domingo, 12 de dezembro de 2010

Sem horas e sem dores... III

Quando estava aprendendo técnicas de redação argumentativa, nos tempos há muito idos do meu 2º Grau – Ensino Médio da garotada atual – foquei-me na informação de que se você pretende valorizar um argumento, deve deixá-lo para o final do texto, apresentando já no começo aqueles que você pretende refutar. Sendo assim, devo partir logo para a descrição dos fatos que impediram a noite de ser perfeita...
Dentro de uma Fundição Progresso lotada, já estava me preparando para o espetáculo à parte que a plateia sempre oferece em conjunto com a banda, quando comecei a tossir em razão do trio de rapazes que se encontrava ao meu lado, os quais soltavam as fumaças de seus cigarros diretamente sobre meu rosto, sem o menor pudor por estarem incomodando e por estarem em um ambiente fechado, dentro do qual, por imposição legal, é proibido fumar. Não fosse o bastante, uma dupla de garotos, em um dos camarotes, periodicamente demarcava seu território jogando cerveja, água, ou qualquer outro líquido gelado sobre a plateia, o que tornou bastante desagradável a permanência no mesmo recinto. Constatações de que o público carioca vem se tornando um tanto difícil... Para finalizar a “parte chata”, vamos ser honestos... Que som é esse da Fundição, sempre cheio de ecos e mal equalizado? Algumas vezes, tornava-se impossível entender as letras do que estava sendo cantado! E, em tempos de “Rebolations”, deixar de ouvir as letras do Teatro Mágico é deixar de testemunhar momentos de notável inspiração literária, há muito evadidas da música brasileira...
Finda a parte refutável, passemos às impressões causadas pelo show! E que show, me’irmão?!
Energia. Essa foi a sensação mais transmitida ao longo de quase três horas de música repleta de intensa carga emotiva! Um show histórico, no qual foram comemorados os sete anos de formação da banda. Uma festa realizada no palco, com direito a convidados, à execução de um “Parabéns a você” e a abraços distribuídos diante de um simbólico brinde representado por “Libiamo, libiamo ne lieti calici” da ópera “La Traviata”.
Mas estou me antecipando... Este foi o final do show, duas horas e cinquenta minutos depois de um estrondoso bloco iniciado com o poema “Amadurecência”, seguido de “Abaçaiado”, “Camarada d’água” e “Pratododia”. Essa introdução por si só já avisava aos presentes o tipo de show que viria pela frente.
Uma noite repleta de surpresas, trazendo uma citação em flauta de “Atirei o pau no gato” dentro de “Cidadão de papelão”. A singela coreografia no ar, iluminada por um belo tom lilás, emoldurando “Sonho de uma flauta”, levando ao delírio os espectadores. E para minha total estupefação, um lindíssimo “Wish you were here” que – sou capaz de apostar – deixaria Roger Waters extasiado! E não podia passar despercebido o passinho “Moonwalk” arriscado pelo Anitelli durante uma breve “Billie Jean”, que embora incompleta, foi mais que suficiente pra homenagear o Grande Mestre Michael Jackson!
E quando o convidado Leoni subiu ao palco, cantando o clássico “Garotos II”, a ovação foi geral, seguindo ao longo de todo o bloco, que teve “Realejo” iluminada pelos aparelhos celulares da plateia, “Só pro meu prazer”, que contou com a incidental “Com eu quero”, trazendo um pouco da atmosfera dos anos 80 para dos dias atuais, a qual chegou ao auge com “A fórmula do amor”, finalizado com “Xanéu nº 5”. Foi quando entraram no palco os segundos convidados, Caio Só e Os Varandistas e o Anitelli apresentou uma faixa do terceiro álbum, calminha, “O que se perde enquanto os olhos piscam”, e que pretendo muito em breve apreciar sem moderação quando o cd sair do forno. Uma pausa para introspecção com “No ar” e “Vagalumes”, tirando-me um sorriso do rosto com os primeiros acordes de “Elephant Gun” do Beirut.
E já que estamos falando em instrospecção, dentro desta resenha cabe um espaço para descrever este momento realmente incrível e incrivelmente real. Minha maior surpresa foi quando, após assistir a diversos shows do Teatro em que eles nunca a cantavam, lá estava ela, “A pedra mais alta” – de longe a minha favorita! – belíssima por si só, e desta vez incrementada com um breve “Bolero”, de Ravel. Não dava para ter perdido este show!
No mais, já tendo assistido outras duas vezes a este “Segundo Ato”, eu já esperava pela guerra verbal dos grupos representados pelo “Omovedô” e pelo “Carejangrejo”, após a execução de “Zaluzejo”, e pela gigante figura assustadora que marca presença em “O mérito e o monstro”, pelo movimento ascendente de mãos e palmas em “Pena” e, claro, por “Ana e o mar” que, para minha surpresa, não foi tocada, mas que nem por isso tirou o mérito e a beleza deste show comemorativo pelos sete anos da banda, que teve seu encerramento com a espetacular “Reticências”.
Ou melhor, seu quase encerramento, porque houve bis, no qual, além dos dois primeiros convidados, subiram ao palco os integrantes do Forfun, e uma linda homenagem ao eterno poeta Cazuza levou abaixo a Fundição, mal começaram as primeiras notas de “Exagerado”, à qual emendou-se – como não poderia deixar de ser – “O anjo mais velho”, agora sim, encerrando a noite deixando aquele gostinho de saudade e a pergunta que sempre fica na cabeça a cada final de um show do Teatro Mágico: quando será qie eles voltam?
Que não demore muito, pois seu público fiel anseia por isso pelos próximos sete anos, e que venham outros sete, e outros sete, e outros e outros e outros...
Ao Teatro Mágico, parabéns pelo aniversário. A quem esteve no show, parabéns por terem aproveitado a oportunidade de estarem presentes neste momento emblemático. E a todos os seus fãs, parabéns por dedicarem sua admiração a uma banda que faz cada vez mais por merecê-la. Sem horas e sem dores, respeitável público pagão, até a próxima!

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Amanhecer de saudades

Amanhecer de saudades

Tu partes quando mal se abrem os portões do dia...
Hora sorrateira, traz o Sol minha solidão...
Imerso, outrora, em sonhos, desperto à realidade:
“Até breve, amor...” sussurro, sem alento,
Gastando meus últimos minutos ao teu lado
Olhando, tenso, o relógio, cujos ponteiros não param de rodar...

“Vai, anjo meu, desce a rua
E segue em teu trajeto, se tens de ir...”
Saudade pungente que me aperta o peito,
Guio-te até o portão, desejando com ardor
Um derradeiro beijo, um terno abraço –
Instante mágico em que meu corpo e o teu
Num só se amalgamam! –
Há tanta paz, há tanta calmaria neste átimo...
Outrora melancolia, agora felicidade!

E quedo-me só, todavia não lamento
Um longo dia que se segue até que voltes...

Aguardo teu retorno, tomado de nostalgia...
Mas sei que outra noite cairá sobre nós!
Ouvirei de novo teus passos, sentirei outra vez teu abraço!

Vem, Amor! Chega até mim!
Oscula de leve meus lábios,
Carrega-me contigo ao nosso leito
E sejamos felizes, antes do Sol nascer...

Gustavo Carneiro de Oliveira
21.09.2010

domingo, 12 de setembro de 2010

Tudo que eu queria te dizer

Em 1992, a minissérie “As Noivas de Copacabana”, exibida na TV Globo trouxe-me um enorme impacto profissional, quando optei por seguir carreira de advogado, após ver os debates inflamados entre a promotora, interpretada por Marieta Severo e o advogado agressivo na pele de Milton Gonçalves, no Tribunal do Júri dos últimos capítulos. Além da carreira, esta minissérie apresentou-me também a atriz Ana Beatriz Nogueira, no papel da noiva sobrevivente Fátima. Não foi seu primeiro papel na TV, mas foi o primeiro para o qual eu atentei dos meus 12 anos de idade...
Dali para frente, comecei a admirar bastante suas atuações, como no papel da sem-terra Jacira, da novela “O Rei do Gado”, da filha bastarda Duda de “Anjo Mau”, da oportunista Ana Paula de “Celebridade”, da temível Frau Herta, de “Ciranda de Pedra” e da fútil Ilana, de “Caminho das Índias”, dentre outras.
Mas minha admiração pela atriz resumia-se ao que eu conhecia do seu trabalho televisivo, o qual, vale frisar, muitas vezes deixou de fazer jus ao seu talento, colocando-a sempre em papeis secundários. Nunca antes a tinha visto num tablado.
Estará em cartaz no Centro Cultural dos Correios, de quinta a domingo, até o dia 24 de outubro, o monólogo “Tudo que eu queria te dizer”, baseado no livro homônimo de Martha Medeiros, com direção de Victor Garcia Peralta, que também assinou o monólogo “Não Sou Feliz, Mas Tenho Marido”. Trata-se de uma colagem de seis textos epistolares, não sei ao certo se ficcionais ou verídicos, mas nenhum assinado por ‘Martha Medeiros’. As cartas, de inquestionável sensibilidade, emocionam o espectador, pelo simples fato de serem cartas, tão raras em épocas de World Wide Web, e-emails, scraps, e tweets... Trazem aquele gosto de saudade, de quando esperávamos, às vezes dias, para conseguirmos a resposta de perguntas tão simples como “tudo bom com você?”.
Passado o choque de nostalgia, as emoções capturam o espectador das mais diversas formas. Da audácia na carta da recalcada Andressa para Ester, a esposa de seu amante; da triste saudade na carta da viúva Clô para seu falecido esposo; da decisão tomada pela mulher sonhadora, disposta a seguir em busca do seu amor perfeito, ainda que para isso tenha que trocar a vida real pelo paralelismo das noites dormidas; da paixão revelada pela terapeuta a uma de suas pacientes; do pavor na carta endereçada à Eneida, após as revelações de uma cartomante e a inexorabilidade da morte; e ainda, da intolerância de uma paciente por todas as convenções sociais, explicitada para o conhecimento do seu analista. As cartas interpretadas no palco traduzem todo tipo de emoção, em certos momentos tirando-nos o riso e em outros, convidando-nos a refletir acerca da nossa própria crueldade e do vazio da vida, colocando um peso sobre nossos ombros.
Tudo isso numa composição cênica de máxima simplicidade, na qual atriz e ambiente se fundem através da predominância da cor negra no figurino e no cenário, apenas com um foco de luz incidindo sobre si, enquanto, emolduradas pela música composta por Gabriel Mesquita, alternam-se as vidas, os contextos e, sobretudo, as personagens, visivelmente diferenciadas umas das outras pelo virtuosismo interpretativo da Ana Beatriz, que deita e rola sobre os textos da Martha, revelando a grandiosidade do seu talento e a cumplicidade firmada entre ambas, reforçada através da leitura de uma carta desta para aquela no início da apresentação e, ao final, da resposta enviada pela atriz à escritora.
O único aspecto que entra em choque com a proposta da peça, de revelar “textos escritos”, é a presença, em determinados momentos, de elementos de tal forma gestuais e de oralidade, fazendo-nos questionar como alguém conseguiria “escrever”, transcrevê-los em cartas, o que, de maneira alguma, empobreceu ou comprometeu a beleza do espetáculo. Até mesmo porque, se, por um lado, nestes poucos momentos, faltou veracidade à idéia de que o ato estava narrado em um texto escrito, por outro, a presença de tais elementos não verbais demonstrou o quanto nossa mente é capaz de divagar e captar emoções, ainda que postas de forma estática, impressas em folhas de papel.
Um belíssimo espetáculo, mais do que recomendado.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Teus olhos

Teus Olhos

Quanto cai a noite deste Inverno quente
Similar à calma tarde de um Verão
Sinto o rodopio, a dança intermitente
Dos fantasmas que renascem na escuridão.

Pensamentos torpes: vergastas e correntes
Que me tolhem os sonhos, atam minhas mãos!
Mas eis que na bagunça desta dor ingente,
Brota nos meus olhos dos teus a visão.

Redondas amêndoas, repletas de ternura,
Avançam sobre mim, penetram meu tormento.
De súbito sorrio: é finda minha tortura!

Calou-se a voz pungente! É morto o meu lamento!
Agora me acompanha... Que calma ou que loucura?
Que sonho lindo! Que contentamento!

(A tu, que com teus lindos olhinhos tortos, vem tornando mais reta a estrada sobre a qual caminharei)

Gustavo Carneiro de Oliveira
03.09.2010

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

O Rato

No escuro, sinto o animal que existe dentro de mim devorar-me a carne. Ouço cada mordida. Sua mastigação é lenta. Um rato, talvez, que rói incessantemente. Na agonia noturna, o abraço não me conforta. Antes, incomoda-me. Incomoda quando tento me revirar com a dor que queima e sinto-me atado, sem poder me mover. Incomoda quando penso que tempos atrás, tudo que mais desejei foi um abraço como este, quente, forte, intenso, e agora que o tenho, não o desejo mais.
Este afogamento constante rouba – da forma mais violenta – minha concentração para qualquer ato. E a dor, a vergonha e a humilhação fazem coro na minha cabeça, insistindo que não vieram de visita. Quem sou, que não me reconheço?
Sequer encontro a resposta, pois cada vez que tento pensar a respeito, o rato morde outra vez, e sua cauda inquieta faz-me espirrar, causando um terremoto interno, retumbando na caixa acústica formado pelos buracos internos do meu rosto.
Tento, então, abraçá-lo, mas o calor que vem dos seus braços não aquece o frio que sai pelos meus poros. E quando afasto as mãos dos meus olhos, sinto latejar minha face.
Dor maior é lembrar que não faz muito tempo, eu ri de tudo isso, fazendo-me forte e bradando aos quatro ventos: “sou mais forte que isso!”
E agora, essa força se afigura estranha, como aquele vizinho com quem você brincou na infância, e que os anos trataram de conduzir a caminhos opostos ao seu. Então, quando, anos depois, vocês se reencontram ao dobrarem uma esquina, faz-se constrangedor o silêncio entre vocês, que nada mais têm em comum, senão um passado remoto e lembranças, um tanto nebulosas, aliás...
A vida é uma casa, que devemos arrumar quando queremos abrir as portas para que alguém adentre. E hoje, não consigo encontrar as chaves com as quais tranquei todas as entradas. E, do cárcere privado que fiz de mim para mim, observo pelos vidros sujos qualquer um que bate, desejando entrar. Coloco as mãos espalmadas nas paredes, na esperança de que, pelo lado de fora ele sinta o calor do meu toque. E no fim, após insistir, ele apenas vira as costas e segue pela rua, em busca de uma nova casa, cujas portas estejam abertas...
E a noite não passa. E esse escuro que me atormenta faz parecer maior o ruído que o rato faz quando me rói. E se o buraco aumenta, porque o ar não penetra? E lembro com saudade quando, silenciosamente, eu me deitava de boca fechada, garganta confortavelmente umedecida, cerrava os olhos e adormecia. O peito subindo e descendo lenta e silenciosamente numa respiração tranqüila.
Rendendo-me ao breu, reviro-me na cama, tentando encontrá-lo, tão perto e, também, tão longe, sem conseguir planejar nada, com medo do dia seguinte, maldizendo cada segundo em que penso no rato. Se ao menos eu chorasse, mas sinto secos os meus olhos. Passo meus braços em torno de si, mas novamente, num reflexo, sinto a necessidade de devolvê-lo ao meu rosto, afastando-me dele.
E assim, vejo sob a fresta da porta, os primeiros sinais de que a noite se dissipa, trazendo o alívio momentâneo da luz de um novo dia, mas incapaz de suplantar o pensamento persistente de que dali a 12 horas o escuro voltará a reinar.

domingo, 27 de junho de 2010

Il Guarany

"- Eu morrerei, mas todos vocês irão comigo!
- O quê? Como?
- Eu vou mostrar a vocês agora!"

tchan-tchan-tcha-ran-ran...

E assim, termina a ópera de Carlos Gomes, baseada no libreto de Antônio Scalvini, deixando no ar de uma plateia exausta a pergunta "mas como ele matou a todos junto consigo próprio?".
Quem teve a ideia de montar Il Guarany, sob a forma de concerto, não foi muito feliz na escolha de um trabalho excessivamente visual, repleto de elementos cênicos, como esta ópera, que se divide em quatro atos, e tem como cenário um castelo, uma gruta, uma aldeia, um porão, um quarto, uma floresta, dentre outros. Não posso me considerar um expert em óperas, tendo visto um total de seis, sendo três encenadas, e três em forma de concerto, cada qual com seus prós e seus contras, não cabendo aqui um aprofundamento da natureza de cada uma das montagens.
Mas uma coisa em comum que percebi nas óperas-concerto a que eu já assisti é que, em todas, o desenrolar da história basta-se a si mesmo para deixar claro ao espectador tudo o que acontece em cena, bastando um pouco de imaginação para se construir mentalmente o pano de fundo para a trama. Assim foi em "A Voz Humana", de Francis Poulenc, cuja simplicidade de um diálogo ao telefone, do qual apenas um interlocutor é ouvido, demonstra por si só todo o desespero da amante abandonada, bem como em "Uma Tragédia Florentina", de Alexander von Zemlinsky, na qual uma relação de adultério resulta no assassinato do amante Guido, encerrada na hipocrisia da adúltera e no cinismo do marido traído, no diálogo final: "- Porque nunca me disseste que eras tão forte?" "- E tu, porque nunca me disseste que eras tão bela?".
Não quero aqui criticar a ópera em si do Carlos Gomes, mesmo porque gosto muitíssimo da linha melódica das composições, com o coro agressivo, e uma percussão marcante, que transmite com precisão a tensão constante do enredo, repleto de traições e guerras.
O que questiono, no entanto, é a escolha desta ópera para ser montada sob a forma de concerto, quando seu libreto é composto, de tal modo que muitos acontecimentos e locações não são expressamente demonstrados nos diálogos, mas em gestos dos personagens, ou na mudança dos cenários.
Desta maneira, quem não tem um conhecimento prévio do livro de José de Alencar, ou mesmo da ópera, e não sabe que Don Antônio, quando permite ao índio Peri que salve sua filha Cecília do ataque dos Aimorés à fortaleza, sacrifica-se explodindo o local, matando consigo os seus inimigos, sai do espetáculo com a sensação de que assistiu a uma história sem final!
Assim também, no segundo ato, quando Cecília encontra-se em seus aposentos e, após entoar uma canção de amor, pensando no seu amado Peri, adormece, surgindo em cena, de forma misteriosa, o antagonista Gonzales, não fica claro que o mesmo invadiu o local pela janela, vez que esta invasão é silenciosa e não aludida na fala do vilão, até o momento em que aquela acorda e, assustada, pergunta-lhe como ele teria adentrado ali. Ato contínuo, surge Don Álvaro, seu pretendente escolhido por seu pai, surgem os aventureiros invadindo a casa, surge Don Antônio e surge Peri. Como se não bastasse a total ausência de privacidade para o quarto de uma virgem do século XVI, o fim da cena ainda traz a invasão pelos Aimorés. Nenhum problema para quem enxerga a cena tal qual acontece. Mas para quem apenas ouve os solistas, o coro e a orquestra, fica a impressão de que o quarto de Cecília nada mais é do que um saco de dormir no meio da floresta, onde já estão todos os demais personagens mencionados. Uma bagunça!
A impressão que me causou é de que quem selecionou Il Guarany para esta temporada - não sei ao certo se esta responsabilidade é da Presidente da Fundação
Theatro Municipal, Carla Camurati, razão pela qual prefiro manter a acusação genérica - partiu do pressuposto de que o espectador que quer assistir a esta ópera, só vai porque já a conhece. Não lhe passou pela cabeça o pensamento de que um espectador curioso quer ver Il Guarani, justamente por não conhecer qualquer composição de Carlos Gomes, e vai ao Theatro Municipal, exatamente visando à formação de uma opinião ainda inexistente?
Deixando de lado esta discussão, cabe ainda salientar o desrespeito com o público - que além de dever conhecer previamente ao que vai assistir, tem que saber falar italiano fluentemente, uma vez que o primeiro ato inteiro foi exibido sem projeções de legenda, e esta ao longo dos demais atos, apresentou momentos de falhas. Não sou tão exigente a ponto de não aceitar a plausibilidade da ocorrência de falhas, a que todos estão sujeitos, mas acredito que o mínimo de respeito ao consumidor que pagou um valor não tão "simbólico" exigia a prestação de uma satisfação quando da entrada ao Theatro, sendo-lhe informado imediatamente acerca da ausência de legendas durante todo o primeiro ato, e sendo-lhe, ainda, conferido o poder de optar por assistir ao espetáculo ou obter o valor de seu ingresso de volta. Todavia, a solução apresentada beirou a ironia quando, ao final do terceiro sinal, depois que todos já estavam acomodados em seus lugares e as luzes já se encontravam apagadas, soou a gravação informando ao público sobre a deficiência na projeção de legendas, terminando de forma impositiva com um autoritário "esperamos a sua compreensão", revelando que você deve compreender ou então o problema é seu! E quem não compreendeu, como ficou? Tomo aqui as dores da plateia, como minhas, embora eu tivesse compreendido.
Mas por outro lado, depois de ver um copinho plástico civilizadamente depositado em um discreto cantinho da escada de acesso às galerias (eu quase pude ouvir a voz da pessoa que o deixou ali, sem nenhuma maldade, dizer "vou deixá-lo aqui no cantinho, não vai nem parecer sujeira, ninguém vai sequer notar"), sendo que todos os corredores do Theatro Municipal tem lixeiras, começo a me questionar se essa plateia é digna de que alguém lhe tome as dores e advogue por si.
Começo a ficar realmente assustado com o nível de quem tem frequentado o local e, cada vez mais, acho descabida a exigência de proibir bermudas, somente sendo permitido aos cavalheiros adentrar no recinto trajando calças. O copinho era a prova de que não é o comprimento de sua vestimenta que vai ditar a extensão de sua educação.
E a ópera? Melodias magníficas, um coral poderoso, sem nenhum adjetivo à altura. Belíssimos os solos do Marcello Vannucci e do Licio Bruno. O soprano Gabriella Pace fez uma entrada fabulosa, com um timbre cristalino, mas no decorrer do espetáculo, fui concordando com a opinião, que inicialmente não foi a minha, de que o alcance de sua voz deixou a desejar, restando sufocada em diversos momentos pela orquestra e demais solistas, sendo esta também a minha observação acerca do barítono Homero Velho.
Ao longo desta resenha de leigo que sou, expus tantas críticas negativas, o que pode parecer aos desavisados que me arrependi de ter saído de casa para o Theatro Municipal, razão pela qual faço questão de esclarecer que não foi o caso. Apesar dos contras, num balanço geral, saí satisfeito. Ainda escuto as notas do Prelúdio do Terceiro Ato, do Coro dos Aimorés (Aspra, crudel, terribile), da Canção do Ouro (L'oro è un ente si giocondo) e da Oração dos Aimorés (O Dio degli Aimorè), lindíssimas, ecoando em meus ouvidos e deixando-me emocionado.
Mas confesso que o tchan-tchan-tcha-ran-ran final da orquestra em lugar da explosão da fortaleza, após o suspense gerado pela promessa "Eu vou mostrar a vocês agora!" ficará registrado no meu anedotário particular, a cada vez que eu lembrar do semblante de decepção de, pelo menos, metade da público, que saiu de lá sem entender coisa alguma, acreditando que alguma cena foi cortada indevidamente.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Balada do Desencontro

Balada do Desencontro

Corre a Lua, que descansa
perdida, entre astros, n'algum ponto cardeal do planisfério....
Mas as noites não tem sido mais tão frias

Amaldiçoando o avanço das tecnologias,
todas as fibras óticas e sinais de rádio,
todos os satélites e ondas eletromagnéticas,
todas as mensagens criptografadas que viajam no espaço –
E que, tendo visto a Lua cerrar os olhos e adormecer,
languidamente, sob a linha do horizonte,
devem ter feito a cama sobre uma nuvem
e repousado a cabeça sobre um meteorito, tornado em travesseiro,
não alcançando pois, o seu destino –
Penso nos desencontros que me afastam o sono
(não obstante pese sobre os ombros
o acúmulo dos cansaços colecionados ao longo do dia,
e que nenhum abraço aliviou)

O ar, cada vez mais denso, não encontra os pulmões
pela trilha cerrada, qual mata virgem, das narinas.
Mas a mente passeia, e atravessa a ponte
tão leve, como já não é minha respiração.

E no instante em que, ao cruzar a rua, ao dobrar a esquina –
qualquer rua, qualquer esquina
(posto que em seu passeio noturno, meu pensamento
não divisa fronteiras, tampouco precisa caminhos),
em me veja de frente com o mar:
No verde que grita nos teus olhos,
no sal que verte por teus poros,
no abismo profundo da tua boca,
onde as línguas se agitam como ondas numa tempestade,
na força que choca meu corpo no teu,

Então, saberei que a busca está acabada.
Neste mar revolto, atracarei meu barco...

Poderei, finalmente – como a Lua – descansar
e aguardar os primeiros raios do Sol
a me aquecerem os pés.

Gustavo Carneiro de Oliveira,
madrugada de 22.06.2010

sábado, 5 de junho de 2010

A Uma Tatuagem

(originalmente publicado em)
Itabuna, segunda-feira, 13 de outubro de 2003.

A Uma Tatuagem

Tenho-te em meus pés, Justiça!
Estou acima de ti
Não estás na cabeça
Ao contrário, estás quase no chão
Todavia, Justiça,
Mesmo estando tão baixo
Jamais irás cair!
Não te piso, não te esmago.
Antes, é contigo
Que sempre caminharei

Gustavo Carneiro de Oliveira
13.10.2003

domingo, 30 de maio de 2010

A Música dos Grandes Mestres

Ainda nesta semana, conversando com uma amiga que não tem intimidade com a música erudita, disse-lhe que para quem quer começar a ir a concertos, não deve escolher qualquer obra, mas aquelas de mais fácil assimilação, como “As Quatro Estações”, de Vivaldi, “O Pequeno Serão Musical”, de Mozart, ou os concertos voltados ao público infanto-juvenil. Normalmente essas obras já são velhas conhecidas do grande público, que sem saber a origem de uma música, reconhece-a imediatamente por cenas do cotidiano, como “aquela da propaganda do sabonete Vinólia”.
Qual não foi minha surpresa ao saber que seria realizado pelo Projeto Aquarius, na Praia de Copacabana, gratuitamente, o espetáculo “A Música dos Grandes Mestres”, em celebração dos 70 anos da OSB – Orquestra Sinfônica Brasileira, um concerto repleto de ‘blockbusters’ da música clássica, ideal para todos os públicos, perfeito para aqueles que nunca foram a um concerto.
Programa ao ar livre é uma boa pedida. Apesar de a acústica do ambiente ficar um pouco prejudicada, a noite ajudou. O tempo deu uma trégua na chuva, e até uma lua cheia apareceu para iluminar a areia! E verdade seja dita, num evento como um concerto ao ar livre, a qualidade do som é coadjuvante. Emocionante mesmo é ver a multidão espalhada ao longo da orla, os vendedores ambulantes, parados, baixando suas mercadorias, hipnotizados, todos com os olhos voltados ao palco, é sentir o vento vindo do mar e, nos trechos mais baixos das execuções, ouvir em paralelo o barulho das ondas quebrando na praia...
Com um repertório impecável, abriu-se a noite com a “Abertura Festiva, op. 96”, de Shostakovich, bastante apropriada para a proposta do evento. Após arrancar uns aplausos tímidos da platéia, que parecia receosa de bater palmas, como se acreditando que, de cima do palco os músicos não pudessem escutar, a orquestra iniciou uma viagem no tempo através da música, com uma pincelada de cada movimento, passando pelo barroco, lindamente representado por um “Hallelujah”, de Haendel, com um belíssimo Coral do Theatro Municipal, que destacou os sopranos de forma impecável, seguida pelo primeiro movimento da “Primavera”, de Vivaldi e pela pungente “Ária, da Suíte nº 3”, de Bach e por um singelo coro com “Jesus Alegria dos Homens”.
Ao final desta a plateia finalmente reagiu à altura e os aplausos vieram mais efusivos. Daí por diante, passando pelo Classicismo, muitíssimo bem representado por um Mozart arrepiante no primeiro movimento da “Sinfonia nº 40” e absurdamente comovente com a arrebatadora execução da “Lacrimosa”, do Réquiem.
O baixo Savio Sperandio não pareceu empolgar os ouvintes, cantando a ária “O, Ísis e Osíris”, da ópera “A Flauta Mágica”, mas em compensação, após “O baile”, da “Sinfonia Fantástica”, de Berlioz, que deu início ao período do Romantismo, ficou muito claro que a noite foi do tenor Atalla Ayan, de dicção indefectível, que arrancou “bravos”, palmas e assovios ao final de uma “La Donna è Mobile” sem igual, seguida pela “Abertura” da ópera “Carmem” e da ária “O Mio Babino Caro”, que confesso – sem medo de parecer tiete – ter ouvido em total estado de êxtase, com a comovente voz do soprano Gabriella Pace.
Como nem tudo é perfeito, a violenta e arrebatadora “Cavalgada das Valquírias” teve como acompanhamento visual no telão ao fundo do palco, uma imagem tosca de um Pegasus estático, que não acrescentou coisa alguma à execução da orquestra. Mas para tudo há uma solução, e bastou que eu fechasse os olhos para apagar a imagem do cavalo e conseguir me concentrar na música, que me arrepiou do alto da cabeça ao dedão do pé, assim como o fez a “Abertura” de “O Guarani”.
Destaque para o momento em que a Rússia, o Rio e o Ceará dão-se as mãos, quando os bailarinos Ana Botafogo e Francisco Timbó dançam o “Pas de Deux”, do ballet “O Lago dos Cisnes”, de Tchaikovsky, deixando em silêncio a multidão que tentava fotografar e filmar de longe os rodopios, para deixar registrado aquele momento de tamanha delicadeza. O mesmo par de bailarinos retornaria ao palco durante a execução de “Canção de Amor”, de “A Floresta do Amazonas do brasileiríssimo Villa-Lobos, pelo mezzo-soprano Edinéia de Oliveira – que não é a minha mãe. Mas devo confessar que neste momento meus olhos registraram menos a dança do que o equívoco no telão, que exibia a legenda de outra música, a ”Melodia Sentimental”, a qual sequer foi cantada. Falha esta também sanada, quando se ouvem as primeiras notas do “Trenzinho do Caipira”, que deixaram boquiabertos o grande auditório ao ar livre que ali se instalara.
Se faltou a explosão que julgo necessária no crescendo do “Pássaro de Fogo”, do modernista Stravinsky, esta foi compensada com o grande clímax – e aqui confesso, sem nenhum pudor, a minha explícita tietagem – quando foi anunciado o abraço universal do “An Die Freude”, o magnífico coral da “9ª Sinfonia”, do Mestre dos mestres, Ludwig van Beethoven!
Impossível não registrar a lástima da heresia praticada, quando todos deveriam estar de joelhos, para dar a devida reverência a esta que, para muitos, é considerada um dos maiores momentos da criação humana – para mim, o maior – quando, ao final do contraponto, na pausa que antecede o solo do tenor, o público, julgando encerrada a melodia, aplaudiu, tornando visível o constrangimento do Maestro Roberto Minczuk, que ali ficou, imóvel durante alguns segundos, com os braços e batuta no ar, aguardando o cessar-fogo das palmas para que pudesse dar seguimento à regência do coro, que ainda teria mais uns dez minutos pela frente...
Coral encerrado, meus poucos pelos em pé, minha mente divagando perdida no estado de transe hipnótico, que me conduziu ao “teu santuário celeste”, quando ainda ecoavam em meus ouvidos os versos que fazem loas à “formosa centelha divina, Filha do Elíseo”, quando os músicos retornaram com o bis que não poderia ter sido mais apropriado: o brinde da ópera “La Traviata”, de Verdi, “Libiamo Ne' Leiti Calici”, que deixou bem distante a timidez para aplausos que a plateia havia demonstrado no início do espetáculo. E por último, encerrando-se a noite, a “Marcha Radetzky”, de Strauss, numa singular interatividade com a multidão, que acompanhava a orquestra com palmas, deixando explícito que a música erudita pode sim, ser mais popular do que se supõe!
Uma noite memorável, com aproximadamente duas horas da mais pura genialidade musical. A Orquestra Sinfônica Brasileira merecia mesmo uma festa de aniversário como esta! Parabéns OSB. Que venham outros 70 anos, trazendo sempre, como diria o grande Milton, o artista onde o povo está.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Linha do Tempo

No princípio tudo era o Caos. Silêncio absoluto e uma azáfama nebulosa sem cores e contornos definidos. Então foi dada a ordem: “Fiat lux!”
 
Dia vinte e três de maio de mil novecentos e oitenta. O Brasil enfrentava o governo de João Batista Figueiredo, último estertor de uma ditadura moribunda que já durava mais de quinze anos. Ninguém sabia, mas dali a pouco menos de sete meses, John Lennon seria assassinado com um tiro à queima-roupa, disparado por Mark Chapman. Há quem duvide, mas a despeito de seu nascimento naquele ano, a criança não teria participação alguma no crime. Aliás, os anos posteriores revelariam que ele viria a gostar da música de John Lennon.
 
Dando seguimento à tragédia no meio musical, um mês depois, em janeiro de 1981, morreria a cantora Elis Regina, deixando órfãos seus admiradores, que lembrariam pelos próximos anos do seu temperamento irascível e de sua visceral interpretação da belíssima música do Chico Buarque, “Atrás da Porta”, em versão que veio a se tornar definitiva. Não há muito a ser dito acerca de uma criança de boca grande, que dava seus primeiros passos e tornava ainda mais espessos os lábios, quando, em sinal de protesto, fazia cara feia, armava bico e chorava para não ser fotografado.
 
Três anos depois, quando ainda não tinha completado cinco anos de idade, esta mesma criança deixaria estarrecida sua tia-madrinha, ao abrir um volume de um dicionário na letra “C”, decodificando letras e sílabas, formando, hesitante, as primeiras palavras lidas: cai-xa, cai-xão, cai-xi-nha, cai-xo-te... Esta proeza lhe renderia a sensação de que era o menino mais inteligente do mundo ao lhe proporcionar um salto em sua vida, levando-o do pré-escolar direto à primeira série, sem passar pela alfabetização. O Brasil mudava drasticamente e a campanha “Diretas Já”, conquanto não tivesse conseguido realizar seu intento de redemocratização nacional através de sufrágio universal popular, revelou-se tão influente que ajudou a pôr fim ao tenebroso período da Ditadura Militar, quando foi eleito de forma indireta o Presidente da República Tancredo Neves, que faleceu em 21 de abril de 1985, antes de ser empossado, fazendo subir ao poder seu vice José Sarney, mantendo a tradição de que sistema de governo do nosso país é o “vice presidencialismo”, o que seria confirmado anos mais tarde com a ascensão de Itamar Franco. Mas esta é outra história... Um mês após o falecimento de Tancredo, o menino receberia uma festa de aniversário de cinco anos que ficaria para sempre gravada em sua memória, não se sabe se pelos presentes recebidos ou se pela assustadora figura de uma cabeça de um palhaço como ornamento de seu bolo, seu primeiro contato com a decapitação.
 
Aconteceu no México naquele ano de 1986 a Copa do Mundo, marcada pela desastrosa campanha que tiraria o Brasil da jogada ao perder por pênaltis na quinta partida, após empate com a França. Mais interessante, porém, para o moleque de seis anos era o final do “Balão Mágico” e a estreia do “Xôu da Xuxa”, com novos desenhos animados e cenários modernos, que trariam a era do matriarcado para os programas infantis televisivos, inaugurando-se a dinastia da Rainha dos Baixinhos. O menino, entretanto, não contava com a frustração de, por estudar em turno matutino, estar impossibilitado de assistir à cerimônia de posse daquela que governaria absoluta a TV Globo nas manhãs dos próximos anos.
 
Assim iam-se embora os anos 80. Economicamente, sem deixar qualquer saudade, tendo um dos piores índices inflacionários de todos os tempos... Deixaria, no entanto, um gosto de nostalgia a quem tinha sido criança neste período turbulento, e que não tinha a preocupação de comprar carne a um preço pela manhã e vê-la dobrar de valor ao final do dia, e que teve o privilégio de crescer junto com as bandas de pop-rock, como Kid Abelha (na época, com os Abóboras Selvagens), Paralamas do Sucesso, Legião Urbana, dentre outras tantas.
 
O ano de 1989 teve grandes repercussões na política nacional e mundial. Na Europa, em novembro, foi derrubado o Muro de Berlin, símbolo maior da Guerra Fria, unificando-se as duas Alemanhas, deixando uma União Soviética agonizante, que viria a decair finalmente com a renúncia de Mikhail Gorbatchev, em 31 de dezembro de 1991.
 
No Brasil, o cenário político também foi marcado pela evolução da tão sonhada Democracia, consolidada (?) em outubro de 1988, quando entrou em vigor a Constituição Federal, que conferiu ao povo a titularidade de todo o Poder.
 
Se a voz do povo é a voz de Deus, as eleições de 1989, apenas seis dias depois da queda do Muro no outro lado do planeta, demonstraram que Deus até pode ser brasileiro, mas com absoluta certeza, não é patriota. Eleito na votação do segundo turno, o Presidente Fernando Collor implantaria o famigerado plano econômico que levou seu nome, suprimindo os sonhos – com o perdão do trocadilho – depositados nas contas bancárias confiscadas por todo o país. As mudanças vinham numa torrente e a TV, que pouco antes sofria a censura imposta pela não esquecida Ditadura, exibia agora os seios da Isadora Ribeiro, que girava como uma serpente na abertura da novela “Tieta”, em pleno horário nobre. As rádios de todo o país tocavam de forma incessante as lambadas, músicas de gosto totalmente duvidoso, e quando, aos nove anos, embarcou para a Bahia, dando adeus à sua querida Linhares, sem ter a menor ideia do significado de palavras como “Socialismo”, “Democracia”, “União Soviética” e “Plano econômico”, ele sabia – desnecessariamente – quem era Kaoma.
 
Aquele ano em Camacã passaria sem revelar muito a que viera, deixando nele um sentimento de vazio que sua pouca idade não lhe permitia compreender. Ele tinha, então, dez anos e pouco se importava com a derrota do Brasil para sus hermanos argentinos, na Copa do Mundo, tampouco com a Guerra do Golfo, que devastava o Oriente Médio e trazia à população menos informada os temores de que eclodisse uma terceira Grande Guerra Mundial... Para ele, tudo que sobrara era a saudade, sentimento que também não conhecia plenamente, mas que, com o tempo, veio a aprender que doía. Sem olhar para o futuro, ele pensava na vida que deixara atrás de si, no seu distante Espírito Santo. Ele não contava que, no mesmo dia em que as tropas iraquianas eram bombardeadas no Kuwait, embarcaria para um lugar ainda mais assustador...
 
Valença se revelaria uma agradável surpresa aos olhos, com seus casarios antigos e construções históricas, com as quais ele jamais tivera contato anteriormente, tendo vivido somente em cidades recém emancipadas. Mas, assim como os olhos que se acostumam ao breu roubam daquele que enxerga o medo da escuridão, o encanto inicial não durou mais que uns poucos dias, fugindo tão logo as paisagens ao redor se tornaram corriqueiras. Desta forma, a dura realidade apresentou-se e ele passaria a detestar aquele lugar.
 
Como parecia sina, o panorama político no Brasil continuava instável, mas os ânimos jovens, repletos do entusiasmo pela conquista de uma Democracia que ainda engatinhava, destituía em 1992 – mesmo ano que os meninos do vôlei subiram ao pódio com o ouro nas Olimpíadas de Barcelona – o Presidente Collor, que seria substituído pelo seu vice Itamar Franco.
 
Sua vida mudava e chegava ao final o seu período ginasial, que já lhe revelara de maneira irrevogável o quanto ele não era o garoto mais inteligente do mundo, conforme acreditara naquela tarde que já ia tão longe, quando abrira o dicionário na letra “C”...
 
Começava o ano de 1994 e, aos treze anos, ele percebia que o mundo à sua volta estava girando, mas não em torno de si. E nem mesmo a estabilidade econômica, trazida ao país com o advento do Plano Real, concebido pelo então Ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, em 1º de julho, nem mesmo a conquista do tetracampeonato pelo Brasil, quando o italiano Baggio perdeu o pênalti na Copa, foram suficientes para preencher o vazio que o atormentava e que o faria pra sempre desejar apagar de sua lembranças aquele ano em que quase perdera a vida, o que não conseguiria. Apagaria, entretanto, os posteriores, transformando sua adolescência numa folha em branco sobre a qual nenhuma palavra interessante seria impressa, antes de ser amassada e atirada no lixo.
 
Corriam rápido os anos 90, e neste contexto a Internet se popularizava, ressurgiam as boy bands, trazendo histeria às menininhas que pouco antes trocavam figurinhas metalizadas nos pátios das escolas e àquelas que ainda as colecionavam, o Chefe de Estado conquistava o direito à reeleição, deixando tensos alguns constitucionalistas, um grave acidente automobilístico vitimava a Princesa Diana, a comunidade científica olhava, estarrecida, a pequena ovelha clonada, Dolly, mas nada o tirava do torpor em que se inserira, consequência do exílio dentro de si mesmo após a malfadada tentativa de cruzar a fronteira da vida.
 
Lentamente, aos 19 anos, cuidava para reaprender a importância do convívio com seus pares e, do ano de 1999, ficaria a memória dos domingos na praia, dos churrascos entre amigos e dos sonhos com a nova etapa, que se aproximava inexoravelmente: o ingresso na vida acadêmica. O mundo não acabou quando os fogos no Morro de São Paulo estouraram, anunciando o começo do ano 2000. Antes, para ele, apenas iniciava, muito embora não soubesse disso... Em março ele partia rumo ao novo, tendo a chance de anular o passado de si mesmo, numa cidade diferente, a qual – e na qual – ele finalmente aprenderia a amar. Um processo turbulento de quebras, retomadas e reavaliações... Da peculiar experiência culinária de cozinhar miojo ao fogo de velas, do susto ao ver na TV de uma amiga – pois em sua casa não tinha televisão – a audácia dos terroristas, que pararam o mundo ao reduzir a escombros o maior símbolo do poder econômico dos Estados Unidos, da percepção de que dependia de outros para encontrar um sentido para si e da tristeza que sentiu quando, perdendo o outro, não se apercebeu de si mesmo como um inteiro, dos pileques astronômicos e de todas as músicas que inserira em seu cd player, da redescoberta de que podia sorrir mesmo quando deixou para trás o cargo que lhe garantia um excelente salário, trocando-o pela Utopia – que os anos posteriores lhe mostrariam que viria a ruir...
 
Em 2006 um longo caminho o conduziu ao limiar da sanidade mental quando, ao final do seu curso de Direito, percebeu que um diploma não lhe teria qualquer serventia e que todas as vicissitudes superadas para que chegasse àquele apogeu eram nada quando teve de dar adeus à Pedra Negra, com lágrimas nos olhos e a alma destroçada pela certeza de que encontrara seu fim. Mas ele estava enganado e quando recebeu a paulada que o jogou de rosto no asfalto, poucos dias depois de uma criança ter sido morta de forma brutal, arrastada pelo cinto de segurança em um bairro do Rio de Janeiro, ele teria a chance de tentar outra vez, e bem perto deste asfalto – não aquele em que machucara seu rosto no Carnaval de 2007, mas este em que o menino João Hélio perdeu a vida... Onde começaria a sua...
 
* * *
 
Hoje faz três anos que cheguei a esta cidade, e o mundo continua mudando. Todavia, de forma lamentável, parecem me assaltar com maior assiduidade as más notícias em detrimento das boas... Deslizamentos de encostas no Rio, enchentes em Santa Catarina, avião caindo em Congonhas, avião caindo no meio do Atlântico, a caminho da França, terremoto no Haiti, no Chile, na Itália, vazamento de petróleo no Golfo do México...
 
Não obstante tudo isso, posso afirmar – como raríssimas vezes pude com a mesma convicção que hoje tenho – que estou feliz.
 
Descobri que tudo tem seu preço e que, se tantas vezes me senti desiludido, frustrado e desesperançoso quanto aos meus dias, agora sei que estas foram as moedas com as quais barganhei os que agora tenho, e que me fazem sorrir com uma frequência que eu jamais supus que poderia.
 
Hoje celebro uma vida de três décadas e nos últimos três anos, apenas um décimo de toda a trajetória, já mudei várias vezes o curso da estrada e, numa parada, saí do limbo de quem sequer era estagiário, tornando-me advogado; noutra estação, voltei a respirar o ar que meu nariz insistia em não absorver; em uma curva, deixei o desespero do desemprego para a tranquilidade de pagar minhas próprias contas no final do mês; e mais adiante, percebi que posso caminhar com as próprias pernas, após ter acreditado que eu deveria ser carregado...
 
As metamorfoses não acabam aqui e apenas me resta esperar o que os próximos anos me reservam. Ou não. O que sei, no entanto, é que cada passo dado, conquanto fruto do meu esforço, não teria sido possível, não fosse a presença de cada um com quem cruzei ao longo do trajeto, e que seguiu adiante, ao meu lado, dando-me força e determinação para levantar o pé quando a dormência e as dores faziam-no pesar.
 
Por isso, agradeço a todos. Todos os que, de alguma forma, impeliram-me à frente, participando e constituindo o evento maior – que é o próprio ato de existir – e fazendo deste, não um fardo que eu tivesse que transportar sozinho, mas permitindo tornar mais leve o peso sobre meus ombros. Meu sincero obrigado.
 
E ele viu que a luz era boa e regozijou-se de sua obra...

terça-feira, 27 de abril de 2010

Viola Urbana

(originalmente publicado em)
Rio de Janeiro, quinta-feira, 20 de agosto de 2009.

Sempre fui garoto de cidade, adepto a shopping centers e boates, acostumado a buzinas e sirenes. Embora tenha vivido a maior parte da minha vida em cidades pequenas, ainda assim eram cidades. E onde nasci não era muito diferente. Cidade bonita, ruas largas, carros passando, a BR 101 cortando tudo pelo meio, ônibus cheios, notícias de violência... Mas ali era uma cidade nova. Recém emancipada, e com pontos de infraestrutura ainda em construção... Isso fazia com que em algumas centenas de metros após o "centrão", podíamos visualizar algumas ruas sem calçamento, algumas casas de madeira, com cerquinhas. Do interior dessas casinhas, via-se a autoestrada, onde os carros passavam em ritmos loucos, e esse contraste era bonito. Lembro que nos domingos de manhã, minha mãe levava a mim e a minhas irmãs para uma dessas casinhas, construídas com tábua, de assoalho muito bem polido, e cortinas de chita com estampas de flores, demonstrando um gosto extremamente duvidoso da proprietária, a minha avó. Eu acordava resmungando, pois, estudante do turno matutino, achava o sábado e o domingo um tempo exíguo demais para ser retirado da cama cedo. Nunca soube o que era acordar na roça e tomar um leite fresquinho, ainda morno, da vaca ordenhada minutos antes. Mas, talvez por respirar o ar de um passado não muito distante, quando todas aquelas ruas pavimentadas de Linhares ainda eram caminhos talhados a facão, aqueles domingos de manhã na casa da minha avó tinham um gostinho especial de fazenda. O café, cujo pó era comprado na padaria (que ficava duas ruas além, onde já havia calçamento e passavam carros), cheirava forte, e o bolinho de chuva, ou mesmo o improvisado "engasga-gato", como chamávamos uma mistura de ovo, farinha de trigo e açúcar, frito em óleo bem quente, que só a minha avó sabia fazer, abria o nosso apetite (meu, das minhas irmãs e dos primos que também se reuniam por ali). Algumas vezes, a TV era ligada, com a criançada ansiosa esperando por algum desenho animado, e frustrada por ver bois e cabras e milharais em alguma edição do "Globo Rural"... Esse menino virou gente grande e decidiu viver em uma metrópole, devendo-se repetir, entretanto, que jamais viveu em zona rural. Mas sempre sentiu um tipo de nostalgia esquisita quando ouvia uma violinha bem tocada. Nessas horas minha mente viajava no tempo, e por mais que eu tentasse lembrar de um dia acordando em um recinto caipira, não conseguia. E então, a saudade aumenta, fica dolorida, porque é fácil sentir saudade do que se viveu, e ter a lembrança de um momento que realmente fez parte de sua vida. Mas saudade do que nunca se teve é difícil administrar, porque a gente tem que fantasiar, inclusive o sentimento que teria se tivesse sido!
Dispensando as descrições objetivas, limito-me às emoções. E o que posso dizer de um show, com gosto de bolinho de chuva e café forte coado em pano de prato? O que dizer de uma apresentação que me fez esquecer que eu estava em plena Zona Sul carioca, remetendo-me àquela roça em que nunca morei e que talvez tenha ficado gravada na minha memória somente por causa do Globo Rural visto na TV?
Momentos marcantes, melodias intensas, público empolgado... Não sou crítico de música, e sequer toco qualquer instrumento, tampouco violão. Assim, não me sinto gabaritado para falar nada da técnica. Mas sou emotivo, e posso bem falar sobre os sentimentos de saudade trazidos com as melodias dedillhadas pelo maestro, como a linda citação aos Beatles, mediante os curtos acordes de "Norwegian Wood", que sempre conseguem me arrepiar!
Posso falar sobre as notinhas desafinadas da Nair de Cândia, que embora (ou talvez por isso mesmo) fora do tom, conseguiram me fazer viajar por caminhos remotos, que terminavam sempre em uma grande porteira, com acesso a sabe-se lá que paragens! E mesmo caminhando cada vez mais para longe das igrejas, a presença da Ave Maria Bethânia, fez com eu me sentisse pequeno, naquele momento de reverência e sobriedade para o qual não há palavras que descrevam. O mesmo para toda a Bahia trazida na cuia de um berimbau!
Foi um show que deveria ter acontecido! E para quem não o viu, só lamento!
Mas, marcante mesmo foi a senhorinha, ao ver durante os aplausos, Maria Bethânia já com roupinha de casa (e seu tradicional coque no cabelo), calçando um sapatinho vermelho, sair estarrecida nos corredores do Oi Casa Grande gritando em alto e bom tom: "Ainda bem que eu vivi para ver Maria Bethânia entrar no palco calçada. Agora já vi de tudo!". De fato, quem viu, viu.

domingo, 25 de abril de 2010

"Palhaço é um homem todo pintado de piadas"

Num comentário fingidamente ofendido, o Anitelli refere-se a uma crítica da Revista Veja, categorizando a banda como filão do público dos Los Hermanos, e suas músicas como bregas, em especial "Ana e o Mar". Contra este argumento, eis o fato de que a plateia estava no Teatro Carlos Gomes ontem à noite para aproveitar o show e não para ler Veja... Aliás, quantos palcos a Revista Veja ganhou neste Viradão Carioca mesmo?
Um show histórico para o admiradores destes músicos, que revista nenhuma conseguirá ter palavras para descrever! O primeiro show do projeto Fernando Anitelli Trio, o que me fez sentir ainda mais honrado de ser um seguidor da trupe do Teatro Mágico. E após este show, percebi (e perdoei) a razão de nunca ter ouvido em seus anteriores "A Pedra Mais Alta", de longe a minha favorita, o que foi recompensado com a linda interpretação, que contou com o incidental "Shimbalaiê", levando os fãs (inclusive eu) ao delírio! A proposta do Fernando Anitelli Trio é trazer à tona as músicas mais lentas, instrospectivas, delicadas, tendo o Anitelli deixado claro que não se trata de um "Teatro Mágico Acústico", mas de um projeto novo que, em breve contará com um álbum gravado (tenho certeza de a ansiedade para vê-lo sair do forno, fresquinho, não é somente minha).
Confesso que ver o Anitelli sem máscara me surpreendeu um pouco. Foi um choque constatar que ele não nasceu pintado e com nariz vermelho. E confesso ainda que fui ao show com boas expectativas, mas não as melhores, tendo em vista estar habituado às pessoas "cuspindo fogo, pegando fogo e de fogo" nos palcos do Teatro Mágico... Em alguns momentos perguntei-me se os múscos sozinhos segurariam a barra, sem os elementos circenses... Pergunta tola esta, que foi logo respondida, quando entoadas, após uma singela interpretação de "Cuida de Mim", as primeiras notas do "Rebolation", fazendo o público vibrar numa deliciosa algazarra de quem foi pego de surpresa!
Música a música, faixa a faixa, os músicos levaram ao público a mesma energia que o Teatro Mágico proporciona! Irrestíveis ainda a citação à banda Beirut, e a devastadora interpretação de "Medo da Chuva", do eterno Raulzito! E como sempre, a plateia dá um show à parte! Sentei-me ao lado, pelo que pude perceber, de um casal, cuja moça era fã e o moço estava tendo seu 'début'. Não foi preciso mais que alguns minutos para vê-lo levantar as mãos e bater palmas - como todos - no refrão de "Pena", como se fosse um antigo admirador! Sem falar no uníssono do coro em "O Anjo Mais Velho".
Arrebatadoras as músicas "Samba de Ir Embora Só", "Na Varanda", "Durma Medo Meu", "Menina" e "Eu Não Sei Na Verdade Quem Sou", e por esta eu parabenizo aos parceiros anônimos do Anitelli, as crianças entrevistadas acerca do trabalho dos Doutores do Riso, pelas suas contribuições na composição, com versos tão lindos como "Palhaço é um homem todo pintado de piadas" ou "Velhinhos são crianças nascidas faz tempo".
Diante desta apresentação - primeira de muitas às quais espero poder assistir - deixo ao Fernando Anitelli, ao Miguel Assis e ao Fernando Rosa, meus parabéns pela beleza captada - e deixada a cada um de nós que estava ali presente, como um 'souvenir' que será guardado em nossa memória - e meu sincero agradecimento, em nome de toda a plateia, por ter nos proporcionado aproximadamente duas horas de completa imersão em alegria fluida, cujos vapores transpuseram as portas do Teatro Carlos Gomes, e permanecerão impregnados por bastante tempo, cada vez que qualquer de nós rememorar o que significou este show. "Céu azul é o telhado do mundo inteiro".

sábado, 24 de abril de 2010

Sem horas e sem dores... II

(originalmente publicado em)
Rio de Janeiro, quinta-feira, 11 de junho de 2009.

EU FUI!
Esta foi minha segunda viagem com a trupe do Teatro Mágico... Espero que a segunda de muitas! A primeira foi em 2007, mais precisamente em 23/06, no Circo Voador, quando senti umas das maiores emoções que uma apresentação artística já me trouxe.
Na ocasião, achei que não conseguiria experimentar novamente aquele tipo de sensação... Então, eis que quase dois anos depois, vejo-me novamente frente a frente com a trupe... Desta vez o espetáculo não manteve a leveza e a suavidade do "Entrada para Raros". Antes, no palco, a iluminação e os arranjos intensos evocavam uma certa tensão, que chegou ao ápice com o surgimento de um demônio sombrio, que se postou, de forma ameaçadora, atrás do Anitelli, mas que, com a devida vênia para o uso de um clichê, foi devidamente espantado pela magia da música.
Momento sublime o 'pas de deux' em pleno ar protagonizado pelos bonecos trapezistas, emoldurado pelo "lá lá lá lá" que a platéia entoava em uníssono, com as mãos espalmadas. E desnecessário falar de toda a beleza dos elementos circenses...
Se, ainda comparando o "Segundo Ato " com minha primeira viagem, constatei que neste faltou a leveza daquele, devo deixar claro que não faço desta constatação nenhum demérito. Pelo contrário, o Teatro Mágico mantém a mesma carga emotiva, capaz de manter eriçados os poucos pelos do meu braço, enquanto meus olhos se fecham e eu apenas capto o som que vem de todos os lados... "Vou me lembrar de você, enquanto eu respirar", antes de abri-los para vislumbrar o público lindo, pulando e batendo palmas... E só então, percebo que estou fazendo a mesma coisa que todos, com os braços abertos, enquanto minha voz desafinada acompanha a melodia... "só enquanto eu respirar".
Outra vez, a trupe d'O Teatro Mágico manteve acesa minha vontade de segui-la. Espetáculo inesquecível!

Soneto ao sono e à tempestade

Soneto ao sono e à tempestade

Na calma sorrateira desta hora morta
Quando as águas rolam pela noite em breu...
Riscando o firmamento com suas linhas tortas
Coriscos rutilantes: fogo fátuo no céu,

Trazem o rastro rouco de seu estampido,
Rasgam a escuridão os ecos de suas cores!
Lá fora o vento indócil fustiga, enraivecido
Os galhos dos arbustos, que se dobram em dores...

Oh, chuva, vela o sono deste, cuja falta
Adentra minhas janelas qual torrente!
Cala-te, trovão! Não vês que ele descansa?

Relâmpagos, como luzes na ribalta,
Iluminem os sonhos deste anjo dormente,
Não deixem a aurora despertar minha criança.

Gustavo Carneiro de Oliveira
(Numa madrugada de luzes e águas, sons e sonhos, 15.01.2010)

Jogo de Luz e Sombra

Jogo de Luz e Sombra

Meu sol, há algum tempo, se apagou
e venho caminhando por uma estrada sombria.
Não chove. Não é noite.
Apenas o astro perdeu seu brilho...
De tal forma que, sem enxergar,
na penumbra permaneço... Andando...
Sem saber se estou tomando o rumo devido.
Mas, leviano que sou, galgo entre pedras
e continuo...

Olhando em frente, nada vejo.
Olhando para trás, não reconheço
a trilha tortuosa, através da qual me guiei.
E vasculho minhas lembranças
não tão remotas,
tentando reconstituir a última visão
de quando tinha meus olhos ofuscados
pelo brilho da estrela,
que agora paira no vácuo,
com um grande corpo sem vida...
E me assusto ao perceber que
não lembro o exato momento,
em qual das curvas, a quantos passos,
meu caminho ficou cinza.

O sol apagou. Assim, simplesmente,
como o clique de um interruptor.
Mas onde estava minha consciência
e porque não recordo de ter-me assustado,
olhando para cima à procura da luz,
que, de súbito, fugiu?
Egoísta que sou, segui adiante,
não atentando para o derradeiro átimo
em que meus olhos puderam discernir
traços, contornos e cores.
Apenas andei...

E agora, percebo que a trilha
não mais oferece sua graça.
Mas não saí da estrada!
E após tanto andar, por entre sombras,
conscientizo-me acerca do animus
que me impele à frente,
que tira cada um dos meus pés
do chão escorregadio (o qual já não vejo, sinto),
projetando-os centímetros adiante,
ainda que não exista mais luz.

Não! Não sou leviano! Tampouco egoísta!
E se não parei de andar
tão logo o sol tenha se apagado,
foi porque eu tive esperanças
de que na próxima curva, no próximo passo,
sua luz voltaria a me iluminar.

Gustavo Carneiro de Oliveira
06.12.2009

Carpe Diem

Carpe Diem

Quando vires refletido o Sol no lar de Poseidon
Lembra-te de mim, aqui saudoso a desejar-te.
Faz de conta, se sentires aquecido o teu corpo,
Que não são os fulgores de Apolo...
Antes, que te enlaçam meus braços num abraço
E trazem teu corpo junto ao meu
(Como minh’alma ora se enlaça à tua!)

E se, nesta hora, resvala por teu dorso e tua fronte
Gotas de suor, salgado como o mar que vês....
E, ao sentires na tua pele a errante dança das águas
Finge que te fazem cócegas meus dedos
A deslizarem, plenos de desejo, sobre tuas costas;
Repletos de ternura, sobre teus olhos

E assim, quando à noite, a nostalgia te buscar
E Morfeu puxar tuas mãos ao leito vago
Faz do teu travesseiro o meu peito
E repousa tua cabeça, sobre a qual desce a cortina
Salpicada de brilhos, inobstante escura...
Dorme! E deixa que o onírico momento
Te conduza a mim, que longe, amargo tua falta.

Se, no entanto, tua mente te trair
E morrerem tua fantasia e faz-de-conta
E do Sol não te bastar o calor como um abraço,
E não extraíres uma carícia do teu suor,
E teu travesseiro não arfar como meu peito,
Vem! Bate à minha porta e entra!
Prende-me em teu corpo, dá-me tuas mãos!
Deita-te ao meu lado e dorme comigo
Então, prolongarás um dia memorável
Ao qual se seguirá noite tão sublime!

Gustavo Carneiro de Oliveira,
Rio, 09 de fevereiro de 2009

Teu calor

(originalmente publicado em)
Rio de Janeiro, sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Teu calor conforta meus sentidos, e quando sinto deslizar o teu peito suado nas minhas costas, o mundo para. Deixa de rodar a terra, para fazê-lo minha cabeça. E neste frêmito de rodopios, vejo que somos, antes de tudo, animais... E assim, minha boca busca com ânsia a tua. Minha língua explora cada centímetro e cada cavidade que possuis. Sinto o gosto salgado que sai dos teus poros e tempera toda a fome que sinto de ti! E após uma luta da qual não sai vencedor ou perdedor, restamos dois seres enlaçados por uma força inexplicável, misto de tesão e ternura...

Soneto da Boa Noite

Soneto da Boa Noite

Caídos, sonolentos olhos baços
Que se entravam, abertos, em contenda,
Pois que, cerrados, como reprimenda,
Afastam-me da contagem dos teus passos.

Hora triste, quando a noite encontra o meio
E tu segues – tendo a Lua a vigiar-te –
Dou adeus a ti, que pela rua partes...
Por teu sinal, aqui espero, aqui anseio.

Vem de longe restituir-me o compasso,
Traz consigo a tua voz... Então desperto
Ao captar teu “Boa Noite” em meus ouvidos!

Ora calmos, cedem os olhos ao cansaço
Não te enxergam, posto que não abertos,
Para sonhar-te, tendo agora adormecido.

Gustavo Carneiro de Oliveira
16/12/2008

Os versos que nunca te fiz

Os versos que nunca te fiz

Perdoa, Amor, os versos que nunca te escrevi...
Perdoa este poeta sem inspiração,
incapaz de lançar no papel,
inábil a cantar a felicidade
que os últimos tempos trouxeram,
vinda, não sei bem de onde,
mas que, em algum ponto te encontrou
e chegou até mim, trazida por ti!

Perdoa se, por mais que tentasse
nunca tenha conseguido dedicar a ti
sequer uma rima!
Desculpa!
Nos versos que nunca te fiz,
tantas noites de alegria e calor
não puderam ser traduzidas
permanecendo eu absorto em meus pensamentos,
calado, sem mesmo saber como
te mostrar o tamanho da tua beleza!
(E neste aspecto, faz o espelho
um trabalho melhor que o meu olhar
quando me encontro ao teu lado?)

Nos versos que nunca te fiz
deixei de registrar tantos momentos
em que, ao teu lado, tão-somente
cerrei os meus olhos – e os teus –
calei tua boca com um beijo...
naquela horas, quando a noite é silente,
e os abraços embalaram nosso sono.

Tantos crepúsculos e alvoradas
perderam-se na memória
sem que minhas mãos pudessem
empunhar a pena sobre uma folha maleável
para descrevê-los a ti
em todas as cartas que nunca te deixei.

Nos versos que nunca te fiz
não descrevi teus olhos e teu sorriso perfeito,
tampouco detalhei os cachos e ondas
formados no teu cabelo...
E teu corpo... Ah! O teu corpo
no qual tantas vezes me abriguei,
entorpecido, como quem secou a garrafa
e agora contempla, feliz,
a miríade de estrelas
rodopiantes da alucinação da embriaguez

E assim, perdoa...
Perdoa cada letra mal talhada
Que jamais grafei a ti,
Todas as estrofes que nunca estruturei
E cada bilhete
Que não guardei nas tuas algibeiras...

Perdoa, Amor, pois cada instante,
Conquanto não registrado em todos os versos
Que jamais te escrevi
Permanece gravado no muro das minhas lembranças...
Transcrito e explicitado
Na permanência do meu sorriso.

Gustavo Carneiro de Oliveira
Rio, 06.12.2008

À Mulher

À Mulher

Ao lugar comum e ao clichê tento pôr fim
Mas, confesso, não é fácil este caminho...
Posso eu falar de ti, Mulher, sozinho,
Depois que todos o fizeram antes de mim?

Qualquer loa à tua força ou tua ternura
Soa antiga, mas o que hei de dizer
Se este amálgama é a essência do teu ser,
Alicerce da toda a Estrutura?

A ti entrego o meu amor, o meu afeto...
Sem a tua segurança estou inquieto!
Quem és tu? Esposa, mãe, irmã e filha?

És a mão que nos carrega pela trilha!
Afaga ou pune... Sei que tens por objeto
Conduzir-nos ao teu modo: o mais correto.

Gustavo Carneiro de Oliveira
Rio, 07.03.2008

Soneto Para Alguém Especial

Soneto Para Alguém Especial

Tento, sem êxito, compor versos...
Traído pelo branco em minha mente,
Esforço-me, porém, inutilmente!
Fogem-me as rimas, em termos tão dispersos.

Como descrever-te assim, incontinenti,
Em poucas linhas, tortas, inseguras?
Árdua tarefa, a do poeta e suas agruras,
Se não transpõe ao papel tudo que sente.

Tu és mais que a métrica limita,
Impossível encerrar-te em poesia...
Que jamais conseguirá ser tão bonita.

Paradoxal dona de contrastes
Num só ente, tempestade e calmaria
Um soneto não é tanto a que te baste.

Gustavo Carneiro de Oliveira
21.12.2007

Cuidado, Frágil

(oiginalmente publicado em)
Rio de Janeiro, quarta-feira, 28 de maio de 2008

Um dia espero descobrir que alguma coisa pode ser mais excitante do que longas horas de conversa, com música, abraço e olhares bem iluminados. Um dia espero sentir que palavras picantes, em lugar de "como foi o seu dia?" são melhores de serem ouvidas. Um dia quero aprender a ser visto como um animal no cio, sem cérebro, dominado apenas pelo instinto. Um dia quero ver que qualquer pessoa é substituível e espero poder brincar com os sentimentos de todos para, em seguida, dormir tranqüilamente. Um dia quero ter a leviandade de dizer que será eterno, mas com a mente consciente de nos próximos cinco minutos deixará de existir. Um dia quero dizer aos que não me completam que eles são únicos e que estarei sempre ao seu lado (a cada um deles, direi!). Um dia quero gozar e no minuto seguinte desejar cair fora e se isto não for possível, então, virar para o lado e dormir, para, quem sabe, sonhar com uma realidade menos desagradável do que aqueles segundos de prazer, que agora ficaram para trás. Um dia quero não saber sua música favorita e esquecer o dia do seu aniversário, para mostrar que eu realmente não me importo. Um dia quero me preocupar com a roupa que você está usando, e não lembrar de qualquer idéia que algum dia você tenha me apresentado. Um dia quero ser humano... Enquanto esse dia não chega, continuo sendo eu mesmo. E continuo a achar que não faço parte do mundo.

Distância (Ou Soneto a Um Enfermo)

Distância (Ou Soneto a Um Enfermo)

Se pudesse estar agora ao teu lado
Diria a ti que não te preocupasses
Com um ligeiro beijo em tua face,
Mostrar-te-ia o quanto és amado.

Oxalá agora eu pudesse embalar-te
E, contigo nos meus braços, te diria:
"Cerra os olhos! Foge da noite tão fria!"
Ah! Se eu pudesse... Se eu pudesse, destarte...

Entretanto, te guarda o maldito Dragão
Em cujo fogo não temo perecer
'Inda que a peleja destrua minha espada

Valeria a barganha se a mim fosse dada
A chance derradeira para te ter
E em meu último instante, segurar tua mão.

Gustavo Carneiro de Oliveira.
Rio, 15.05.2008

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Fração

(originalmente publicado em)
Rio de Janeiro, sexta-feira, 07 de dezembro de 2007.

Fração

Metade resoluta
De fração estendida ao infinito
(e que um dia terá fim)
Nunca só, mas incompleta
(não é tanto a que te baste?)

Metade que junta nacos,
Conquanto não sobejos
Seus sabores desviam da língua
Banquete de Tântalo esfaimado
Por tudo desejar, nada obtém

Metade que caminha
Segue o rastro das miríades
Fragmentos esparsos, perdidos
Aqui, ali, acolá, além
Sempre além, e cada vez mais...

Metade que não busca metade
Encontra pedaços, bocados
E os deixa e é deixada
Resta-lhe a certeza
Do Inteiro que jamais formará

Gustavo Carneiro de Oliveira
Rio, 05.12.2007

Céu cinzento

(originalmente publicado em)
Rio de Janeiro, terça-feira, 20 de novembro de 2007.

Gosto de olhar o céu assim, pesado, como se prestes a cair sobre nossas cabeças... Ver o mar e o céu divididos, não pela linha reta do horizonte, mas por curvas delineando o caos. A pergunta que não cala é "o que vem depois?". E lá longe, além, além... Parece não vir nada mais. Tudo é irritantemente igual quando se propõe à mudança! Os dias vão passando, e de repente num final de semana perfeito, você descobre que nada é perfeito. Mais uma vez! Então, o que vem depois?
Não sabemos, ninguém pode prever... Seja lá como for, tomem cuidado. Pois os olhos são sempre maiores do que você!

Lembranças

(originalmente publicado em)
Rio de Janeiro, segunda-feira, 22 de outubro de 2007.

No final da noite, sons de eras perdidas rebaterão nas paredes dos teus ouvidos, e trarão consigo todos os fantasmas que julgavas terem ficado para trás. À tua porta soarão todos os toques, e sentirás medo de abrir. É tarde. Tu escutarás todos os rangidos - todos! - e perceberás que não podes mais fugir daquilo que devora tuas entranhas e destrói a tua alma! Então sentirás que estás sozinho. E não te terás enganado! Estás, de fato, sozinho. E em tua solidão, verás que foste abandonado por ti mesmo... É tarde, e ficaste para trás, de onde nem aqueles sons tão distantes poderão te trazer...

Esconderijo

(originalmente publicado em)
Rio de Janeiro, sábado, 29 de setembro de 2007.

De súbito, você vê passar por cima dos seus ombros uma sombra. E com um pequeno calafrio, pergunta-se o que terá sido... Mas esquece do assunto, e continua seguindo seu caminho. E lá na frente você tem uma estranha sensação de que algo te observa de longe. Ou nem tão longe assim. E a sombra deixa de ser sombra, e se corporifica diante dos seus olhos. Ela surge de trás daquela árvore que você observava, e agora está diante de você. Então você a fita com olhos estáticos. E apenas volta a seguir o seu caminho.

Decadência

Decadência

Afinal, é o costume de viver
Que nos faz ir vivendo para a frente.
Nenhuma outra intenção, mas, simplesmente
O hábito melancólico de ser...

Vai-se vivendo... é o vício de viver...
E se esse vício dá qualquer prazer à gente,
Como todo prazer vicioso é triste e doente,
Porque o Vício é a doença do Prazer...

Vai-se vivendo... vive-se demais,
E um dia chega em que tudo que somos
É apenas a saudade do que fomos...

Vai-se vivendo... e muitas vezes nem sentimos
Que somos sombras, que já não somos mais nada
Do que os sobreviventes de nós mesmos!...

Raul de Leôni

Sem horas e sem dores...

(originalmente publicado em)
Rio de Janeiro, domingo, 24 de junho de 2007

"Bem vindos ao Teatro Mágico"

O local é a charmosíssima Lapa, região central antiga do Rio de Janeiro. A espera é longa, a fila extensa, mas em nenhum momento eu me perguntei se valeria a pena estar ali de pé por tanto tempo. Eu tinha certeza de que valeria cada minuto! E assim o foi! Ver a trupe do Teatro Mágico em ação é testemunhar o que há de melhor na arte cênica e musical brasileira!
E o Circo Voador foi uma belíssima surpresa para mim! Ver aquele público lindo, despojado, ora sentado, ora de pé, ora dançando, ora estático, embasbacado com os rodopios aéreos dos bonecos trapezistas, foi comovente! Era vida em movimento! Grupos de amigos que se abraçavam, longe da imobilidade de mesas e cadeiras fixas ao solo, e sim, harmonicamente colocados nas fileiras das arquibancadas, sem limites espaciais! Eram pessoas desconhecidas perto do palco, todas unidas com um só objetivo: curtir o show!
E que show! Injusto não fazer uma pequena loa à banda 3 Steps, que abriu lindamente a noite, com seus talentosíssimos instrumentistas, e um vocalista, no mínimo dono de uma simpatia cativante! Sonoridade que contagia, e uma paradoxal vontade de que o show deles acabasse logo, não por ausência de talento, mas por ser a atração principal que se esperava ver ali. Aliás, o desejo de que aquilo terminasse foi até talvez uma lástima por nesta noite o palco ser dividido (ou somado, como diria o Fernando do Teatro), e pela vontade de ver o mais breve possível um espetáculo dessa galera nova, dominando o palco do começo ao fim, com seu brilho próprio!
Mas então, finda a abertura, entra em cena o Teatro Mágico! Muitas cores, muitos gestos, muitas caretas, e muita, mas muita emoção! Suas letras fabulosas, sua musicalidade fantástica, o riso provocado, tudo, tudo ali era magnífico! Impossível deixar passar despercebido as homenagens ao Cordel do Fogo Encantado, ao Chico Science e sua Nação Zumbi, ao Marcelo D2... Impossível não se emocionar com a boneca trapezista escalando as fitas pendentes no meio de uma platéia fidelíssima, enquanto se ouviam do palco os versinhos singelos do Frente – “Everytime I see you falling I get down on my knees and pray” – musicados numa roupagem tão diversa da habitual.... Impossível não sentir saudade com o resgate de um “Superfantástico” que muitos ali esqueceram nas caixas de brinquedos em sua infância... Impossível não se emocionar com o discurso acerca da arte, que deve ser divulgada, ao invés de enclausurada nas estantes pedantes dos intelectuais burgueses...
A energia positiva que emanou do palco o tempo todo rebate em nossa cabeça, fazendo-nos sentir vontade de praticar o bem! E o medo de que cada música seja a última torna difícil piscar os olhos para que não se fragmente aquilo que gostaríamos de perpetuar! É um show que me fez lamentar por acabar! É um show que me fez lamentar por eu não fazer parte da trupe! É um show que me fez lamentar não poder seguir toda a turnê! Se foi aprovado? Com mérito e louvor!

Promoção

(originalmente publicado em)
Rio de Janeiro, sábado, 05 de maio de 2007

"Bem, eu quero te dizer que você vem se destacando dentre os estagiários aqui do escritório, especialmente pelo fato de você ter bem pouco tempo aqui dentro... eu tenho observado sempre as suas colocações dentro das análises processuais que você faz... e eu percebi que você não faz um trabalho puramente mecânico, como a maior parte dos estagiários faz... VOCÊ PENSA O PROCESSO. Você tem a percepção que um bom advogado precisa ter para ir longe... e como você tem feito um trabalho de receber ordens, eu agora quero te colocar num outro posto. Você vai entrar numa nova fase da sua dinâmica de aprendizado e eu tenho absoluta certeza de que vai se dar bem, como tem sido desde que entrou no escritório. Você vai ficar responsável por um trabalho um pouco mais complexo, e de mais responsabilidade também... até então vc fazia suas análises e passava para que alguém tomasse uma decisão... a partir de segunda feira, você já vai poder tomar as decisões sozinho..."

Beethoven

"É um sentimento peculiar ver-se elogiado e, ao mesmo tempo, perceber a própria inferioridade, como eu percebo. Sempre encaro tais ocasiões como uma advertência para me esforçar mais na direção do objetivo inacessível que a arte e a natureza nos impuseram."

(Ludwig van Beethoven, em uma carta à Christine Gerhardi, extraído do livro de Lewis Lockwood "Beethoven: a música e a vida)

Gato de Cheshire

“Por favor, poderia me dizer (...) por que é que seu gato sorri desse jeito?”
“Ora, é um gato de Cheshire, (...) e é por isso.”
“Não sabia que todos os gatos de Cheshire sempre sorriam, na verdade, eu não sabia sequer que um gato pode sorrir.”
“Todos eles podem, (...) e a maioria deles o faz.”

(Lewis Carrol - Alice No País das Maravilhas)

Rondó da Liberdade

Rondó da Liberdade

É preciso não ter medo,
é preciso ter a coragem de dizer.

Há os que têm vocação para escravo,
mas há os escravos que se revoltam contra a escravidão.

Não ficar de joelhos,
que não é racional renunciar a ser livre.
Mesmo os escravos por vocação
devem ser obrigados a ser livres,
quando as algemas forem quebradas.

É preciso não ter medo,
é preciso ter a coragem de dizer.

O homem deve ser livre...
O amor é que não se detém ante nenhum obstáculo,
e pode mesmo existir quando não se é livre.
E no entanto ele é em si mesmo
a expressão mais elevada do que houver de mais livre
em todas as gamas do humano sentimento.

É preciso não ter medo,
é preciso ter a coragem de dizer.

Carlos Marighella

Ao Rèveillon

Ao Réveillon

Eis chegados o ômega e o alfa!
Uma era que se finda
Comemora-se o Ano Novo.
Roupas novas para corpos decrépitos
Uma mesa farta
Para alimentar uma existência vazia.
Promessas que não serão cumpridas.
Esperanças ridículas
Que não se realizarão...
Feliz Ano Novo
(que já começou antigo)

Valença, 31.12.2003
Gustavo Carneiro de Oliveira

Confiança

Confiança

Saber o que não se pode conhecer
Nunca duvidar do que não se pode provar
Sentir o sabor sem sequer degustar
Aceitar, mesmo sem nunca ver

Talvez seja mais forte que o amor
Aliás, a ele sempre antecede
Sentir sempre qual um vencedor
Por receber um presente que não se pede

É não ter certeza, e sorrir, ainda assim
Não esperar o que pode nunca chegar
Quando se esvai é preciso recomeçar
Mas todo recomeço exige um fim.

Itabuna, numa madrugada absolutamente cinza do outono de 2003.
Gustavo Carneiro de Oliveira, 17/04/2003

Amor

Amor

"Quand la mort est si belle, Il est doux de mourir.
V. Hugo"

Amemos! Quero de amor
Viver no teu coração!
Sofrer e amar essa dor
Que desmaia de paixão!
Na tu'alma, em teus encantos
E na tua palidez
E nos teus ardentes prantos
Suspirar de languidez!
Quero em teus lábio beber
Os teus amores do céu,
Quero em teu seio morrer
No enlevo do seio teu!
Quero viver d'esperança,
Quero tremer e sentir!
Na tua cheirosa trança
Quero sonhar e dormir!
Vem, anjo, minha donzela,
Minha'alma, meu coração!
Que noite, que noite bela!
Como é doce a viração!
E entre os suspiros do vento
Da noite ao mole frescor,
Quero viver um momento,
Morrer contigo de amor!

Álvares de Azevedo

Soneto Para o Estudante

Soneto Para o Estudante

O caminho é, muitas vezes, cansativo
A escalada é íngreme e penosa!
Oh, existência vil e tenebrosa!
O que tenho, que eu tenho e que eu não vivo?

O aprendiz não pode andar, então rasteja
Sofregamente agarra-se – as mãos feridas,
Calejadas, rotas – ao que chama vida.
Estar de pé! É tudo quanto almeja!

Não tem vida própria. Sofre e agoniza.
Como dói, aprendiz, olhar adiante
E ver, tão longe, seu sonho de infante...

Porém, corajoso, persegue o que precisa!
Atrás, o passado perde-se em memória.
Aprendi. No fim da estrada eis a vitória.

Para aqueles que pensaram ser fácil, mas não desistiram ao verem que estavam equivocados.

Gustavo Carneiro de Oliveira
16.11.2005

Patos

(originalmente publicado em)
Rio de Janeiro, domingo, 8 de abril de 2007

Quando nasci puseram as mãos sobe minha cabeça e disseram que eu deveria me sentir grato apenas por existir, e disseram que a minha existência era um fardo, e mais do que por existir, eu deveria ser grato por terem permitido que eu existisse. E assim fui crescendo, qual um filhote de cisne dentre tantos patos, sentindo a necessidade de provar que eu era um deles. Com a auto-estima no chão, eu precisava mostrar e sentir que eu não era um lixo! Então, inconsciente e inevitavelmente comecei a jogar sobre os meus próprios ombros cada bloco que soma peso ao mundo. Eu precisava daquilo! Eu precisava... E com o mundo nas costas, ainda me fizeram crer que não era o suficiente. Não foram poucas as vezes em que a culpa somava-se à baixa auto-estima, e a vontade de atirar tudo para o alto batia de frente com a necessidade de segurar cada vez mais apertado ao meu corpo todas as dores do universo.
Assim os anos foram passando e todo instante era dedicado a mostrar a eles que eu era capaz. Mas quando eles saíam e eu me via sozinho, tentava enxergar a minha própria capacidade. E as tentativas eram em vão. E eu sempre me via sozinho! E eu sempre duvidei de mim mesmo. Eles haviam conseguido... Os patos! Malditos patos que colocaram tantos espelhos em cada canto da minha sala, apenas para que eu recordasse a todo instante que era um fiasco! Não dava para fugir... Apenas o mundo nos meus ombros se tornava mais e mais pesado. E eu comecei a gostar disso, afinal, eu precisava pagar o preço por terem me permitido existir! E isso me fez cego...
Foi preciso que vida me colocasse de frente a um cisne para que eu o admirasse em toda a sua majestade! Sentisse ainda mais minha própria insignificância. Eu me via ainda mais rebaixado e amaldiçoei aquele encontro... Amaldiçoei o criador daquela ave esplêndida, que, pelo simples fato de existir, afrontava-me, avisando-me que eu era nada!
Eu estava cego! E quando me disseram que eu poderia ir além de onde eu havia alcançado - não tão longe - eu duvidei. E duvidei quando tentaram me revelar que já havia ido além. Para mim era pouco! O mundo nos meus ombros não era pesado o suficiente! Eu precisava ir mais longe! Como ir além, se eu estava cego? Como enxergar o caminho?
Então disseram que eu não era um pato! Disseram que dentre os cisnes, eu ainda estava além! E eu duvidei!
E até hoje ainda não sei como isso aconteceu. Não sei exatamente em que momento da minha vida, eu me conscientizei de que estava cego. Talvez ainda esteja! E como todos aqueles que foram privados de sentir suas vistas ofuscadas pela luminosidade, eu aprendi a enxergar pelos olhos dos outros! Foi surreal, assustador. Obriguei-me a olhar por outros olhos, para poder perceber aquilo que esconderam de mim a vida inteira: um cisne dentre patos! Um patinho feio e triste, que fora treinado para duvidar e crer sempre. Duvidar de si, e crer no dogma de que a vida é uma bênção! Qualquer tipo de vida. Obrigado, e perdão por terem me deixado existir...
Mas quando todos os olhos viam um cisne onde os meus próprios não viam sequer um pato, acreditei pela primeira vez que eu poderia estar errado... Então fui salvo!
Hoje não enxergo nada além do que enxerguei durante a minha vida inteira. Entretanto, aprendi! Nossos sentidos podem ser cruéis, e nos fazerem passar a vida inteira olhando sombras projetadas nas paredes da Caverna. Aprendi que somos idiotas ao acreditarmos sempre que nossa visão de mundo é a certa! E que, assim como podemos ver o mundo de forma turva, podemos ver a nós mesmos da mesma maneira! Aprendi que não precisamos carregar o Universo nas costas para superarmos nossas próprias fraquezas! E, sobretudo, aprendi que nunca precisamos provar nada a ninguém! Somos quem somos, e o que somos! E muitas vezes precisamos aprender a crer nos olhos alheios para que possamos acreditar na verdade que é a necessidade de deixarmos nossos ombros livres! O mundo já está suspenso por si mesmo!

As Primeiras Impressões

(originalmente publicado em)
Rio de Janeiro, domingo, 18 de março de 2007

Primeiro registro no Rio de Janeiro.
Texto escrito no Word, em 18 de março de 2007. 00:53.

É noite de sábado. E a seleção interminável de funk nos arredores da casa me faz sentir, não que estou no Rio de Janeiro, mas no Inferno. O que, sem dúvida é um comentário extremamente cruel, de minha parte, porquanto a última qualificação que posso dar aos últimos dias que se seguiram é infernal! Antes, estou vivendo após muito tempo (já tinha esquecido, inclusive), dias de uma paz interminável!
Primeiro, o susto! O pavor ante a revelação da realidade. O medo de viver pela metade mais uma vez... Confesso: não foi fácil! O desespero de achar que eu estava dando vida a fantasmas, a constatação de que tudo estava perfeito demais para ser real, a insegurança mais uma vez batendo à porta, e o pensamento turbado de que eu não conseguiria mais dar um passo além. Afinal, com quem eu estava falando?! Por quem eu estava tão disposto? Com quem agora eu conversava? E seus olhos lindos? Eu não os veria? E a mente rodopiava, enquanto lágrimas carregadas de morte rolavam pelo meu rosto. Quem estava ali?! Foi um golpe duro. Disso eu não tenho dúvidas. Mas a vida já havia sido tão travessa, que foi fácil driblar mais uma peça pregada! E então seguiu-se uma espécie de torpor, manifestação do superego sobre o id, com a ordem expressa de vencer os preconceitos! Sua voz rouca - e linda! - ainda me acalmava. A voz ainda estava lá! Devo admitir que muitos conceitos e preconceitos ainda perduram, mas esforço-me para derrubá-los a cada dia...
Então, mais um pequeno susto... Não mais em mim! Tudo já era assustadoramente adorável para que eu conseguisse me amedrontar ainda mais! Uma conversa rápida, tranqüila... "Mãe, pai, estou indo para o Rio de Janeiro..."
Uma tarde chuvosa, horas de espera, Sigur Rós e Beethoven sussurrando ao meu ouvido acalme-se, e assim o fiz. Então, algumas horas depois eu pisava no até então distante Rio de Janeiro.
Recepção calorosa, alguma tensão, logo desfeita, e a percepção de que as afinidades não iriam terminar após os olhos nos olhos... Não me peçam nomes, e rasguem todos os rótulos! Decidimos assim. Nosso contrato foi redigido! E que se danem as mentes pequenas e olhos míopes incapazes de lê-lo!
E hoje estou aqui, num sábado à noite, após uma longa caminhada por uma cidade outrora inatingível, na qual inesperadamente fui inserido! E as impressões... Ah, as impressões! Inevitáveis as comparações... Avenidas arborizadas, praias longas, mar azul, e lá em cima um Cristo - dizem que abençoando - mas não creio, talvez desejando um abraço, esperando com seus braços abertos até que nós, pequenos ali em baixo, percebamos a imensidade das coisas... E constatemos nossa diminuta condição!
Em cada canto, o novo e o antigo! O medo sempre à espreita. Nunca sabemos se estamos no caminho de um projétil desorientado que pode interromper em um segundo toda a magnífica percepção da beleza e do caos. Mas é inevitável esquecer o caos, quando a beleza se torna maior! Não se pode descrever se a cidade foi construída entre as pedras, ou se pedras simplesmente brotam do chão, emergindo de repente, e empurrando as casas e ruas para os cantos. A dor das favelas - as famigeradas favelas! - que crescem qual um organismo, um fungo, talvez, e que se alastra sem que ninguém conheça seu começo e seu fim, não retira delas o seu caráter de belo! Uma beleza triste, sorumbática, mas que não deixa de ser beleza! As ruas, tão pequenas vistas do alto, e prédios que mais parecem pecinhas de Lego, remontando talvez a minha infância, quando eu construía e destruía o que eu quisesse... Infância! É nela que penso quando ando pelas ruas deste bairro, a sensação de um lugar conhecido, no meu esquecido Espírito Santo, invade-me a cada esquina dobrada nesta Fábrica de Tijolos! O Sol, austero, castiga a cidade, condenando-nos (sim, sou parte daqui!) com os 40 graus. E eu achava ruim quando suava com os 32 graus habituais! Life is ironic! Como um moleque zombando de tudo, durmo no Oásis! Este cantinho sempre fresco, onde encontrei um refúgio, e onde todas as noites eu (re) descubro o que é a paz!
E assim, vão passando os dias, estranhamente fazendo-me crer que amanhã será ainda melhor que hoje (e tem sido!). Hoje até chove! E agora, aquele abraço que tanto desejei todos os dias, faz-se cada vez mais concreto! Carpe diem. Carpe noctem. Just carpe it.

Pergunte ao Pó

sábado, 3 de março de 2007

"Quanto às suas ansiedades por suas experiências de vida em geral e mulheres em particular, infelizmente é comum os autores terem menos experiências que outros homens e isso se deve ao fato incontestável que se você não pode estar em dois lugares ao mesmo tempo, Sr. Bandini. Ou você está diante da máquina de escrever ou está no mundo lá fora, tendo experiências. Portanto, como você precisa escrever e ter experiências sobre as quais escrever, você tem que aprender a fazer mais com menos. E fazer mais com menos é, em uma palavra, Sr. Bandini, o que significa escrever."

Trecho extraído do filme "Pergunte ao Pó" (Ask the Dust)


A cabeça dói um pouco e em meio ao turbilhão de sentimentos no qual me inseri nos últimos dias, eis que novamente espreita em minha janela o medo. Por mais que tente não olhar para trás, focando-me apenas no dia de amanhã, é cedo para que eu consiga. E me entristeço quando penso no que a vida fez de mim... Procuro manter a criança feliz sempre a brincar, mas não consigo simplesmente olvidar o adulto diligente que dela tomará conta, tentando impedi-la de ir longe demais...
Então torturo-me duplamente, por um lado, ante o medo do passo seguinte, o medo de novamente acreditar e no fim escorregar no cascalho que fará sangrar as feridas ainda não cicatrizadas. Por outro lado, o medo de não acreditar, de não dar um voto de confiança - apenas um - a quem de fato o merece, depois de ter desperdiçado tantos outros votos com tantas outras pessoas incapazes de valorizá-los... A mão que afaga é a mesma que apedreja? Mestre Guto, tão sábio, disse que sim, e eu, tolo (?) acreditei. Nunca tive porque não acreditar antes. E agora todo o meu desejo é alguém que me demonstre serem os "Versos Íntimos" vazios e desprovidos de sentido.
Beethoven, você está confuso! Acaso está incerto acerca do que sente? Isso não. Tenho absoluta certeza que não. O que sinto, o que almejo... nada disso é incerto. Incerto é apenas o dever ou não dever acreditar...
Por que a dúvida é tão cruel? Por que esta vontade súbita de chorar quando o sorriso sequer deu adeus aos meus lábios? São perguntas que vagam sem resposta, e nas quais tento não pensar mais, a fim de que não tirem de mim a minha única certeza: a de que te quero!

Salvador, 03 de março de 2007.
02:15, madrugada.

Rimas

(originalmente publicado em)
Salvador, sexta-feira, 2 de março de 2007

É alta madrugada, e o papel é marcado por alguns rabiscos. Minha mente atordoada não me permite concatenar as idéias de modo a tecer um soneto... As rimas não saem, ante a redundância de um casamento trêmulo de paixão com paixão, amor com amor, e sinto que o momento não é propício para as palavras. Nunca consegui escrever bem, sentindo-me feliz! E dada esta realidade, pouco falta para eu defenestrar esta caneta e este papel, quebrar minhas próprias mãos na certeza de que jamais precisarei empunhar novamente uma pena...
Mas, de súbito, vem à tona a idéia de um dia eu vir a aprender a casar felicidade e escrita. Então penso em todos os bilhetes apaixonados que ainda não lhe dediquei. Penso em cada recado não deixado no espelho, talvez não com um batom, mas porque não com um pincel hidrográfico? Penso no guardanapo da lanchonete, não carimbado com um simples "amo você", dobrado no bolso de sua camisa... Vejo então, que mesmo se me faltarem as palavras para um texto brilhante, sobrar-me-ão sentimentos, que de alguma forma precisarei exprimir. Então conservo inteiros os meus dedos, para no dia em que papel algum encontrar sobre si qualquer palavra, eu possa com eles, tocar sua pele macia, imprimindo - no silêncio da madrugada, talvez entrecortado pelo som abafado da nossa respiração - todas as palavras não escritas, mas registradas nas nossas lembranças daqueles momentos que somente a nós, e a ninguém mais, será permitido ler.

Salvador, 02 de março de 2007, às 3:27, madrugada.

A noite se apressa...

(originalmente publicado em)
Salvador, quarta-feira, 28 de fevereiro de 2007

Salvador, 28 de fevereiro de 2007.
01:25, madrugada.

A noite se apressa e corre longe, como se ao diminuir minhas horas de sono, impedisse-me de sonhar. Mas ingênua, não percebe quantas horas do dia os sonhos dançam à minha frente, quando meus olhos estão bem abertos. E durante estes sonhos o que é distante se aproxima com um simples "bip" anunciando a mensagem enrolada dentro da garrafa que navegou, em segundos, tantos mares, para trazer-me algum recado simples. Coisa pequena, como um beijo ou uma boa noite. E desta semente tão diminuta brotará a imensa árvore do sorriso...
Saudade presente a cada caractere digitado. E a mesma saudade se revela sob forma de um texto, o qual, devido aos avanços tecnológicos, chega às minhas mãos de forma não tão romântica quanto as longas cartas dos antigos jovens enamorados, inspirados nos anseios de Werther, mas não menos envolvente e arrebatadora, após uma fria transferência de arquivo. Ora, pouco importam as formas, os veículos! Se os mesmos sentimentos dos quais Charlotte foi objeto, inserem-se em mim através de uma tela de vidro! E isso me basta!
Basta para que meus olhos pesados se fechem nesta noite que, de modo furtivo, tenta roubar-me os sonhos, e se abram novamente a qualquer hora do dia seguinte, para testemunharem o fracasso desta bela apressada...
E nos meus ouvidos, a voz doce da Sarah Brightman quase não é captada, pois ecoa ainda na minha cabeça seus dizeres tão singelos: "não sei porque, mas eu te quero."

Saudade

(originalmente publicado em)
Salvador, terça-feira, 27 de fevereiro de 2007

Saudade

Pergunto-me como posso sentir saudade suas.... Saudade do que jamais vivemos juntos, das coisas que jamais experimentamos.
Saudade de nunca ter ido com você ao supermercado, de nunca ter brigado pelo sabor do sorvete, pela marca da pasta de dente, pelo rótulo do vinho. Saudade de nunca ter lido com você ao meu lado na cama, de nunca ter escolhido com você o filme que iríamos ver, ou restaurante no qual jantaríamos e beberíamos depois. Saudade de nunca ter sentado com você no sofá da sala para conversar sobre a viagem de fim de ano, de nunca ter acordado do seu lado num sábado de manhã, levantado para tomar café na cozinha, e voltado para cama. Saudade de não ter a chance de ler o jornal de domingo com você e de depois sair para correr no parque. Saudade de nunca ter decorado com você a nossa casa, de nunca ter brigado com você por ciúmes, de nunca ter feito as pazes apaixonadamente na cama, de nunca ter comemorado nosso aniversário. Saudade de nunca ter voltado para casa e encontrado você me esperando na sala, de nunca ter visto você chorar, de nunca ter tido a oportunidade de entender porque você gosta de incensos. Saudade de não ver você envelhecer, de nunca ter conhecido sua família ou as pessoas que marcaram sua vida. Saudade de nunca ter mexido no seu rosto em público, de nunca ter beijado sua boca em público, de nunca ter tocado seu cabelo em público. Saudade de nunca ter ouvido você dizer que me ama; de não poder ser quem você gostaria que eu fosse.
Mas, principalmente, saudade de nunca ter olhado dentro dos seus olhos naquela noite que você gozou. Porque teria sido nessa hora, no momento em que meu corpo e meus sentidos fariam o abençoado trabalho de conduzir você, doce e apaixonadamente, ao melhor lugar do mundo, que eu poderia ver muito de perto - a ponto de poder tocar se quisesse - sua alma.
E assim, quem sabe, me seria dada a preciosa chance de escrever nossa história - talvez uma das mais belas histórias de amor jamais escritas - e por enquanto...

Edu, RJ 27/02/2007 - manhã

Mudanças

Salvador, 27 de fevereiro de 2007, à 00:28.
Texto escrito em folha de caderno, postado ao amanhecer.

Às vezes o mundo tem um modo estranho de nos revelar que estamos vivos. Primeiro Carnaval na terra do acarajé, e confesso uma certa decepção ao constatar a realidade da festa. Esperei mais! Não que não tivesse sido divertido, pelo contrário, a mistura de ritmos, cores e povos, inerente a esta Bahia maravilhosa, permaneceu a cada dia, fazendo-me reconhecer minha própria identidade. Capixabaiano. Nascimento e convívio. Infância e vida adulta. Amor e amor! Dancei, revi amigos, matei saudades...
Percebi sangue corrente em minhas veias. Inclusive o sangue vertido dos ferimentos no meu rosto, nas minhas mãos... Uma surpresa desagradável, e ao mesmo tempo... Reveladora? Não. Não é bem esse o termo correto... Confirmativa? Isso! Uma surpresa capaz de confirmar que se eu não tivesse mais levantado daquele asfalto, eu teria perdido boas experiências. E por alguns momentos eu realmente desejei não ter levantado...
E então eu teria perdido a oportunidade de sentir o gosto confortante de um abraço (e algumas pessoas tolas acreditam que não são importantes para outras), não poderia ouvi-la falando com voz mansa (as ofensas mútuas já estavam me fazendo esquecer que ela possuía esta capacidade), não saberia mais como é a felicidade de receber uma ligação no meio da madrugada, com o único fito de dar "boa noite", com sua voz rouca - e linda!
Percebo então que o medo volta. E sinto-me satisfeito com este medo... Li em algum lugar que um homem sem medo é um homem sem esperanças... E eu voltei a temer! Fiz bem ao levantar daquele asfalto, ao esfregar os ferimentos com um papel embolado nas mãos sem sentir qualquer dor, ao ver um documento perdido no meu bolso, sem enxergar qualquer titular ao meu lado, sentindo por um longo segundo um calafrio descer pela minha espinha... No final um olho roxo é um preço muito baixo!
E eu pagaria outra vez, se fosse necessário!
E agora aguardo os dias darem adeus para ver o que a vida me reserva. Enquanto isso, vou seguindo - não mais tão normal - pois agora tenho trazido comigo um sorriso... Boa noite.