quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Retrato de um Universo Particular

Dias atrás um casal de amigos contratou meus incipientes préstimos fotográficos para registrar o aniversário de um ano do seu filho. Munido dos meus modestos equipamentos e conhecimentos, arrisquei-me na aventura, ansiando por fazer um bom trabalho e solidificar a confiança que meus amigos depositaram em meu potencial, bem como iniciar minha rede de contatos e conquistar a confiança de outras tantas pessoas ali presentes.

Eu estava bastante animado com a agitação provocada pela gurizada presente; aproveitava a natural entrega das crianças, que sorriam para mim ao perceberem que eu segurava uma câmera como se dissessem “por favor, fotografe-me!” Num dado instante, percebendo que meu público mirim estava se comprazendo com a situação, decidi pedir que todos se reunissem em torno dos brinquedos e sorrissem para um retrato coletivo.

Apenas uma das crianças parecia me ignorar, chegando mesmo a me dar as costas quando duas senhoras, que suponho sejam sua mãe e sua avó, chamaram-lhe repetidas vezes: “João*, olhe para a câmera!”, sem sucesso algum. A impressão que tive era a de que, para aquelas senhoras, aquele menino bonito de grandes olhos escuros e arredondados realmente tinha que sair na foto. Quando o chamei, obtive como resposta o mesmo alheamento. Eufórico, João apenas brincava junto às outras crianças, não com elas, e de costas para mim.

“Não adianta” – disse uma das mulheres, num tom de voz notadamente tristonho – “ele não vai olhar”. Como se pedisse desculpas, emendou, parecendo constrangida, enquanto o pegava no colo, numa voz miúda, quase inaudível: “Vem, João, deixe o moço tirar a foto...” – e me olhando – “ele não percebe o mundo à sua volta. É autista.”

Então deduzi porque as duas senhorinhas faziam tanta questão de que João fosse fotografado olhando para a lente: isso lhes daria um registro raro, no qual o garoto ficaria para sempre imortalizado olhando nos olhos de qualquer um que olhasse seu retrato. Seria possível guardar uma imagem na qual João estaria mantendo contato visual com o mundo ao seu redor.

Confesso que por alguns instantes esqueci que eu estava ali para fotografar o aniversariante e sua família e concentrei esforços em tentar obter um retrato de João, que não parava quieto, divertindo-se com alguma brincadeira que somente em seu mundinho particular poderia ser brincada. Pulava, corria e sorria. Não parava um só instante e, sozinho, aproveitava a festa. De algum modo que eu não saberei dizer. Ninguém, exceto ele próprio, saberia.

Foram vários cliques frustrados, todos seguidos de perto pelas duas mulheres que, a cada disparo, perguntavam se eu havia conseguido. E cada resposta negativa que eu dava de volta era imediatamente seguida por uma falsa resignação. “Ele é difícil demais. Deixa pra lá. Não vamos conseguir...” O que eu ouvia, entretanto, parecia-me outra mensagem, um apelo: “Por favor, tente mais uma. Apenas mais uma. Nós gostaríamos tanto se você conseguisse.” Tentei.

Minutos depois, durante um dos rodopios de João em torno do próprio corpo, disparei outra vez. E não acreditei no que vi se formar na tela da minha câmera! Lá estava aquele menino magro, lindo, com um sorriso no rosto e olhando diretamente para mim. Parecia até que tinha posado, tão profundo era o modo como me olhava e sorria naquele retrato. As duas senhoras me pareceram emocionadas. Eu as deixei ali e lembrei que estava naquela festa para fotografar o bebê dos meus amigos – o aniversariante.

Trabalho feito, decidi aumentar um pouco mais a satisfação dos meus amigos-clientes, entregando-lhes não somente as fotos pelas quais fui contratado para fazer, mas também a ampliação de uma delas, que eu mesmo escolhi para fazer-lhes uma surpresa.

Então, lembrei-me de João. Lembrei de como aquelas mulheres pareciam ansiosas por um retrato dele. E decidi lançar uma jogada: revelei aquela foto que me foi tão difícil conseguir e pedi que meus amigos entrassem em contato com as duas senhoras e lhes entregassem o presente.


Depois de testemunhar a tristeza daquelas duas mulheres a cada meneio negativo que eu fazia com a cabeça quando me perguntavam se eu havia conseguido, não me seria possível ficar indiferente à possibilidade de lhes trazer o contentamento por verem o sorriso congelado de João. É possível até que ambas jamais venham a contratar um serviço meu. Mas, para mim, a satisfação de imaginar que aquele sorriso estará ornando um porta-retratos, dizendo a elas todos os dias que o universo de João é tão ou mais divertido que o nosso, cliente nenhum jamais conseguirá pagar.


* nome fictício para preservar a identidade da criança e da família.