quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Presente de Natal

Presente de Natal

A paz de um oásis que acolhe a caravana
Da exaustiva caminhada pelo caos da areia:
Ano de tormentas, desesperanças e vacinas.

Hiatos de respiros em alvoradas natalinas
Enchem de calor a alcova que incendeia.
Hipnos e Himeros ébrios numa carraspana.

Terno olhar, sorriso súbito que emana...
Momento de paz, que preço alto algum custeia,
Enlaçados, dormem em horas vespertinas

Nas vidraças descem águas cristalinas,
Ruídos de temporal como cantos de sereia
E corpos enredados com fome, sede e gana.

Frêmitos, arquejos: delícias da vida profana.
Suor e saliva... sangue quente em cada veia.
E no fim, o alento: presente em tempos de ruínas.

Gustavo Carneiro de Oliveira
Rio, 29 de dezembro de 2021.

segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Dialética da Criação

Dialética da Criação

Trago um mundo inteiro dentro em mim?
Mãos que cá já estavam moldaram-me em argila,
constituindo-me à sua semelhança.
Reflexo sou daquilo que me criou.

Dentro em mim pululam pensamentos.
Ideias que habitavam em tempos idos
Cabeças que, antes mesmo de eu chegar,
Já pensavam pensamentos que pensei.

O que sou? Perpetuação de ideias?
Em que pensavam as mãos
Na mente que em mim moldaram?

Aqui dentro ainda trago inteiro um mundo?
Porque quando aqui cheguei, cá já estava.
E em meu ouvido ecoava, retumbante,
A voz que me ordenava: "segue a ordem!"

"Foste tu criado à minha semelhança.
Não saibas tu para além do que doutrino.
Desconhece o bem e o mal, assim te digo.
E segue a reproduzir o pensamento
Que por este Paraíso transitava
Quando nele pisaste da vez primeira."

***

Um mundo inteiro dentro em mim carregaria
Se não viesses tu do mesmo barro
Pelo qual fui esculpido, camarada.
Viemos ambos de um só pó: uma só terra
Que não é tua, minha tampouco,
Posto que deveria ser de todos
Para que humanos todos fôssemos.

Quando no outro me vir constituído
Não carregarei em mim peso de um mundo.
Porque o mundo que aqui já existia
É arvore apodrecida que será deitada.

Rio de Janeiro, 04 de outubro de 2021.

segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Dura Lex, Sed Lex

O aluno de direito é adestrado desde cedo com um mantra em latim que ele repete à exaustão: "Dura lex, sed lex".

Essa parada, quando é em português, a gente chama de "dito popular", mas quando é em latim, a goumertização do direito nos orienta a chamar de "brocardo jurídico", nome bonitinho para designar uma espécie de dogma que o aluno sem senso crítico vai repetir e repetir e repetir, sem nunca parar para fazer uma avaliação crítica do conteúdo que está repetindo.

"Dura lex, sed lex" significa em latim "a lei é dura, mas é a lei". Na prática, orienta o jurista para a abstração e generalidade da lei, de forma que esta deva ser cumprida, ainda que seja austera. A lei é dura, mas é a lei.

Não importa que a aplicação da norma cause uma injustiça no mundo material. É a norma, deve ser cumprida. É dura, mas é a lei. E o único caminho possível para a lei é a sua aplicação. É como nos ensinam nos cursos de direito.

E somos tão imbuídos do abstracionismo e descolamento da norma para com a realidade, que apenas nos orgulhamos quando aplicamos a lei. Não importa que um banco bilionário desaproprie o único imóvel de uma família que não conseguiu pagar juros de uma hipoteca. A lei é dura, mas é a lei. Faça o certo, aplique-a.

É hora de questionar esse senso moral subjacente à formação da consciência jurídica, que faz o jurista se orgulhar de cumprir mera formalidade, independentemente das suas consequências materiais. É sobre isso. E não, não tá nada bem. Que porra de subjetividade jurídica é essa que constroem na gente e que nos faz acreditar que é mais importante cumprir uma norma injusta do que questionar quem impõe essa norma?

A lei é dura mas é a lei, mas para que servirá uma lei que impõe austeridade ao seu subordinado? Por que deve o aplicador da lei se orgulhar por fazer "o certo" ao cumprir uma legislação injusta, quando se sabe que sua aplicação somente teria sentido em um ideal abstrato pensado como modelo, que nunca corresponde à realidade dos fatos?

Se a lei é dura, dane-se que seja a lei. Deve-se lutar para que seja revogada. E essa disputa deve se dar no discurso de ruptura com essa institucionalidade, que não corresponde ao modelo ideal e abstrato tomado por parâmetro.

Quando analisamos o mundo a partir de conceitos prévios e abstratos que não correspondem à realidade material, não estamos promovendo qualquer mudança estrutural da realidade. Então, qual o sentido de insistir em aplicar uma norma que não traz qualquer benefício a quem sente seus efeitos? Por que não somos orientados a brigar para derrubar leis injustas e descoladas da realidade, e em vez disso, somos orientados a fazer cumpri-las, ainda que não regulem a vida real por estarem alheias a essa realidade?

Se a lei é dura, mas é a lei, então foda-se a lei! Importa é a realidade das pessoas. É para isso que o aluno de direito deve ser orientado a brigar. Justiça se faz compensando e abolindo desequilíbrios existentes. Essa deve a ser a diretriz principiológica que irá nortear a atuação do profissional do direito.

domingo, 29 de agosto de 2021

Mas, o que é esse marco temporal?

Você não tá entendendo essa parada de "marco temporal" para terra indígena?

Um bandido invadiu sua casa em janeiro deste ano, matou seus filhos, esposa/esposo, deixou só você, e impôs que você não usaria mais aquela casa toda. A partir de então você somente poderia ficar na área de serviço.

Há uma semana, esse bandido, muito gente boa, resolveu "te liberar" também o acesso para o quartinho dos fundos. Afinal, você está esperneando desde que sua casa foi tomada para poder voltar a usar o que é seu por direito.

Hoje o bandido resolveu dar fim ao conflito entre vocês: "vamos fazer o seguinte: de janeiro pra cá aconteceu muita coisa. Então, esquece isso. Mas, desde semana passada você vem usando o quartinho e a área de serviço. Então vamos esquecer o que aconteceu de janeiro até semana passada e estabelecer que dessa data para hoje, o quarto e a área são seus por direito. Eu fico com o resto da casa, afinal, já estava aqui desde o começo do ano mesmo."

Isso é o marco temporal. Querem dizer para o dono da casa que sua posse só vale a partir da semana passada. E que tudo o que aconteceu antes pode ser deixado de lado para não ter mais confusão.

quinta-feira, 19 de agosto de 2021

OnlyFans e o falso moralismo em uma "esquerda" conservadora

A plataforma OnlyFans anunciou que, a partir de outubro, retiraria do ar conteúdo de cunho sexual.

Não tenho dados estatísticos aqui, até porque não é sobre o que proponho, mas sei que a plataforma é muito comum entre homens gays que compartilham conteúdos pornográficos em troca de dinheiro, vendendo fotografias "nudes" e vídeos de sexo explícito. Nem sei se a maioria dos perfis e do público possuem conteúdo sexual, mas sei que entre homens gays é bastante comum a produção e o consumo deste tipo de conteúdo nesta plataforma.

O que me causou, não tanto surpresa, mas muito mais indignação, foi ver no meio de pessoas LGBTQIA+ uma galera comemorando o anúncio da plataforma, ironizando que, a partir de outubro os produtores de conteúdo pornográfico "teriam que arrumar um emprego".

"Finalmente uma boa notícia."

"Quero ver esses gays folgados conseguir dinheiro agora." (sic)

"Trabalhar ninguém quer. Agora se mostrar pelado na internet em troca de dinheiro é moleza."

No meio desses homens gays — muitos dos quais consomem conteúdo pornográfico na Internet, e sei porque falo aqui de pessoas que conheço — encontram-se moralistas, que fazem juízo de valor em cima do comportamento sexual das pessoas. 

Gays comemorando o fim da fonte de renda de outros gays, pelo fato de que esta fonte provém da exposição do próprio corpo e da exploração do próprio sexo. Onde anda a consciência de classe de quem é alijado pelo mercado de trabalho por sua orientação sexual, quando julga seu similar, tão indesejável no mercado quanto ele próprio, por ganhar dinheiro ao explorar o próprio corpo?

Não indigna esses gays moralistas que sejamos todos obrigados a viver num sistema que, exatamente por nos afastar do mercado formal, obriga que outros homens gays explorem a própria imagem sexual, por não lhes restarem alternativa?

Pessoas que se dizem esquerdistas deveriam ter ciência de que a criminalidade e a violência estão diretamente relacionadas com as condições socioeconômicas em que vivemos. E que, quando faltam empregos e condições dignas de sobrevivência, há crescimento de violência e das taxas de criminalidade. No entanto, preferem comemorar a vitória da moral e dos bons costumes sobre um número de pessoas LGBTQIA+ que serão jogadas ao "Deus dará", e possivelmente incrementarão as estatísticas da criminalidade.

Não que deva haver uma necessária correlação entre comunismo e produção de pornografia, porém é de se irritar muito ver homens gays comemorando o fim da fonte de renda de outros homens gays. Perfis de supostos progressistas, que se dizem esquerdistas, ignoram que o percentual de desemprego para pessoas LGBTQIA+ é de 21,6%,  enquanto que o índice total no Brasil é de 12,2%, conforme pesquisa apresentada em maio de 2021, fruto de uma colaboração entre o coletivo “#VoteLGBT”, a Universidade Federal de Minas Gerais e a Unicamp.

Homens gays de esquerda deveriam lamentar que pessoas mais vulneráveis ao desemprego percam sua fonte de renda e passem a integrar um exército industrial de reserva em um momento tão cruel de avanço de políticas neoliberais de arrocho salarial. No entanto, compram o moralismo conservador da tradicional família de bem e desconsideram a legitimidade de obter renda explorando o próprio corpo.

Parece-me que esses moralistas não enxergam a semelhança entre aqueles "imorais" consigo próprios. Pensam que acordar diariamente às 6h da manhã, enfrentando trem lotado ou trânsito lento, para que consigam iniciar seu expediente às 9h é moralmente mais aceito que mostrar uma foto de um órgão sexual na internet. O trabalhador moralista pensa que não está explorando o próprio corpo quando enfrenta duas horas de trânsito na volta para casa, entro de um ônibus cheio, de pé, por causa de dinheiro, que chama de salário.

quarta-feira, 11 de agosto de 2021

Glauber Braga, Flordelis, presunção de inocência e o direito do estado burguês

Sobre o voto do Glauber Braga pelo não afastamento da Flordelis , tecnicamente sua escolha foi correta. Em relação à acusação de homicídio, foi justamente o que ele ponderou: ainda falando unicamente em termos técnicos e considerando todo o abstracionismo do Estado Democrático de Direitos, e dos princípios trazidos pela Constituição Federal, somente se considera culpada a pessoa com sentença condenatória transitada em julgado, ou seja, um julgamento que não caiba mais qualquer recurso.

Assim, tecnicamente, a deputada Flordelis é inocente, em função deste princípio constitucional da presunção de inocência (em outras palavras, presume-se que a pessoa seja inocente, até que da sentença condenatória não caiba mais qualquer recurso).

Por outro lado, há toda a questão da ideologia por trás de todos os princípios constitucionais vigentes neste Estado Democrático de Direitos, que é a ideologia liberal que fornece o suporte necessário para a manutenção do Estado burguês. E a consequência disso é que as leis criadas dentro desse Estado e a própria Constituição que o institui jurídica e politicamente são passíveis de críticas e de revisão. No entanto esse processo não se dá dentro da institucionalidade, mas através de uma ruptura institucional ou um processo revolucionário.

Romper com a Constituição é romper com o status quo. É exatamente o que eu sonho, enquanto agente de pretensões revolucionárias. Porém, aqui, lamentavelmente, a atuação do Glauber Braga como parlamentar pressupõe os limites impostos pela institucionalidade. Ele não tem como ir além das atribuições que lhes competem em função dos ditames da própria Constituição Federal. E justamente, neste aspecto, tomando por pressuposto a estrutura possível dentro da institucionalidade, a atitude do Glauber denota uma louvável coerência com princípios democráticos que ele propõe defender, em especial o abolicionismo penal. Minha visão técnico-jurídica está de acordo com a decisão dele. Minha visão ideológica quer mais é que Flordelis, como qualquer bolsonarista, se foda.

Não tenho uma opinião formada para bater o martelo dizendo que concordo ou discordo com sue voto. Não me sinto confortável para emitir um juízo de valor da sua escolha. Tenho uma opinião, mas não sei o quanto ela está ou não bem fundamentada.

Se por um lado achei admirável sua conduta coerente com seus ideais democráticos, por outro lado não sei se eu teria feito a mesma escolha. Nessa hora, creio que a ideologia que me guia seria mais forte e eu daria meu voto para que essa pessoa fosse chutada da cena pública. Assassina ou não, eu provavelmente votaria pela perda do mandato, não me baseando no princípio da presunção de inocência, mas sim porque o que me guiaria seria o propósito de calar as vozes que se levantam para louvar o bolsonarismo (consequentemente, o capitalismo, o fascismo, o neoliberalismo).

Eu também estaria sendo coerente, até porque democracia liberal não é democracia, é oligarquia. E eu não tenho nenhum compromisso pessoal com ela. Quem quiser me chamar de ditador, que chame. Emita sua opinião enquanto ainda não sou o Líder Supremo da República Comunista do Brasil.

sexta-feira, 6 de agosto de 2021

Ninguém é uma ilha

Dos tipos nocivos de postagens com filosofia na profundidade de um pires, aquele que incentiva o enclausuramento, a desconfiança e a individualidade são os que vejo com mais frequência e talvez os me irritam mais profundamente.

"Não conte a ninguém seus sonhos"

"O que ninguém conhece, ninguém destrói"

"Só você é responsável pelo seu destino"

"Não dependa de ninguém, lute sozinho"

"Aprendi que não se deve confiar em ninguém"

"Não seja bom com ninguém, pois ninguém será com você"

Essas e outras baboseiras do mesmo gênero são pensamentos extremamente tóxicos, que prestam um tipo de desserviço ao colocar pessoas em permanente defensiva contra outras pessoas.

É um tipo de babaquice que não atende a outro propósito, senão o de promover o enfraquecimento de quem deveria unir forças.

Conte seus sonhos, sim! Se alguém quiser destruí-los, o problema não está em você, está em quem quer destruí-los. Conte seus sonhos para que quem sonha igual saiba que não está sozinho e, quem sabe, vocês se unam para realizá-los, já que dois podem mais que um.

Deixa de ser idiota por achar essa palhaçada de que tu não depende de ninguém, só porque hoje tu tem um salário e paga tuas contas. Tu aprendeu a falar porque dependeu de alguém para te ensinar. Tu cresceu porque dependeu de alguém para te alimentar, te banhar, te colocar pra dormir. Tu estudou porque dependeu de alguém para te matricular. Tu trabalha porque dependeu de alguém para te contratar ou pra contratar o que tu oferece como empreendedor.

Tu não faz porra nenhuma sozinho, a não ser achar que é mais especial que o resto do mundo. Experimenta se isolar sem entregador Ifood para levar tua pizza, para ver se tu não morre de fome. E não vale ser na tua casa, que alguém construiu para ti. Te vira, irmãozinho, constrói teu canto, planta tua comida, costura tua roupa e tenta descobrir se tu ainda vai ter algum sonho para esconder de alguém.

Com esse pensamento estúpido e infeliz de quem vive dentro de si mesmo, você realmente acredita que o resto do mundo te inveja e quer te prejudicar? Fala sério.

segunda-feira, 2 de agosto de 2021

Família tradicional não desfaz sozinha

"Ain, tem que ter muita maturidade para ter uma relação aberta".

"Ain, é preciso ter muita confiança!"

"Ain, só dá certo se os envolvidos forem muito honestos um com o outro..."

Miga, te contar um segredo: maturidade, honestidade, confiança, são requisitos pra qualquer tipo de relação, tá? Se a Sra. é desonesta na sua, talvez o problema esteja em você e não na relação.

O relacionamento aberto é a aceitação do próprio desejo e da própria sexualidade, sem limitar o desejo sentido pelo próprio corpo a regras ditadas por terceiros em uma sociedade que se imiscui na esfera privada do que a pessoa faz consigo mesma. O MEU prazer diz respeito só a MIM e não faz sentido que eu o restrinja apenas porque o OUTRO quer que EU não sinta o prazer que o MEU corpo pode ME proporcionar.

A propósito, o formato monogâmico de relacionamento atende aos interesses do capitalismo, em que a burguesia necessita de formação de um núcleo familiar para procriar e produzir mais trabalhadores para as fábricas continuarem produzindo riqueza para o burguês enquanto o proletário se fode. Não a toa, a mesma sociedade que prega contra o relacionamento aberto também impõe a heterossexualidade como padrão. Porque, como diria Levy Fidelix (que o diabo o tenha) "aparelho excretor não reproduz".

O casamento, a heterossexualidade, a monogamia são instrumentos na mão da burguesia para garantir a perpetuação do capitalismo. Não a toa os veículos de mídia — todos pertencentes a detentores de grandes capitais — veiculam sempre em suas produções televisionadas e cinematográficas, além de campanhas publicitárias, o modelo da família "tradicional": porque precisam de pessoas moldadas dentro dessa cultura monogâmica e heterossexual, para que possam perpetuar mesma organização social existente, acreditando ser "natural" que tenhamos um só parceiro.

"Ain, tenho nojo dessas pessoas."

"Isso é fetiche pra pessoa poder ser puta."

"Melhor ser solteiro, isso não é amor"

"É uma aberração!"

O discurso de ódio, pelo visto não tá só no meio dos bolsominions, né?

Cuidado com o preconceito e entenda que sua escolha pela monogamia foi uma escolha direcionada pela cultura na qual você se insere.

Tá de boa com isso e quer seguir monogâmico/a? Beleza, siga e seja feliz. Mas, não caga regra na relação alheia, chamando de fetiche, desculpa, pretexto, putaria, safadeza, ou o caralho a quatro que o seu preconceito diz que é. Porque ser viado também é tabu. E o ódio que você reproduz ao tachar a relação alheia como aberração é o ódio que você recebe quando dizem que sua orientação sexual também é.

Vá ler Engels e deixe sua mentalidade tacanha de lado.

sábado, 31 de julho de 2021

Inquietação

Inquietação

Tardam-se as horas, tarda-se o sono!
Arde em brasa o natural leniente.
E aromatiza o gelo que adentra
Em cada fresta, cada vão, cada canto
Com fragrâncias de fresco capim.

Nenhum braço o abraça no frio
Obsceno que lambe seus pés.
Horas avançam, sono não chega,
Mente vagueia nas horas do porvir:

Que surpresa lhe reserva o alvorecer
Quando o dia que chega trouxer consigo
Sorriso acanhado de quem mira nos olhos?

Dorme antes da aurora! Não te cansas?
(Diz de si mesmo para consigo)
Tardam-se as horas, tarda-se o sono!
Todavia é na singeleza das palavras doces
Onde anseia repousar
Quando for presente o futuro
E se esconder o Sol que ainda não nasceu.

Rio, 31 de julho de 2021.

quarta-feira, 28 de julho de 2021

A prisão arbitrária de Paulo e Géssica

O ativista e militante Paulo Gallo, fundador do grupo Entregadores Antifascistas, teve prisão temporária decretada nesta quarta-feira, dia 28/07/2021, juntamente com sua esposa Gessica, após se apresentar voluntariamente ao 11º Distrito Policial de Santo Amaro, em São Paulo. Paulo (Gallo) Lima está sendo investigado por sua participação na manifestação democrática realizada no sábado, dia 24/07/2021, na qual representantes da sociedade civil atearam fogo na estátua do caçador de escravos Borba Gato, colaboracionista do Estado Brasileiro no genocídio da população negra durante o Brasil Colonial.

A prisão temporária é medida prevista pela Lei nº 7.960/1989, e para ser considerada legal, precisa obrigatoriamente cumprir com os requisitos previstos pelo seu respectivo artigo 1º:

"Art. 1° Caberá prisão temporária:
I - quando imprescindível para as investigações do inquérito policial;
II - quando o indicado não tiver residência fixa ou não fornecer elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade;
III - quando houver fundadas razões, de acordo com qualquer prova admitida na legislação penal, de autoria ou participação do indiciado nos seguintes crimes: (...)"

É preciso destacar que o ativista não apenas se apresentou voluntariamente, não oferecendo quaisquer óbices às investigações, como ainda possui domicílio certo, em endereço fixo, e identificação civil. Além disso, o ato pelo qual é investigado não faz parte do rol previsto no inciso III do artigo acima transcrito.

Paulo Gallo é representante da categoria de entregadores de aplicativos, e sua luta é contra a precarização do trabalho e pela melhoria das condições abusivas, impostas pelo avanço das políticas neoliberais do atual governo, que retiram direitos trabalhistas e expõem entregadores a condições aviltantes, cinicamente chamadas de empreendedorismo.

Nós, juristas, precisamos nos mobilizar contra mais essa VIOLAÇÃO DE GARANTIAS CONSTITUCIONAIS praticada contra toda a classe trabalhadora, através dos desmandos deste Estado que há muito deixou de ser democrático, e avança vorazmente contra pessoas que lutam pela manutenção dos seus direitos. É preciso unir a sociedade contra a arbitrariedade e o autoritarismo de um Estado que se rebaixa para a burguesia e avança abusivamente engolindo os trabalhadores deste país!

Hoje, foram o Paulo e a Géssica, amanhã poderá ser qualquer um de nós, que estamos denunciando ilegalidades praticadas pelas instituições. Essas instituições que deveriam zelar pelo povo, real detentor do Poder Estatal, mas que optam por lamber as botas de uma pequena parcela de endinheirados.

Nossa total solidariedade ao militante Paulo Gallo e à sua esposa Géssica. Pela IMEDIATA REVOGAÇÃO DA PRISÃO ILEGAL DECRETADA contra ambos. A estátua de um genocida jamais deve ser motivo de orgulho para um Estado que se diz democrático. Menos ainda deverá ser pretexto para que trabalhadores como Paulo e Géssica sejam coagidos e intimidados por exercerem seu direito assegurado pelo artigo 5º, XVI, da Constituição Federal, de livre manifestação em local público.

terça-feira, 20 de julho de 2021

Quarenta, quarenta e um...

Ontem um amigo na casa dos 30 e poucos anos me perguntou como era ser um homem de 40 anos (para quem não sabe, tenho 41). Questionou se alguma coisa havia mudado na minha vida em razão de ter feito 40 anos.

O número pesa para muitas pessoas. Lembro de terem me feito essa mesma pergunta quando completei 18, uma idade que cria expectativas pela maioridade civil. E minha resposta foi unicamente "grande coisa ter feito 18, é tudo a mesma merda, não muda nada, a não ser que agora eu pratique um crime".

Meu palavreado era bem menos elaborado e eu era bem mais limitado intelectualmente para discorrer sobre o tema idade. Hoje, respondendo a uma pergunta feita forma tão específica, como a de ontem, sobre ser "um homem de 40 anos" posso dizer quase a mesma coisa que disse quando completei a maioridade.

Para mim, interna e pessoalmente, nada mudou quando fiz 40 anos unicamente por ter feito 40 anos. Então, ser um homem de 41, ou ter sido um de 40, de 38, de 35 anos, para mim não fez muita diferença em razão dos números. O tempo é uma medida criada pelo ser humano, e na natureza os processos se dão independentemente de estarmos contando ou não o tempo que levam para acontecer. Uma árvore que cai na floresta continua sendo uma árvore caída na floresta, ainda que não tenha alguém lá para ver. Ainda que não exista alguém para dizer o que é uma árvore ou o que é uma queda, ou ainda o que é uma floresta. O processo pode não ter sido nomeado ainda, mas está acontecendo.

Assim vejo a minha idade. Não me sinto velho, e não me pesa ter 41 anos. Não vou dizer que sou indiferente ao processo de envelhecimento. Mas, é isso: o que talvez venha a me pesar um dia, ou venha a me preocupar, são as transformações no mundo material e concreto, decorrentes do processo de envelhecimento. É a decrepitude física, são as dores, as incapacitações, as limitações impostas, a memória que eventualmente irá se perder, não por causa de um número que corresponda a uma quantidade de anos, mas ao próprio processo de envelhecer em si mesmo.

Na minha vida, experimentei dois momentos importantíssimos de autoconhecimento, que giraram uma chave existencial e me transformaram de forma significativa em "outra" pessoa. Um deles aconteceu quando eu tinha 22 anos, o outro aconteceu há menos de um ano, quando, por acaso, eu tinha 40 anos. Mas, não posso dizer que ter 22 anos ou ter 40 anos, são em si mesmo, de forma inerente às idades, representativos de uma grande mudança. Não vou descrever aqui as experiências que tive aos 22 e aos 40, porque não há espaço, mas sei que mexeram estruturalmente na minha forma de pensar e de ver as coisas.

É assim que funciona para mim. Um número é só um número. Os processos que se realizam no mundo material, estes sim, podem vir a me abalar negativamente de alguma forma. Não tem sido o caso até o momento. Por acaso, nunca me achei tão interessante e tão atraente como nesta idade. Mas, não é pela idade enquanto um número mágico ou um portal que atravessamos. É pela transformação lenta, gradual, que observamos dia a dia e, num dado momento, nos damos conta de que uma forma de ser deu lugar à outra.

Hoje não aliso nem escovo meus cabelos, com os quais vivi em pé de guerra durante anos, e amo meus cachos que finalmente se tornaram grisalhos. Tenho disposição física para me exercitar, para pedalar, para caminhar, para correr da polícia em manifestação. Meu rosto já apresenta algumas marcas da idade, que disputam espaço com as marcas de acne que ganhei de herança da adolescência. As cicatrizes deixadas pelas espinhas foram, durante muito tempo, um problema incontornável, que me obrigava a colocar filtros e edições em fotos para que eu não pudesse me confrontar com a imagem daquele que eu era. Hoje acho graça quando vejo fotos de dez, quinze anos atrás, em que eu parecia um desenho animado, de tanta edição. Minhas fotos atuais, em sua maioria, não levam filtro, e nunca me achei tão bonito em toda minha vida quanto me acho atualmente, com rugas, pancinha, marcas de acne e cabelo cinza.

Então, ser um homem de 41 anos, para mim, tem sido uma experiência positiva. E não por ter 41 anos, mas porque calhou de estar nesta idade quando as experiências de vida que tive e que me conduziram até aqui me transformaram em quem sou. Talvez quando eu sentir dor ao levantar da cama ou me sentir incapacitado de subir uma escada eu venha a ficar desgostoso, tenso e preocupado. E isso pode acontecer amanhã ou pode levar ainda outros 40 anos para acontecer.

Não me importa contar idade enquanto conceito prévio e abstrato, marcado em uma escala criada pela humanidade para medir o tempo. Importam-me as mudanças concretas, que acontecem no mundo material, aquilo que vejo no meu corpo, a pele que perde o viço, o músculo que perde o tônus, os ossos que rangem, o enfraquecimento da memória e do sistema imunológico, o funcionamento deficiente dos órgãos. Enquanto isso não chega, ser um homem de 40, de 41 de 42, de 43...não significa nada em si mesmo para mim.

sábado, 17 de julho de 2021

O Bispo

Através da fumaça fugaz
Que em derredor dos seus dedos dançava
E dissipava na brisa fresca
Olhava o cinza da tarde pela janela,
Pela qual ansiava não ver todas as dores
Que sabia existentes no mundo.

Em sua mente que se fartava de não ser calma
Atormentavam-lhe, como moscas em volta do lixo,
Recorrente pensamento ao qual se prendia
Num apego doente, de quem não descansa:
"Que lhe custava ter girado aquela faca?"

quinta-feira, 1 de julho de 2021

Cadeia e a ficção jurídica da ressocialização

Cadeia é só mais uma forma de controlar corpos indóceis que supostamente ameaçam um sistema de dominação de uma classe sobre outra. A função socializadora da pena é uma ficção jurídica, como, aliás, é o próprio direito.

Nossa sociedade – capitalista – valoriza o sujeito que pode consumir. Quando o sujeito não consome e, consequentemente, deixa de injetar capital para quem fornece produtos e serviços, deixa de ser desejável para existir nessa sociedade.

O direito, na sociedade capitalista, nada mais é, senão um instrumento de dominação na mão da burguesia para manutenção dessa ordem criada por ela mesma. Desta forma, o direito penal não tem outra finalidade senão encarcerar aqueles indivíduos que, por serem "indesejáveis" para a sociedade de consumo, atrevem-se a romper a fronteira física imposta pela ordem social. Como assim, Guto? Que fronteira física?

Bem, as cidades são projetadas para conforto de quem pode pagar por ele. Avenidas com opções de lazer, comércio, transportes, fácil acesso a praias e a comodidades, não são baratas. Quem pode pagar – leia-se "quem consome" – é bem-vindo. Quem não pode, é varrido para a periferia, onde não há infraestrutura. Favelas, morros, bairro afastados dos centros comerciais, tornam-se o espaço físico delimitado para os corpos indesejáveis. Neste momento, não preciso dizer que são os negros, pobres, travestis, transexuais, gays, e todos os marginalizados pelo sistema de dominação capitalista, patriarcal e branco, preciso?

Pois bem, essa parcela excluída fisicamente da sociedade de consumo, nos "limites de segurança" para quem consome, uma vez privada de condições mínimas de existência, luta para sobreviver como pode. E isso inclui o ingresso na criminalidade. Naquilo que o direito – enquanto norma imposta pelo Estado burguês – chama de crime. Entende aí por que o mesmo ordenamento jurídico que prevê crime de tráfico também prevê crime contra a segurança nacional a exaltação de um tipo diverso de ordem social, que não essa criada pela burguesia?

As cadeias são depósitos de pessoas pretas, presas com pequenas quantidades de drogas, e não servem a nenhum outro propósito senão o de gerar a falsa sensação de segurança para as classes médias, fudidas o suficiente para não serem dominantes e confortáveis o suficiente para serem consumidoras.

Pequenos delitos, como furtos e roubos não põem em risco a estrutura da sociedade, sequer configurando algum tipo de ameaça de esgarçamento do tecido social. Mas, quando a mídia insiste em implantar a cultura do medo através de manchetes policiais, tipo "jovem é assassinado por causa de um iPhone", isso cria nas classes médias (privilegiadas o suficiente para terem um iPhone, fudidas o suficiente para pagar esse luxo em 36 suadas prestações), uma sensação de temor. Passa-se então a alimentar a indústria da segurança privada e das armas, com pessoas se trancafiando em suas casas, gradeadas e cheias de alarmes. Ou por que você acha que existe um lobby das armas no Congresso Nacional, sedento por normas de liberação do armamento e de mãos dadas com a extrema direita?

Essas mesmas pessoas são as que promovem campanhas para endurecimento de um sistema penal, já suficientemente rígido para uma clientela não branca, não heterossexual, não homem cis. Tudo isso fica bem amarradinho quando governos e legisladores conservadores promovem políticas de aumento de pena, de liberação de armas, para contenção, inclusive, decorrente do avanço da retirada de direitos sociais.

E aqui a cadeia tem seu papel fundamental: guardar quem se atreve a romper com esse sistema organizado de forma a perpetuar desigualdades. As classes médias imbuídas do pânico gerado pela mídia passam a apoiar políticos demagogos, que supostamente mostram trabalho quando aprovam leis mais duras para quem é preto, pobre, favelado, que quando se atreve a descer dos morros para andar no "asfalto" vira uma ameaça e acaba encarcerado. Por isto mesmo, aconselho você a parar de clicar em manchete sensacionalista de página policial: não dê audiência a quem promove cultura do medo e implanta na mentalidade mediana a sensação de temor que faz apoiar gente como Bolsonaro e Bancada da Bala. Apresentadores de programas como Datena, Sikêra Jr., e outros do gênero deveriam ser banidos da TV.

Cadeias deveriam não existir. Direito penal não deveria existir. O Direito não deveria existir. O Estado não deveria existir. A sociedade pautada no consumo não deveria existir. O capitalismo, que junta todas essas peças e monta esse sistema tão bem encaixadinho, é o causador de tudo isso. E ele, principalmente ele, não deveria existir.

segunda-feira, 7 de junho de 2021

Ame-se. Odeie o mundo em que você está.

Ame-se mesmo quando você fracassa. E isso não é uma mensagem de autoajuda. Nem é do meu feitio. Se fosse autoajuda seria "ame-se e você nunca irá fracassar, porque quando a gente quer a gente consegue". Odeio autoajuda.

E não, nem sempre a gente consegue quando quer. Quase nunca, na verdade. A vida é uma desgraça. E por isso mesmo, é preciso que você se ame e perceba que você não é culpado/a pelos seus fracassos. A responsabilidade é de um sistema dentro do qual você se insere: um sistema que não te dá oportunidade e te cobra resultados para os quais esse sistema não te preparou.

Por isso, ame-se, e ame-se muito. Perdoe-se pelos seus deslizes em vez de passar a vida se punindo. Pare de odiar a si mesmo/a. Se fosse autoajuda, seria "não guarde ódio de nada". Mas, não é. Odeie e odeia com toda força que você tem. Guarde seu ódio, cultive-o, deixe-o acumular. Mas não se odeie. Não direcione seu ódio contra si. Aponte-o para o sistema que te massacra. Desde destruir esse sistema da mesma forma que você deseja se destruir quando imerge em autocomiseração.

É com esse ódio que, depois de aprender a se amar, você irá lutar para destruir o sistema que te fez aprender a se odiar. Faça esse ódio crescer até virar revolução. E ame-se tanto, mas tanto, a ponto de acreditar que você merece o mundo que você pretende construir. Porque você merece.

quarta-feira, 5 de maio de 2021

Um Conto de Pandemia ou Diálogo com um Geminiano

— Até queria, mas não estou no momento para viver um romance agora. Talvez quando concluir o mestrado, tiver um carro, uma casa, colocar o corpo em forma...

— Você acha que vida é algo que espera uma hora certa para acontecer?

— Você não?

— Claro que não! Não é que dedicar-se a seus projetos não seja importante, mas estabelecer fases para experimentar uma existência essencialista e previamente idealizada, a mim parece um tanto irresponsável. Você é feliz?

— Não...

— Então...

— ...mas, vai chegar o momento em que serei!

— Se te faz bem pensar desse jeito...

— E você? Não acha irresponsável viver como se não houvesse amanhã?

— Tire o complemento da sua pergunta e repita.

— "Você não acha irresponsável viver?"

— Agora volte umas casas, lá para o começo da conversa, tire o complemento da sua frase negativa...

—"Não estou num momento para viver"?

— Pois bem. O que te parece?

— Não entendi onde você quer chegar... Mas, diz aí você, que se formou, que entrou no mercado de trabalho, que se habilitou profissionalmente... Vai dizer que cumprir cada uma dessas etapas não te trouxe imensa felicidade?

— Não. Não trouxe. Deveria?

— Não é o que se espera?

— Exatamente! Mas, quem espera? E espera com base em quê?

— As pessoas esperam. Porque é assim que é a vida. A gente nasce, a gente cresce, a gente estuda, se forma, trabalha, adquire bens, casa, tem filhos...

— Que vida é assim? Digo, que vida traz em si, intrinsecamente, essas fases? São etapas inerentes e constitutivas em si mesmas do que se chama vida? E quem não estudou? Quem não trabalha? Não vive?

— Não sei... Talvez não viva. Talvez não como deveria.

— Deveria, deveria, deveria... Você só repete o dever ser. O que deveria ser não é o que é. Essas etapas da existência são frutos de um pensamento criado pela nossa sociedade, que estabelece um tipo de script a ser seguido e nos ensina que deve ser assim. "Você vai ser feliz no dia da sua formatura", "Você vai ser feliz no dia do seu casamento", "Você vai ser feliz quando seu primeiro filho nascer"...  Olha que merda! Criam um roteiro e a gente embarca! Eu não senti essa felicidade idealizada quando me formei. Só senti alívio, não suportava mais a faculdade! Tirar minha OAB? Mais alívio, finalmente poderia trabalhar. Começar a trabalhar? Mais alívio! Poderia pagar minhas contas... O roteiro que nos ensinam transforma em causador de felicidade o que é pra ser um mero momento de transição. Um instrumento para superar uma fase de dificuldade e ingressar em outra. Primeiro nos impõem uma série de dificuldades, como se estivéssemos cumprindo fases de um vídeo game, depois nos dizem "superou uma fase? Isso é felicidade, agora passe para a próxima...

— E alguma coisa em algum lugar te faz feliz?

— ...no fim a gente vê uma caralhada de gente frustrada, seja porque não realiza as etapas que lhes dizem que deve realizar, seja porque, quando as realiza, não encontra o pote de ouro no fim do arco-íris... essa tal felicidade que dizem que deve estar lá! E então a pessoa se frustra, acha que tem algo de errado consigo! E respondendo a sua pergunta, sim, já experimentei momentos felizes. Sentir o vento na cara enquanto ando de bicicleta é uma coisa que me faz feliz. Sabe quando te falei da gambiarra que tive de pensar para consertar meu ventilador? Então... O simples fato de ver meu ventilador funcionando, com uma ideia que eu tive, me deixou feliz. E feliz mesmo! Tipo "uau, sou um gênio!" Por alguns minutos experimentei mais felicidade do que quando finalmente saí da faculdade.

— Estranho alguém ficar feliz com algo que nada tem de grandioso...

— E o que é grandioso para você? O que te faz supor que pegar um diploma é algo grandioso é o valor que te ensinam que um diploma tem. Dizem que casamento é um momento grandioso. Para mim, é um passo para o cadafalso.

— Você não conta, é do contra. Sua opinião sobre casamento sempre foi radical.

— Não se trata disso. Minha opinião sobre casamento sempre foi a "minha opinião". Em parte formada, como todas as opiniões sobre todas as coisas, com base no que experimentamos do mundo. Em parte formada com base na minha subjetividade, que também é fruto do que vejo do mundo.

— Então você diz que tudo que você gosta é porque te ensinaram a gostar?

— Sim e não. Nossa sociedade nos ensina que casar é bom, que se formar é bom, que ter filhos é bom, que trabalhar é bom. A gente então vive para perseguir esse roteiro. Mas, nossas experiências particulares interferem nessa visão geral. Por um lado "o mundo" espera que eu case, porque para "todo mundo", o casamento é um sonho. Mas, eu, querendo ser o diferentão, digo não a essa experiência. E por quê? Porque sou um ser formado em mim mesmo, constituído por valores individuais, originados dentro de mim? Não. Mas, porque minhas experiências vividas ou minhas observações mostram que o casamento não é legal. Eu aprendi a valorar outras circunstâncias que não são compatíveis com a ideia de casar. Então, mesmo eu fugindo do casamento, fazendo parecer com isso que sou uma voz dissonante em meio a uma coletividade que sonha com o dia de jogar o buquê, na verdade sou só uma colagem de outras influências do grupo no qual estou inserido. Se numa escala mais ampla, "o grupo", pensado assim de forma difusa, valoriza o casamento, pode ser que as influências mais diretas que recebi, de pessoas específicas, de leituras específica, de estímulos externos, tenham sido voltadas a cultivar momentos em que estou sozinho. Minha subjetividade foi moldada também.

— Então, você não quer seguir a boiada e viver como a sociedade impõe, mas segue a boiada, vivendo de forma diferente. Não estou entendendo.

— Eu sigo uma boiada dentro de outra. Uma corrente dentro de uma estrutura maior e mais abrangente. Mas, não vamos tergiversar. Voltando ao assunto principal, é necessário entender que, se por um lado seus valores são valores que o meio lhe impõe, por outro lado, você deve abraçar quem você se tornou e aceitar que você pode ser diferente e isso não é nenhum problema. Se você não se sente feliz com um "momento grandioso" talvez porque não exista um momento grandioso em si mesmo, mas um momento ao qual atribuem o valor da grandiosidade. É o tal roteiro do qual estou falando. Eu não preciso estar feliz porque as pessoas dizem que devo estar feliz. Como na formatura, por exemplo. Você pensa que há algo de errado consigo por ter se graduado e não ter se empolgado? Você já viu uma mãe com depressão pós-parto? Já procurou se informar sobre a culpa que sente por não estar feliz com a chegada do bebê, mas deprimida? Vê que ela sofre duas vezes: a primeira dor é a própria depressão em si; a segunda é a culpa por estar deprimida quando o mundo inteiro lhe cobra que esteja radiante. Ela não segue o script e se sente a pior pessoa do mundo.

— Entendo.

— Sabe se essa mãe curtiu a gravidez? Ou se não curtiu a gravidez, mas a novela que passava na TV, ou a promoção à diretoria do setor na empresa em que trabalha... Qualquer coisa. Qualquer coisa que não fosse o marcador "mulher que espera um bebê". O que, no curso do processo a fez feliz, que a maternidade não superou? E por que lhe tiraram isto para a colocarem a ser mãe? 

— É isso que você chama de roteiro?

— Por que você seguiu uma faculdade, que não lhe trouxe felicidade? Por que vai se empregar num emprego que não lhe trará felicidade? Por que pode se prender numa relação que não lhe trará felicidade? Por que não ficará feliz quando segurar no colo seu primeiro bebê?

— Aí, você já está conjecturando...

– Mas, não é esse o cerne de questão! Eu apenas ilustrei que muita gente segue o fluxo. E você está seguindo também! Espero que encontre em algumas dessas etapas um pouco de felicidade. Mas, você não tem garantia alguma de que o fará! Tomara eu esteja errado e você encontre. Mas, você não pode apostar por isso. E aí? Se não acontecer, o que você vai fazer? Vai continuar seguindo o roteiro? Não se trata de te tirar do fluxo, mas apenas te mostrar que você segue um! Para que, amanhã ou depois, se você estiver insatisfeito no rumo que está levando, você possa ao menos cogitar a possibilidade de haver outros... porque as relações entre as coisas são dinâmicas demais para caberem numa escalinha de tempo. Você não quer a porra do namoro? Namore! Vai esperar voltar da Europa, depois de financiar o carro, quando tiver parcelado seu apartamento, após a promoção da empresa em que você trabalhou por dez anos, depois do mestrado, para só então experimentar algo novo?

— Mas, eu estou correndo atrás do meu sonho!

— Que sonho é esse que você persegue e que a cada dia te deixa mais exausto de tudo? Com que estado de ânimo esse sonho vai te encontrar? A vida é o que acontece todos os dias desde que você nasce até quando você morre. Toda a espera não é nada mais que uma projeção de vontade. E não é uma vontade que surge do nada, é uma vontade à qual você é treinado a sentir. E aí, você passa a existência esperando da vida algo que ela não necessariamente irá te dar. Ela até pode. Por sorte. Mas, não necessariamente irá. Enquanto seu evento grandioso não chega, o que você estará fazendo? Isso é vida. Não é nada que tenha em si própria um valor, a não ser o valor que damos a ela. Se você renega todo esse tempo em que O Momento não chegou, você faz o quê? Esse marasmo é vida acontecendo. E todos os dias, a cada dia, a gente precisa tentar encontrar uma razão para estar aqui. Porque senão a existência se torna insuportável! Pra que projetar essa razão para um evento futuro e incerto para então esperar a magia acontecer?

— Parece papo de coach, até me admira você com esse discurso de autoajuda... Chega a ser engraçado você tentar me dizer que a magia acontece a toda hora...

— Você não entendeu nada, então... Não estou tentando lhe dizer que a magia acontece a toda hora, o que estou dizendo é que talvez a magia não venha a acontecer nunca...

— Vai à merda com seu pessimismo!

— ...E isso só se torna um peso quando a gente espera da vida o que ela talvez nunca venha a nos dar. Quando a gente deixa de desejar, a gente deixa de sentir a falta.

terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Na briga Bolsonaro x Globo eu torço pela briga

Nesta semana um amigo me conclamou, empolgado, a ligar a TV para ver o Jornal Nacional: "você tem que ver como a Globo está batendo no Bolsonaro!", disse naquele estado de euforia, típico de quem vem seu inimigo ser atacado. Em resposta eu lhe disse que não me empolgo vendo a Globo bater em Bolsonaro. Comentei que bater em Bolsonaro para trocar por Moro, Luciano Hulk ou Dória seria varrer a sujeira para baixo do tapete, enquanto o discurso focasse apenas na derrota do atual presidente, pouco se resolveria.

Aparentemente decepcionado e surpreso com minha reação blasé, chamou-me de radical, arguindo que eu deveria comemorar as pequenas batalhas. Não tiro sua razão em nenhuma das constatações: sim, eu sou radical, a propaganda esquerdista que eu levanto é sempre focada em combater o problema pela raiz, derrubando o capitalismo em vez de insistir no erro de tentar consertar o que não tem conserto. E sim, é preciso comemorar pequenas vitórias, e não pensem que não comemoro cada soco simbólico que Bolsonaro leva na cara e comemoraria ainda mais se o soco fosse literal e lhe quebrasse pelo menos uns dez dentes.

Mas, continuo não me empolgando com a Globo batendo no Bolsonaro. O grupo Globo pertence à família Marinho, que já ocupou o posto da mais rica do Brasil, detentora de uma fortuna aproximada de R$ 64,3 bilhões de reais, segundo a revista Forbes. E não a toa, estampou em sua programação a defesa massiva da reforma da previdência, a defesa da reforma trabalhista no governo Temer, apoiou o Golpe Militar Empresarial de 1964, a operação Lava Jato e duas perseguições ao PT, as manifestações pró-golpeachment, além da famigerada campanha "Agro é Tech, Agro é Pop" (vai vendo). Não surpreende que a Globo defenda medidas que somente beneficiam o empresariado, tentando formar uma opinião pública incutindo na cabeça do seus espectadores a falsa percepção de que beneficiar a burguesia também lhes beneficia. Isso explica parcialmente o fenômeno "pobre de direita", aquela barata que veste camisa de futebol e vai para a rua defender o inseticida e a sandália que irão matá-las, chamando-os de mito.

A família Marinho é detentora maior grupo de comunicação do Brasil, mas também têm fazendas e empresas de produção agrícola, como a Fazenda Bananal Agropecuária, as Fazendas Guara Agropecuária e a Mangaba Cultivo de Coco. Além disso, a Globo Comunicações e Participações S/A é integrante da Associação Brasileira do Agronegócio (Abag). Dona de terras improdutivas, como a Fazenda Aliança, no município de Eunápolis, região Sul da Bahia, com mais de mil hectares (cada hectare equivale a 10.000 metros quadrados ou uma área de 100 metros de largura por 100 metros de comprimento), a família Marinho e, consequentemente, a Globo, não tem o menor interesse na implantação de reformas de base, como a reforma agrária, medida necessária e defendida pela esquerda.

A Globo, assim como os demais representantes da burguesia, precisa de políticas de austeridade, que retiram direitos trabalhistas e promovem a concentração de riquezas, mantendo a atual estrutura de desigualdade social e econômica. E justamente por isso, faz campanha aberta ou velada para a adoção de políticas públicas pautadas no beneficiamento de capitalistas em detrimento da grande massa de trabalhadores. Se é possível responsabilizar alguém pela ascensão deste governo, este alguém é justamente a Globo.

Jair Bolsonaro ainda em sua campanha nomeou Paulo Guedes seu Ministro da Economia e prometia políticas neoliberais, com o enxugamento da máquina pública, privatizando empresas públicas para possibilitar ainda mais concentração de riquezas nas mãos de uns poucos grupos privilegiados, como a própria família Marinho. Cada vez que Jair Bolsonaro se manifestava a favor da violência no campo, fomentando a criminalização de movimentos populares como o MST, membros da família Marinho respiravam aliviados de que seus latifúndios estariam preservados.

Quiseram os deuses que o idiota que nos governa se indispusesse com os veículos de imprensa e passasse a ameaçar publicamente retirar a concessão da Globo caso fosse reeleito em 2022. Bolsonaro se tornou a fera criada para atacar quem ousasse tocar na propriedade do seu dono, mas que cresceu tanto, perdeu o controle e mordeu a mão de quem o alimenta. Seus desvarios paranoicos trouxeram insegurança até mesmo ao empresariado que o elegeu, tornando-o persona non grata.

A crise sanitária decorrente da pandemia de COVID-19 e as trapalhadas assassinas promovidas pelo presidente desgastaram sua imagem e este foi o momento perfeito para que a Globo resolvesse bater nele, insuflando os ânimos da população a pedir o impeachment do presidente. Não nos enganemos chamando a emissora de nossa aliada, porque não é. E neste ponto que faço minha afirmação que me gerou a adjetivação de "radical": "não me empolgo vendo a Globo bater em Bolsonaro, enquanto não bater no próprio sistema capitalista nada vai mudar".

Mas, Guto, tirar Bolsonaro é prioridade agora, depois a gente vê o resto. Não, não vê. De depois em depois, permitimos que uma ditadura militar empresarial se perpetuasse por 21 anos no poder, permitimos o governo Sarney, elegemos Collor e FHC, nenhum deles comprometido com a classe trabalhadora e sim com o capitalismo. De depois em depois, permitimos o golpe que tirou Dilma da presidência e deu projeção à extrema direita bolaonarista. A gente nunca vê o resto e se acomoda.

A Globo já elegeu seu presidente da república Sérgio Moro quando ganhou projeção na imprensa depois de contrariar publicamente seu patrão e pular do barco do governo. A Globo agora já elegeu seu presidente da república João Doria agora que o embate se dá em torno da vacina do coronavírus. A Globo ainda tem no cadastro de reserva o seu funcionário Luciano Hulk para eleger presidente caso algum dos outros dê chabu. Qualquer um que for eleito será seu funcionário. Seu e de todos os demais capitalistas, o grupo de 1% da população, que detém mais de 50% das riquezas do país.

É claro, tirar Bolsonaro do poder é prioridade. Mas, empolgar, empolgar mesmo, só quando a emissora se esforçar para alçar ao poder um representante da classe trabalhadora, levando à sua massa de telespectadores a consciência de classe necessária para derrubar o sistema capitalista e promover reformas de base, tomada dos meios de produção e desapropriação das grandes fortunas com redistribuição de renda para todos. Ou seja, nunca.

Enquanto continuarmos acreditando que Bolsonaro é a causa dos problemas e não sua consequência, não iremos na raiz e continuaremos enxugando gelo, empurrando com a barriga, pulando de austeridade em austeridade, sem vermos quaisquer melhorias estruturais. Ainda bem que sou radical.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

Sabiá do Velho Chico

Sabiá do Velho Chico

Voa, voa, passarinho do Sertão!
Voa longe, atravessa tua terra,
Leva tua arte, faze tua guerra:
No tablado, mostra ao mundo o mundo-cão!

Voa, voa, passarinho do Sertão!
Singra os mares que Antônio Conselheiro
Vislumbrou como um sonho derradeiro,
Quantas ondas nasceriam deste chão!

Voa, voa, passarinho do Sertão!
Posto que em ti tudo é amor,
Colhe o riso onde se plantou a dor.

Vem, sabiá contestador!
Vem, que o riso é ato de subversão!
Voa, voa, passarinho do Sertão...

Gustavo Carneiro de Oliveira
Rio de Janeiro, 08 de janeiro de 2021