segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

Pequena Crônica Ficcional que Poderia Ter Sido Real

PEQUENA CRÔNICA FICCIONAL QUE PODERIA TER SIDO REAL

— Como advogado, já atuei para um banco, em ações de cobrança, penhora, arresto, sequestro de bens para pagamento de dívidas. Para um comunista, não é nada louvável saber que minha fonte de renda era cobrar dinheiro de gente pobre endividada, ainda mais quando os motivos desse endividamento é justamente a manutenção de um sistema que privilegia os bancos, como aquele que um dia fui obrigado a defender. Sim, se você se forma em direito, em algum momento, poderá ter que defender bandido. A gente precisa pagar conta, colocar comida no prato e garantir um cantinho para dormir. Não tomo para mim a responsabilidade por viver num sistema que me obriga a ser um babaca. Prestei serviço a um grande conglomerado econômico, atuando diretamente a serviço dos burgueses, proprietários daquela instituição financeira para quem eu vendia minha força de trabalho em troca de um pagamento não correspondente à quantidade de trabalho que eu exercia. Eu era um proletário explorado, fudido, como nunca deixei de ser. Minha consciência, no entanto, me obrigava a tomar certas medidas que pudessem, de alguma forma, atrapalhar o bom funcionamento desse sistema de exploração. Obviamente, dentro dos limites possíveis na ínfima posição que eu ocupava na minha área de atuação. Algumas vezes, informei propositalmente o endereço errado da parte ré nas ações para que, quando fosse procurada por oficiais de justiça não fosse localizada e o processo ficasse parado, atrasado. Era pouco, muito pouco, quase nada. Mas, era o que dava para fazer. Não faria diferença para o sistema, mas faria diferença para aquela família atolada em dívidas com o banco.

— Mas, isso não é antiético, Doutor? O Estatuto da Advocacia diz que o advogado deve conjugar todos os esforços para atuar de forma mais eficiente possível para atender aos interesses do sei cliente!

— É por isso que estou falando para você e não para meu cliente ou para a OAB. Mas, cá para nós, o que você me diz sobre ter de usar uma ferramenta que deveria ser uma garantia de paz social, como é o Direito, para penhorar a casa de uma família? Não é antiético deixar pessoas sem moradia para pagar uma instituição que já é bilionária e que lucra a partir do endividamento dessas pessoas? Não é antiético cobrar, mesmo sabendo que essas pessoas foram obrigadas a utilizarem um empréstimo bancário exatamente porque são exploradas por causa de uma estrutura que transforma tudo em mercadoria, inclusive suas vidas, impedindo-as de terem uma vida plena? E sem "doutor", por favor.

— Mas, está na lei e a lei nem sempre é justa.

— E o que você quer para o mundo? Que se cumpram leis que não atendem às reais necessidades das pessoas ou que se faça justiça? Quando a lei é injusta a subversão passa a ser um dever moral.

— Mas, não sou eu quem decide o que é ou não é justo.

— E aí, por causa disso, você prefere deixar que uma burguesia, cujos interesses são diametralmente opostos aos seus, decida por você? O Estado é um campo de disputa no qual se trava uma guerra: a luta de classes. Hoje quem detém o Estado é a burguesia, a mesma do banco, a mesma que cria a lei que favorece o banco, a mesma que toma a casa de quem deve ao banco... E quem permite isso? O Direito, que é emanado deste mesmo Estado a serviço da burguesia e que atua através da lei criada por representantes políticos da burguesia, aplica por juristas a serviço da burguesia. Esse Direito deveria deixar de existir...

— O Direito é uma Ciência!

— Balela liberal! O Direito é um instrumento de controle nas mãos da burguesia. É por isso que você trabalha feito um cachorro e nunca tem tempo de viver a sua vida. É o Direito burguês quem diz quanto tempo você deve passar trabalhando e quanto deve receber por isso. Para nós trabalhadores não serve para nada. Por isso, também é um campo a ser disputado. Quando a classe trabalhadora vencer a luta de classes e tomarmos para nós o Estado, aí faremos o nosso Direito.