois momentos importantíssimos de autoconhecimento, que giraram uma chave existencial e me transformaram de forma significativa em "outra" pessoa. Um deles aconteceu quando eu tinha 22 anos, o outro aconteceu há menos de um ano, quando, por acaso, eu tinha 40 anos. Mas, não posso dizer que ter 22 anos ou ter 40 anos, são em si mesmo, de forma inerente às idades, representativos de uma grande mudança. Não vou descrever aqui as experiências que tive aos 22 e aos 40, porque não há espaço, mas sei que mexeram estruturalmente na minha forma de pensar e de ver as coisas.

É assim que funciona para mim. Um número é só um número. Os processos que se realizam no mundo material, estes sim, podem vir a me abalar negativamente de alguma forma. Não tem sido o caso até o momento. Por acaso, nunca me achei tão interessante e tão atraente como nesta idade. Mas, não é pela idade enquanto um número mágico ou um portal que atravessamos. É pela transformação lenta, gradual, que observamos dia a dia e, num dado momento, nos damos conta de que uma forma de ser deu lugar à outra.

Hoje não aliso nem escovo meus cabelos, com os quais vivi em pé de guerra durante anos, e amo meus cachos que finalmente se tornaram grisalhos. Tenho disposição física para me exercitar, para pedalar, para caminhar, para correr da polícia em manifestação. Meu rosto já apresenta algumas marcas da idade, que disputam espaço com as marcas de acne que ganhei de herança da adolescência. As cicatrizes deixadas pelas espinhas foram, durante muito tempo, um problema incontornável, que me obrigava a colocar filtros e edições em fotos para que eu não pudesse me confrontar com a imagem daquele que eu era. Hoje acho graça quando vejo fotos de dez, quinze anos atrás, em que eu parecia um desenho animado, de tanta edição. Minhas fotos atuais, em sua maioria, não levam filtro, e nunca me achei tão bonito em toda minha vida quanto me acho atualmente, com rugas, pancinha, marcas de acne e cabelo cinza.

Então, ser um homem de 41 anos, para mim, tem sido uma experiência positiva. E não por ter 41 anos, mas porque calhou de estar nesta idade quando as experiências de vida que tive e que me conduziram até aqui me transformaram em quem sou. Talvez quando eu sentir dor ao levantar da cama ou me sentir incapacitado de subir uma escada eu venha a ficar desgostoso, tenso e preocupado. E isso pode acontecer amanhã ou pode levar ainda outros 40 anos para acontecer.

Não me importa contar idade enquanto conceito prévio e abstrato, marcado em uma escala criada pela humanidade para medir o tempo. Importam-me as mudanças concretas, que acontecem no mundo material, aquilo que vejo no meu corpo, a pele que perde o viço, o músculo que perde o tônus, os ossos que rangem, o enfraquecimento da memória e do sistema imunológico, o funcionamento deficiente dos órgãos. Enquanto isso não chega, ser um homem de 40, de 41 de 42, de 43...não significa nada em si mesmo para mim.

sábado, 17 de julho de 2021

O Bispo

Através da fumaça fugaz
Que em derredor dos seus dedos dançava
E dissipava na brisa fresca
Olhava o cinza da tarde pela janela,
Pela qual ansiava não ver todas as dores
Que sabia existentes no mundo.

Em sua mente que se fartava de não ser calma
Atormentavam-lhe, como moscas em volta do lixo,
Recorrente pensamento ao qual se prendia
Num apego doente, de quem não descansa:
"Que lhe custava ter girado aquela faca?"

quinta-feira, 1 de julho de 2021

Cadeia e a ficção jurídica da ressocialização

Cadeia é só mais uma forma de controlar corpos indóceis que supostamente ameaçam um sistema de dominação de uma classe sobre outra. A função socializadora da pena é uma ficção jurídica, como, aliás, é o próprio direito.

Nossa sociedade – capitalista – valoriza o sujeito que pode consumir. Quando o sujeito não consome e, consequentemente, deixa de injetar capital para quem fornece produtos e serviços, deixa de ser desejável para existir nessa sociedade.

O direito, na sociedade capitalista, nada mais é, senão um instrumento de dominação na mão da burguesia para manutenção dessa ordem criada por ela mesma. Desta forma, o direito penal não tem outra finalidade senão encarcerar aqueles indivíduos que, por serem "indesejáveis" para a sociedade de consumo, atrevem-se a romper a fronteira física imposta pela ordem social. Como assim, Guto? Que fronteira física?

Bem, as cidades são projetadas para conforto de quem pode pagar por ele. Avenidas com opções de lazer, comércio, transportes, fácil acesso a praias e a comodidades, não são baratas. Quem pode pagar – leia-se "quem consome" – é bem-vindo. Quem não pode, é varrido para a periferia, onde não há infraestrutura. Favelas, morros, bairro afastados dos centros comerciais, tornam-se o espaço físico delimitado para os corpos indesejáveis. Neste momento, não preciso dizer que são os negros, pobres, travestis, transexuais, gays, e todos os marginalizados pelo sistema de dominação capitalista, patriarcal e branco, preciso?

Pois bem, essa parcela excluída fisicamente da sociedade de consumo, nos "limites de segurança" para quem consome, uma vez privada de condições mínimas de existência, luta para sobreviver como pode. E isso inclui o ingresso na criminalidade. Naquilo que o direito – enquanto norma imposta pelo Estado burguês – chama de crime. Entende aí por que o mesmo ordenamento jurídico que prevê crime de tráfico também prevê crime contra a segurança nacional a exaltação de um tipo diverso de ordem social, que não essa criada pela burguesia?

As cadeias são depósitos de pessoas pretas, presas com pequenas quantidades de drogas, e não servem a nenhum outro propósito senão o de gerar a falsa sensação de segurança para as classes médias, fudidas o suficiente para não serem dominantes e confortáveis o suficiente para serem consumidoras.

Pequenos delitos, como furtos e roubos não põem em risco a estrutura da sociedade, sequer configurando algum tipo de ameaça de esgarçamento do tecido social. Mas, quando a mídia insiste em implantar a cultura do medo através de manchetes policiais, tipo "jovem é assassinado por causa de um iPhone", isso cria nas classes médias (privilegiadas o suficiente para terem um iPhone, fudidas o suficiente para pagar esse luxo em 36 suadas prestações), uma sensação de temor. Passa-se então a alimentar a indústria da segurança privada e das armas, com pessoas se trancafiando em suas casas, gradeadas e cheias de alarmes. Ou por que você acha que existe um lobby das armas no Congresso Nacional, sedento por normas de liberação do armamento e de mãos dadas com a extrema direita?

Essas mesmas pessoas são as que promovem campanhas para endurecimento de um sistema penal, já suficientemente rígido para uma clientela não branca, não heterossexual, não homem cis. Tudo isso fica bem amarradinho quando governos e legisladores conservadores promovem políticas de aumento de pena, de liberação de armas, para contenção, inclusive, decorrente do avanço da retirada de direitos sociais.

E aqui a cadeia tem seu papel fundamental: guardar quem se atreve a romper com esse sistema organizado de forma a perpetuar desigualdades. As classes médias imbuídas do pânico gerado pela mídia passam a apoiar políticos demagogos, que supostamente mostram trabalho quando aprovam leis mais duras para quem é preto, pobre, favelado, que quando se atreve a descer dos morros para andar no "asfalto" vira uma ameaça e acaba encarcerado. Por isto mesmo, aconselho você a parar de clicar em manchete sensacionalista de página policial: não dê audiência a quem promove cultura do medo e implanta na mentalidade mediana a sensação de temor que faz apoiar gente como Bolsonaro e Bancada da Bala. Apresentadores de programas como Datena, Sikêra Jr., e outros do gênero deveriam ser banidos da TV.

Cadeias deveriam não existir. Direito penal não deveria existir. O Direito não deveria existir. O Estado não deveria existir. A sociedade pautada no consumo não deveria existir. O capitalismo, que junta todas essas peças e monta esse sistema tão bem encaixadinho, é o causador de tudo isso. E ele, principalmente ele, não deveria existir.