quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Olho por olho. E que tenham piedade de nossa alma

Estaria mentido se eu dissesse que a brandura das penas para um menor delinquente não me incomoda. Estaria mentindo se dissesse que não fico revoltado com o número de policiais mortos por criminosos pelo simples fato de serem policiais. Estaria mentindo se dissesse que vejo com indiferença a movimentação exaltada de alguns defensores dos Direitos Humanos quando um criminoso é vítima do sistema penal ou da ação de "justiceiros", e do modo silente e resignado com que estes mesmos defensores se ausentam quando um crime é praticado contra um trabalhador honesto. Estaria mentindo se dissesse que sou contrário à redução da maioridade penal.

No entanto, nada disso significa que eu vejo a redução da maioridade penal como uma solução viável no Brasil; que eu seja contrário à defesa dos Direitos Humanos; que eu seja indiferente à corrupção que existe dentre muitos policiais; que eu não creia que a injustiça social não transforma diariamente jovens em criminosos.

Vi muitos posicionamentos exaltados acerca do caso Eduardo Felipe Santos Victor, menor, 17 anos, morto por uma ação policial no Morro da Providência, na última semana de setembro, após os agentes da PM terem "plantado" uma arma em sua mão, para simularem uma legitima defesa, alegando que o menor teria atirado contra eles e que, somente por tal razão, eles teriam atirado no menor.

Vejo um sem-número de pessoas chocadas com a punição iminente aos policiais, alegando que o rapaz morto era bandido e que isto a mídia não mostra. A ideia de que o país tenha um criminoso a menos não me desagrada. Não serei hipócrita para dizer que sinto vontade de passar a mão na cabeça de pequenos delinquentes que circundam a região da Central do Brasil, a Avenida Rio Branco, a orla de Copacabana... O que também não me impede de vê-los, na maioria das vezes, como vítimas de um sistema excludente, que marginaliza o pobre, o preto ou o favelado. Não é este o cerne do debate aqui levantado.

Vejo agora a última bestificação máxima da raça humana, que se revelou com a cachina de Costa Barros, neste último sábado, na qual cinco jovens, pobres, negros, favelados, dois com passagem pela polícia, foram brutalmente assassinados com mais de cem tiros disparados contra o carro no qual se encontravam. E mantendo o posicionamento torpe de que dois deles tinham passagem pela polícia e que, por tal motivo, a atrocidade se justificaria, a sociedade desregrada busca chancelar a malfadada ação policial.

O que me impressiona é este costume que as pessoas ainda insistem em manter, de se nivelarem pelo patamar mais ínfimo da existência, justificando um mau ato por outro. Como se ambos se anulassem mutuamente e a prática de um passasse a ser validada pela imoralidade do outro.

Vi muitos levantarem dedos em riste, apregoando que a mídia insiste em mostrar os policiais cometerem um delito ao violarem a cena de um crime, mas que esta mesma mídia insiste em ocultar o fato de o menor Eduardo Felipe possuía um rol extenso de acusações, que inclui roubo, porte ilegal de arma e envolvimento com o tráfico. Aqui preciso abrir um parêntese para mencionar novamente a hipocrisia que nos rodeia: o que seria "envolvimento" com o tráfico? O preto favelado que transporta papelotes de cocaína é um envolvido. A patricinha da Zona Sul, branca e rica, que sobe o morro para comprar essa mesma cocaína não é uma envolvida? Hum, sei... Parêntese fechado. Outro parêntese: o que é "passagem pela polícia"? É ser fichado, sem ter contra si uma sentença transitada em julgado? É ter um registro de ocorrência contra si? Grande artistas idolatrados por nossa elite intelectual têm passagem pela polícia. Só para constar.

O fato de Eduardo Felipe ser ou não um delinquente confere ou tira a chancela do ato dos policiais? O fato de dois dos cinco jovens assassinados terem passagem pela polícia (que coincidência, por tráfico!) permite que sejam todos mortos por policiais ao retornarem para suas casas depois de um piquenique num parque? A sociedade que fecha os olhos e respira aliviada no caso do Eduardo, porque, ufa!, há menos bandido no mundo, parece não se dar conta de que há menos um criminoso, mas há mais quatro! No caso da Chacina de Costa Barros, há menos cinco jovens, mas, há outros quatro! Quatro policiais que agiram com uma conduta reprovável ao plantarem uma prova falsa, conduta que deve ser punida, sim, e para a qual não há justificativa! Quatro outros policiais que metralharam um carro, cometendo um crime bárbaro, sem nenhuma possibilidade de ser minimamente explicado. Na matemática do crime, a sociedade parece não se dar conta de que houve um acréscimo de oito criminosos em vez de um decréscimo de um, além de outros dois "com passagem". E que nesta operação de cálculo simples, sobram cinco!

Até quando essa gente vai continuar se nivelando pela escória? Até quando nossa sociedade vai achar justa a prática um crime absurdo como plantar uma falsa prova para justificar um assassinato, independentemente da conduta pregressa da vítima? Até quando a sociedade vai se calar diante de uma chacina na favela pelo fato de ter sido na favela?

Não me pergunte se tenho pena de menor delinquente e não me peça para levá-lo para casa. E por isto mesmo, não me peça para aplaudir os oito policiais que, em nada diferem daqueles em quem atiraram. A não ser pelo fato de terem a chancela que você lhes confere. Seu mandante!

Por que não?

Sobre o impeachment de Presidente Dilma, ainda não tenho uma opinião formada e ando estudando o assunto para tentar entendê-lo melhor.

Mas, há dois argumentos contrários que me incomodam absurdamente! O primeiro é o que diz que, por não ter havido até o momento um precedente, seja na esfera federal, seja na estadual, seja na municipal, não deverá ser este o primeiro caso de impeachment por rejeição de contas. Ora, então estamos fadados a nunca termos um processo do tipo porque não houve um primeiro?! Alguém tem que abrir a fila, não?! A espera por um precedente simplesmente anula toda e qualquer possibilidade de que algum dia um ato venha ser praticado simplesmente por nunca ter ocorrido antes. Isto me parece um tipo de inércia prejudicial a todo um sistema jurídico, que cria - este sim - um perigoso precedente: o de que eventuais irregularidades possam ser praticadas sem punição simplesmente por se tratar do primeiro caso.

Outro argumento que me incomoda absurdamente é o que alega que o impeachment mancharia a imagem do país perante investidores externos, fomentando uma crise político-econômica mais grave que a atual. Corolária a este argumento temos a seguinte assertiva: se sair a Presidente, entrará um pior em seu lugar.

Francamente, tal afirmação reflete a passividade de um povo, que admite o ingresso de um incompetente no cargo máximo de Chefe do Estado sem nada fazer para mudar a realidade. Acaso a fiscalização tem prazo de validade? A deposição de uma Presidente impede a deposição de outros posteriores até que algum finalmente dê o exemplo, portando-se adequadamente? Sobre manchar a imagem do país, que tipo de hipocrisia é esta que admite a prática de irregularidades na prestação de contas públicas sob a falácia de que desmascará-la e puni-la acarretará em prejuízo à imagem? Não seria isto um incentivo a práticas escusas mantidas no anonimato? Advindo uma realidade pior que a atual, nada se fará para mudá-la até transformar o país num lugar sério, ao qual se deva dar credibilidade?

A mim não convencem estes argumentos. A Constituição Federal prevê, em seu artigo 85, V e VI, ser crime de responsabilidade do Presidente da República os atos praticados contra a probidade administrativa e contra a lei orçamentária. E prevê, em seu artigo 52, I, ter o Senado Federal competência para processar e julgar o Presidente e o Vice-presidente por crime de responsabilidade. Sendo assim, deixar de fazê-lo, depois de apuradas as irregularidades, seria rasgar e atirar na lixeira a Constituição, mantendo um eterno sistema de nivelação pelo patamar mais baixo da dignidade.


Como expus lá em cima, não tenho um estudo aprofundado do tema e minha opinião não está formada sobre o assunto. Não conheço a fundo a legislação para saber quais as brechas que possibilitam o não-impeachment. Seja como for, tenho conhecimento lógico suficiente para a entender que os argumentos que tento desconstruir são frágeis demais e se destroem sozinhos.

terça-feira, 24 de novembro de 2015

Doce

Doce

Era para ser doce.
Mas, hoje, chafurda na lama.
Porque o que valia
agora não mais vale,
já que o que Vale
despovoa a Povoação.
E o que era Regência,
não rege mais uma gota.
Enquanto Mariana chora.


(23/11/2015)

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

O mar de lama e o mar da ignorância

Tem uma galera compartilhando o Decreto nº 8.572/15, assinado pela Presidente Dilma Rousseff, no dia 13/11/2015, imediatamente depois do desastre que atingiu a cidade de Mariana, em MG, no qual uma barragem da mineradora Samarco se rompeu e ocasionou um mar de lama (que, infelizmente, não é apenas em sentido figurativo). O trágico acidente destruiu famílias, cidades e ecossistemas inteiros e a responsabilidade pela ocorrência está sendo apurada para ser atribuída à Vale do Rio Doce e às empresas envolvidas. Segue a íntegra do texto:

"DECRETO Nº 8.572, DE 13 DE NOVEMBRO DE 2015
Altera o Decreto nº 5.113, de 22 de junho de 2004, que regulamenta o art. 20, inciso XVI, da Lei nº 8.036, de 11 de maio de 1990, que dispõe sobre o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço - FGTS.
A PRESIDENTA DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere art. 84, caput, inciso IV, da Constituição, e tendo em vista o disposto no art. 20, caput, inciso XVI, da Lei nº 8.036, de 11 de maio de 1990,
DECRETA:
Art. 1º  O Decreto nº 5.113, de 22 de junho de 2004, passa a vigorar com as seguintes alterações:
“Art. 2º  (...)
Parágrafo único.  Para fins do disposto no inciso XVI do caput do art. 20 da Lei nº 8.036, de 11 de maio de 1990, considera-se também como natural o desastre decorrente do rompimento ou colapso de barragens que ocasione movimento de massa, com danos a unidades residenciais.” (NR)
Art. 2º  Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 13 de novembro de 2015; 194º da Independência e 127º da República.
DILMA ROUSSEFF
Miguel Rossetto
Gilberto Magalhães Occhi"

Ocorre que este Decreto acima aludido alterou a redação de outro Decreto, o de nº 5.113/04 e, como se viu no texto, atribuiu o caráter de "natural" ao desastre decorrente de rompimento ou colapso de barragem. E por conta disto, como costuma acontecer no Tribunal das Redes Sociais, a galera que o vem compartilhando - sem se aprofundar no tema -, vem demonstrando uma total indignação diante da alteração. Alegam, equivocadamente, que esta modificação, é uma manobra presidencial para extinguir a responsabilidade das empresas envolvidas no desastre, que agora tem caráter de desastre natural.

Não, facebookers, não é disto que se trata! Por favor, não disseminem a falta de conhecimento! O Decreto nº 5.113/04, cuja redação foi alterada pelo Decreto publicado semana passada, regulamenta o artigo 20, inciso XVI, da Lei nº 8.036, de 11 de maio de 1990, que dispõe sobre o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço - FGTS. E, nesta regulamentação, prevê situações, normalmente urgentes, dentro das quais - justamente em virtude da urgência e da necessidade - pode-se antecipar  saque do FGTS, ainda que não se tenha rescindido um contrato de trabalho. 

Assim, o decreto assinado semana passada pela Presidente Dilma, que acrescentou este novo parágrafo único ao artigo 2º do Decreto nº 5.113/04, ampliou as circunstâncias possibilitadoras de saque antecipado do FGTS, uma vez que a Lei nº 8.036/90, em seu artigo 20, XVI, diz:

"Art. 20. A conta vinculada do trabalhador no FGTS poderá ser movimentada nas seguintes situações:
(...)
XVI - necessidade pessoal, cuja urgência e gravidade decorra de DESASTRE NATURAL, conforme disposto em regulamento (...)" (o grifo é meu)
Sendo, assim, conforme diz o texto do parágrafo único do artigo 2º do Decreto nº 5.113/04, a alteração diz respeito tão somente aos fins previstos no artigo 20, XVI, da Lei nº 8.036/90. Ou seja, apenas PARA FINS DE ANTECIPAÇÃO DE SAQUE DO FGTS.

Sem essa de que o Governo está incentivando a impunidade, sem esta de que está alterando a responsabilidade pelo crime ambiental praticado, sem essa de compartilhar informações pela metade e induzir o pensamento medíocre fundamentado em coisa alguma. Porque assim como ruiu a barragem de Mariana, por sua pouca sustentação, assim também ruirão os pensamentos mal sustentados.

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Imposição da iconoclastia

Quando o objetivo é eliminar preconceitos, o processo de desconstrução é muitas vezes - senão sempre - bem-vindo.

No entanto, como em qualquer forma de quebra de paradigmas, é preciso ser parcimonioso, ponderado no julgamento do que deve ser extirpado, por ser fator de alimentação dos preconceitos contra os quais se está lutando, e o que consiste apenas em conceitos, atitudes, pensamentos ou ideias, desprovidos de quaisquer julgamentos de valor.

Do contrário, esta busca indiscriminada pela iconoclastia pode se revelar uma imposição de um ponto de vista, uma ditadura disfarçada, resguardada pelo falso discurso de revisão axiológica que nada mais faz senão  inverter polos, trazendo para o oprimido o discurso do opressor, e para o suposto opressor o papel do oprimido.

Bom senso é fundamental. Nem todo muro precisa ser derrubado, porque contenção nem sempre é prisão. Isto é democrático: reconhecer que o outro pode querer ser diferente de você sem que para o outro aquilo que você é signifique algo menor, pior ou inferior.

Desencontros ou Acomodação Nossa de Cada Dia

Surpreende-me quando as pessoas se encontram em um nível tal de insatisfação com um sistema, mas vivem tão fechadas no Caverna do mito platônico, que não aceitam a busca por uma fórmula alternativa.

Tempos atrás, duas pessoas criticavam o sistema cruel de interesses por trás da vida de paquera e da formação de um relacionamento.

Um discurso apocalíptico e generalista, em padrões aterrorizantes de falta de perspectiva.

Algo próximo disto, do lado dela: "Nós, mulheres, passamos a vida nos produzindo para os homens e lutando por estabilidade financeira, para não sermos deles dependentes. Quando temos a tal estabilidade, não somos mais garotinhas novinhas e precisamos nos produzir mais e mais para compensarmos a ação do tempo sobre nosso corpo. Quando eles querem filhos, de quem nós nem sempre podemos cuidar, não conseguimos satisfazer seu interesse de formar família. Quando aceitamos, ficamos mais e mais acabadas e temos que abrir mão, muitas vezes, da nossa carreira, perdendo a estabilidade financeira. E eles, invariavelmente, nos mantém dependentes, de forma que não temos escolha. E eles também perdem por nós o interesse, indo procurar na rua por garotinhas novinhas e mais atraentes que nós."

Algo próximo disto, do lado dele: "As mulheres se queixam de que não querem ser dependentes dos homens. Mas, quando se interessam por um cara, procuram logo saber sua situação financeira, se tem carro, se mora em casa própria, quanto ganha... Nenhuma fica à vontade para querer namorar um pé-rapado. Nós passamos a vida inteira trabalhando para conseguirmos uma vida social estável e, com isto, chamarmos atenção das mulheres, que estão sempre ocupadas demais gastando com roupas e maquiagens, segundo elas, para nos agradar. O cara tem que ter dinheiro para bancar isto. Homem não gosta de mulher feia. Mas, não é agradável também ter uma mulher que dependa da gente o tempo inteiro!"

A unanimidade no discurso de ambos: "É tudo um jogo de interesse. O sistema é cruel e no fim, todos se queixam, porque é isso. Relacionamentos sexuais e afetivos são isso e nascem fadados ao fracasso!"

É quando alguém timidamente intervém na conversa e sugere: "Não seria mais fácil se interessar apenas por quem se gosta e não por quem pode bancar ou quem aparenta estar mais bem vestida?"

As reações são ainda mais aterrorizantes: "Lá vem a pessoa sonhadora e idealista! Acha que vamos viver pulando de galho em galho? Sem ninguém estável? Trocando de relacionamento como quem troca de roupa? Tendo vários relacionamentos simultâneos, como essa modinha que vem aparecendo aí agora? Sentimento não funciona, não; isso é papo furado!"

Pois é, caros amigos. A busca por alternativas acaba por soar sempre como uma proposta inconcebível quando estamos diante de uma realidade que se impõe a pessoas que preferem se acomodar na infelicidade.

Não, obrigado. Quando pego um ônibus errado, prefiro descer até achar meu caminho correto. Não importa quantas conduções tenha que pegar de novo.

Reflexões de um acidentado

(originalmente publicado em meu perfil no Facebook, após ter sido atropelado em agosto de 2015)
Engraçado como umas palavras têm peso maior que outras num relato. E não, isso não é, de forma alguma uma crítica negativa, tampouco significa que eu esteja aborrecido. Mas, apenas uma constatação de fato que me põe a pensar sobre o uso que damos às palavras.
Percebo que as pessoas parecem nunca ler a frase "estou bem". Ontem, sofri um acidente, um atropelamento, e achei por bem informar à família, aos amigos, aos colegas de trabalho, que havia acontecido. Mas, minha maior preocupação, antes de tudo, era deixar claro que estava fora de perigo. Estava informando o fato, mas sem querer preocupar quem quer que fosse. Relatei o acidente e escrevi várias vezes "não se preocupem, está tudo bem". Mas, a sensação que tive é que ninguém lê esta parte. Repito: não estou criticando. Recebi imediatamente telefonemas desesperados de pessoas preocupadas com meu estado. Nervosas, angustiadas, tensas, que me perguntavam a cada segundo se eu estava mesmo bem e por mais que eu dissesse que sim, pareciam não ouvir e perguntavam de novo e de novo e de novo.
Isso me pôs a pensar em duas coisas: a primeira, vale a pena informar má notícia apenas por informar? Apenas para que saibam que algo aconteceu, mas que não necessariamente você esteja nas últimas? Não é a primeira vez que isto acontece. Outra vez fui assaltado e relatei da mesma forma, enfatizando o "estou bem", mas as reações eram sempre de quem só lia "assalto" e "mão armada".
A segunda, e talvez mais importante das coisas em que pensei, é o cuidado que devemos ter com as palavras que escolhemos. Parece-me que as pessoas tendem a fixar mais as palavras negativas que as positivas. "Acidente", "ferimento", "atropelado", "assalto" têm um peso maior na percepção das pessoas que "estou bem", "foi leve", "não preocupar".
Puxo este gancho para um outro assunto que debatia com uns amigos ainda ontem, cerca de uma hora antes de ter sido atropelado: a sinceridade.
Algumas pessoas se sentem vítimas por não serem compreendidas quando decidem ser "sinceras demais". Não são poucos os relatos que vejo de gente se afirmando muito sincera e de que isso costuma ser encarado como um defeito por muitos que não compreendem a sua "qualidade de falar sempre a verdade".
Em minha singela opinião, acho que a sinceridade também precisa ser dosada. Não a verdade a ser dita, mas como se diz.
Muitas vezes, grosseria e estupidez são distribuídas sob a alegação de "excesso de sinceridade". E, sinceramente (com o perdão pelo trocadilho), acho isso estúpido e grosseiro. Uma mesma verdade pode ser dita de várias formas diferentes e é necessário haver uma dosagem nas palavras e nos tons escolhidos para dizê-la. A vida nos coloca algumas vezes em situações em que a escolha é impossível. Não há opção para dizermos algo a alguém de forma que a pessoa não se doa pelo que foi dito. Mas, sempre haverá a opção para que ela não se doa pela forma como o foi.
Sendo assim, pesemos a intensidade das palavras antes de falarmos algo a alguém, acreditando-nos no dever de sermos honestos. Se não tiver opção, fale algo que você não gostaria de ouvir. Mas, jamais fale de uma forma que você não gostaria de ouvir.
Pensarei nisto se, em algum momento futuro, eu me sentir na necessidade de relatar algum outro fato ruim que, porventura, venha a me acometer.

Pequena fábula sobre o Lobo em pele de Cordeiro ou sobre a Hipocrisia disfarçada de Gentileza.

Era uma vez uma mocinha. Feia, desenxabida, sem noção. Não, não é sobre seus atributos físicos que iremos falar.

Era uma vez uma senhorinha.  Frágil, franzina, mas resistente. Não, não é sobre sua persistência que e trata este pequeno conto.

Mais parece um Hai Kai, tão diminuto que é.

O ônibus estava lotado quando a senhorinha entrou. A mocinha viajava bem acomodada, sentada em sua poltrona, provavelmente conquistada com unhas e dentes no primeiro ponto, de onde o ônibus ainda partiu quase vazio. A senhorinha, contorcendo-se entre os passageiros de pé, estacou no espaço em que cabia naquele corredor abarrotado, ao lado da mocinha feia e sem noção.

Os olhos das duas se cruzaram. Foi um rápido momento de confronto, quase uma acareação, entre aquelas duas desconhecidas. Quase instantaneamente, a mocinha baixou seu olhar para seu celular e continuou digitando freneticamente mensagens para alguém em algum lugar do planeta. A senhorinha seguia resoluta, altiva, orgulhosa por segurar a barra amarela, resistindo bravamente à força da gravidade em cada curva fechada que aquele ônibus cheio desenhava.

Assim, seguiram por cerca de quarenta minutos. Vez ou outra a mocinha levantava os olhos da tela do seu aparelho e chocava seu olhar com o da senhora que ali jazia de pé naquele Navio Negreiro que Castro Alves não ousou descrever.

Até que a gentileza se instaurou:

- Sente-se aqui, senhora - disse a mocinha já levantando, cedendo seu lugar, depois de viajar por cerca de quarenta minutos (faltava menos de quinze para a condução chegar ao seu destino final).

- Não, filha, obrigado. Logo vou descer - respondeu a senhorinha com sua voz delgada.

A mocinha mal conseguiu ouvir de longe suas últimas palavras, pois já descia os degraus daquele ônibus no ponto em que solicitara, segundos antes de ser acometida por aquele gesto de solicitude.

É. E ao final, não pareceu um Hai Kai.

Descrença


(originalmente publicado como postagem no meu perfil do Facebook em 11 de novembro de 2015)

Faz-me falta o não-pensar. O pequeno interruptor de desligar o raciocínio lógico, coerente, irritantemente analítico.

Não preciso de mais emoção. Percebi, finalmente, que tenho de sobra razão e emoção e que as duas coisas não se excluem mutuamente como sempre achei que fosse (achismo este que sempre me conduziu a um muro instransponível todas as vezes em que tentei explicar este tipo de dualidade que trago desde tempos atrás).

Não, não é emoção que me falta. É fé. Esta descrença que me acompanha, sentada sobre os meus ombros, começa a pesar. Esta sim, perde lugar para o pensamento e a racionalidade. E eu queria não pensar mais. Quero poder apenas fechar os olhos e pular de cabeça, sem pensar na intensidade da colisão, mas não necessariamente deixando de sentir o vento no rosto. Apenas acreditando que o fim da linha seria tenro. Sem precisar sopesar fatores e números. Sem precisar ver. Apenas crer. Que sim. Porque sim. Ter fé para aceitar o não-compreensível, para compreender o não-explicável. Para não ter que pensar. Apenas deixar fluir. E sorrir por levar uma certeza calcada sobre nada.

A Nossa Cama

A nossa cama

Corre a noite... Nossa cama testemunha
Meu suor, teu gemido, nosso ardor!
É quando somos bichos, meu amor!
Ofegantes... carne, dente, corpo, unha.

Madrugada. Entorpecidos de cansaço,
deitamos. Nossa cama tão macia!
Felizes, juntos, ao final de mais um dia
Enlevamo-nos, perdidos num abraço...

Dorme, amor meu, dorme comigo
Trago-te em sonhos... (não ouses vir, aurora!)
Mas, eis que a manhã nasce e o sol levanta!

Olho teus olhos. Tua luz! É tanta... Tanta!
E é nesta alcova que minh'alma se enamora,
É nossa cama, nosso reino, nosso abrigo.

(13.11.2015)

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Carta ao jurista de amanhã

Carta ao jurista de amanhã

Havia sonhos.
Não havia comida. Não havia ganhos.
Mas, havia esperança.

O futuro traria a beleza
ausente naquele presente
deixado para trás.

Havia sonhos.
Não havia dinheiro. Pouco importava.
Haveria de vir com o tempo.
Mas, havia anseios.

Aquele futuro fez-se hoje.
E não há mais respeito.

Havia perspectiva.
Havia sonhos.
Hoje, só há papéis.

Pilhas de folhas carimbadas.
Pastas amassadas.
Rascunhos atirados ao lixo.

Atirados ao lixo.
Como o foram os sonhos
que há muito deixaram de existir.

Rio de Janeiro, 07/10/2015.

quarta-feira, 17 de junho de 2015

Todo apoio à Viviany Beleboni

(Originalmente publicado como postagem no Facebook, em 09/06/2015)

Nos últimos três dias, tenho visto meu mural no Facebook ser bombardeado com imagens da transexual Viviany Beleboni que chocou a sociedade ao aparecer “crucificada” num carro alegórico na 19ª Parada do Orgulho LGBT de São Paulo. Vindo de todos os lados, já que estou cercado de contatos cristãos e contatos homossexuais, com amigos de ambos os lados, vejo postagens imensas execrando a atitude da transexual e postagens imensas elogiando-a.

Sou ateu declarado há muitos anos e não nutro qualquer simpatia pela religião cristã (aqui na acepção de instituto social), o que não me impede de respeitar quem a segue – até porque venho de uma família cristã e fui educado dentro dos seus valores. Valores como tolerância, amor e respeito, que trago em mim como princípios e dos quais não abro mão. Ainda que não siga uma religião, admiro a figura de Jesus Cristo, aqui tomado em sua participação histórica e não mítica. Jesus Cristo foi um homem avançado demais para seu tempo, chocando a sociedade em que viveu ao se misturar com prostitutas e leprosos e ao pregar a igualdade entre todos. Hoje seria tido como baderneiro, talvez, por propor o fim de oligarquias em prol de um mundo mais igualitário (qualquer semelhança com o cenário político atual no Brasil é mera coincidência?). Sim, sou fã desse sujeito aí, o Cristo, que deu sua cara a tapa – ofereceu mesmo a outra face – e acabou pagando por isto, morrendo na cruz por interesses políticos de sua época.

Na mitologia, entretanto, o jogo é outro. O revolucionário deixou de ser uma ameaça à sociedade institucionalizada e passou a ser um mártir: o Agnus Dei, cordeiro de Deus que veio para tirar os pecados do mundo, oferecendo-se em sacrifício até ressuscitar ao terceiro dia. Como cético e ateu, acho toda esta história uma grande balela! No entanto, é preciso saber ler nas entrelinhas e extrair toda a beleza das metáforas nela contidas.

Chegamos à Viviany Belebony. Muito já se disse acerca da crucificação que é a vida de uma transexual numa sociedade conservadora e machista como a nossa. E aqui vou me furtar de reiterar argumentos tantas vezes postos. Mas, apenas para ilustrar as ponderações que se seguirão, pensemos como deve ser angustiante ter uma identificação de gênero diversa do corpo em que se nasceu, devendo-se adequar a uma sociedade que lhe impõe regras sobre quem é e quem deve ser.

Pensemos como deve ser difícil crescer sendo chamado por um nome que não corresponde à própria identificação de gênero, sofrendo abusos e preconceitos de todos os tipos, desde a adaptação à vida escolar. Para você, que tem sua mente e seu corpo bem alinhados, e para se decidir entre o banheiro masculino e o feminino nunca demandou mais que ligar o piloto automático e ir, já parou para pensar como deve ser triste não saber qual deles usar? Se um gesto tão simples como o de decidir entrar numa porta escrito “ELA” ou “ELE” já causa tanto conflito, imagine-se lutando por ingressar num mercado de trabalho que te exclui por ter um nome no registro condizente com um gênero que não corresponde à sua imagem. Imagine-se tendo que se contentar com subempregos, e na maioria das vezes vivendo à margem de uma sociedade que te exclui, culminando tantas e tantas vezes em sua prostituição. Não precisamos ir além, mas ainda há quem chame a sexualidade de opção. Alguém optaria mesmo por um caminho como este?

A Parada do Orgulho LGBT tem por finalidade precípua mostrar à sociedade que homossexuais, transexuais, bissexuais são cidadãos e titulares de direitos como qualquer um. E para mostrar o óbvio a uma sociedade que não quer enxergar é preciso fazer mais. É preciso realmente aparecer. E aí, tenho visto muita gente dizendo que Viviany não quis protestar, quis apenas aparecer! Não quis protestar, quis apenas chamar atenção! É óbvio que ela quis aparecer e quis chamar atenção! Eu quereria! Você não?! Porque é preciso aparecer! Porque é preciso chamar atenção e dizer ao mundo: Sou transexual e estou aqui!

No entanto, mais que criticarem Viviany por querer aparecer, vejo críticas acerca do suposto “desrespeito à religião alheia”. Ora, francamente, a religião alheia passou centenas de anos desrespeitando, esbulhando, matando, roubando e ficamos todos calados. “A religião é certa, errados são os homens que estão nelas”. Ok, é um argumento válido. E prefiro não seguir adiante com esta ideia do olho por olho, dente por dente.

A Bíblia diz que não se devem idolatrar uma imagem. Mas, o que se vê é exatamente isto. Uma sociedade chocada por um ato iconoclasta que, em nada afrontou a religião como princípio, mas tão somente fez uso de uma imagem. Imagem, aliás, que não deveria ser cultuada! Está lá, em algum versículo do Pentateuco...

Se Viviany chocou o mundo, talvez o problema esteja mais na cabeça de quem se chocou do que em sua aparição crucificada, simbologia mais que bela e poética do que é o retrato da vida de transexuais, travestis, gays numa sociedade conservadora: um calvário.

Vou além na minha heresia. Viviany – a trans: transexual e transgressora – fez o que outros não tiveram coragem de fazer: deu a cara a tapa e se ofereceu em sacrifício, para representar toda uma categoria. Agora, paga por isto sofrendo perseguições e julgamentos, como se sua vida antes da 19ª Parada Gay já fosse fácil demais. Quem foi mesmo que fez isto antes? Ah, sim! Ele, o Cordeiro.

Não, eu não acho que Viviany passou dos limites. Não, eu não acho que Viviany desrespeitou a religião de ninguém. Não, eu não acho que Cristo ficaria chocado com a atitude de Viviany. Aquele homem trans...gressor faria diferente? À Viviany meu apoio. À Viviany minha solidariedade. Aos meus amigos chocados, cristãos ou não, mais mente aberta para que possam olhar além da imagem e enxergarem o que subjaz a elas. E que atirem a primeira pedra apenas aqueles que nunca pecaram.

quarta-feira, 8 de abril de 2015

Memórias e paredes nuas

(originalmente publicado em meu perfil no Facebook, em 03 de maio de 2014.)
 
Hoje saí para pintar paredes em Nova Iguaçu. Não terminei e amanhã estarei de volta. Ainda estou aqui. Uma bebida que deixei para trás agora me faz companhia nesta hora em que, pronto para sair, interrompo minha movimentação para escrever estas palavras tortas, talvez atabalhoadas.
 
Quando cheguei, D. Marina, minha vizinha, ex-vizinha, não sei, recebeu-me efusivamente, com a mesma simpatia de sempre. A despeito disto, achei estranho não ter que me preocupar em me esgueirar sorrateiramente pelo portão, com receio dos meus cachorros escaparem para a rua: estão todos lá na Piedade, lugar que agora chamo minha casa.
 
Aqui, a casa estava vazia e tentei não me preocupar em pensar nisto. A tarde corria apressada e eu queria adiantar meu serviço de pintura para deixar o mínimo para amanhã. Fiz parte da tarefa e parei para tomar banho. No banheiro, um sabonete não deliberadamente largado me serviu e provavelmente me servirá amanhã. Foi nesta hora que me veio a intenção de escrever sobre as sensações que um simples banho me trouxe.
 
O sabonete ficara de sobejo no dia da mudança. Toalhas não. Enquanto esperava secar meu corpo naturalmente, depois de um banho, pus-me a lembrar que noutros dias haveria música. Sempre há música quando tomo banho. No entanto, não havia música, não havia latidos de cães, não havia quarto para escolher uma muda de roupas. Devia me resignar com a muda que trouxera.
 
Andei para onde deixei minha mochila, outrora a cozinha, e qual não foi a estranhíssima sensação de percorrer aquele corredor estreito e, ao final, olhar à esquerda e não ver a mesa posta para o café e a geladeira nem sempre muito farta, mas ainda assim tão familiar. Havia ali apenas o eco. Havia. Não balbuciei qualquer som para me certificar se ainda há. As paredes estão nuas - algumas agora pintadas.
 
Sobre a pia, uma garrafa de um destilado vagabundo que decidi não deixar para trás agora. Tomei uns goles cheios diretamente no gargalo e guardei a garrafa em minha mochila.

Estou pronto para sair. Queria apenas escrever sobre tudo isto, sem ao menos saber como terminar.

Agora, estou saindo. Triste? Não. Nem um pouco. Pelo contrário, estou feliz na Piedade. Aquela casa que, lentamente vai se transformando em meu lar será amanhã o mesmo objeto de reflexões em que se transformou esta casa iguaçuana. Que posso eu fazer se sempre fui um nostálgico?

Uma barata caminha lentamente no corredor do quintal. Talvez agora ela tenha paz, com o Ataulfo distante. Baratas da Piedade, tremei!

Preciso apagar as luzes de casa e voltar para casa. É perturbadora esta dicotomia de quem tem dois lares. Enfim, o álcool começa a fazer efeito, as palavras me escapam sem muito critério e o ponto final - ah, difícil ponto final - não encontra bem onde repousar.

Sem mais, dou um até breve. Amanhã estarei aqui outra vez. Apago a luz, tranco a porta e saio. Vou encontrar meus cachorros em novo portão onde desta vez entrarei me esgueirando.

domingo, 22 de março de 2015

A se perder de si

Entrou no táxi apressado, com a respiração ofegante, entrecortada apenas pelos tremores de suas mãos.
- Para onde, senhor?
- Para qualquer lugar onde não haja qualquer traço de autoconhecimento.
Parou em frente a uma espelunca, entrou sem olhar para os lados e sentou. Revirou o menu sem saber ao certo o que pedir. O garçom se aproximou.
- Por favor, alguma coisa, qualquer coisa, que me faça perder a consciência de mim mesmo e a capacidade de racionalizar. Mas, que me mantenha acordado e me permita voltar para casa. Não vi no cardápio.
- Algo mais, senhor?
- Dose dupla. Sem gelo. Obrigado.

sábado, 21 de março de 2015

Livros e Memórias

Limpar livros demanda um tempo bastante longo. Um dia inteiro, às vezes mais. Não que a biblioteca seja assim tão extensa. Mas, sentado com os livros nas mãos, é impossível resistir ao ímpeto de folheá-los...


É quando a mente se perde e vagueia para longe, por páginas já lidas em tempos distantes e que, quando relidas, trazem não somente o enredo ali codificado em signos impressos, mas outras estórias, algumas nunca escritas, e que dizem respeito somente a quem as lê.


Épocas distantes, outras nem tanto, pessoas que estiveram tão perto, algumas que deixaram de existir, sensações que aquelas palavras trouxeram em outros tempos e que, muitas vezes não identificamos mais como nossas (coisa mais estranha esquecer o que um dia se sentiu). Memórias e esquecimento de mãos dadas e um conjunto de sensações pulando páginas afora.


Todos deveríamos limpar nossos livros com uma certa frequência. Tirar a poeira das capas e da existência.