segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Da abóbora fez-se a carruagem

Qual Cinderela às avessas, anseio
Ouvir da meia-noite as doze badaladas.
Abóbora em carruagem transformada,
Borralho que se encanta em devaneios.

Dedos ágeis, vozes dissonantes
Expressando as paixões das descobertas.
Dos sentidos, fica a porta entreaberta:
Adentra! Anda comigo doravante!

Mas, por que avança a noite se com a aurora
Dormiremos, num adeus de mãos não dadas?
Ansiedade! Esperarei correrem as horas,

Almejando o avançar de mais um dia...
Volta logo, volta logo, madrugada!
Traz o riso que a manhã não permitia.

Rio de Janeiro, 1º de agosto, 2016.

terça-feira, 12 de julho de 2016

O não casar e o cuide da tua vida!

Sabe a idiossincrasia? Pois é. É a base da empatia. Aceitar que os outros são os outros e que aquilo que serve para os outros nem sempre serve para nós é fundamental. É necessário desconstruir. Sempre. Para que nunca traia a si mesmo, descubra seus limites. E ignore se a sociedade, a família, a escola, os amigos, ou quem quer que seja, tentar fazer com que você os ultrapasse.

Não. Eu não "estou passando da hora de casar"¹. E não. O ser humano não "nasceu para ser casado". Porque a maioria se casa, o não casar não é uma doença.

Sabe a mulher que se ofende com o otário machista que diz que ela não gostou de ser assediada apenas porque "o cara não a pegou de jeito"? Pois é. Não seja esse otário machista.

Sabe o gay que se ofende quando o imbecil lhe diz que ele só é gay porque ainda encontrou a mulher ideal? Pois é. Não seja esse imbecil.

Então, da mesma forma, é irritante e ofensiva essa mania que as pessoas têm de dizer que você não quer casar apenas porque ainda não encontrou a pessoa certa. Não sejam essas pessoas. Aceitem, simplesmente, que algumas pessoas não querem casar porque não querem casar. Porque gostam de si mesmas e de ter da solidão como opção. Porque se divertem com a própria companhia. Apenas aceitem isto. Pelamordejah!

Mas, e quando ficar velho, você vai ficar sozinho?!

Ah, então é isso. Casar é garantir alguém para ser uma espécie de cuidador de idosos? É deixar de viver como se quer viver o dia de hoje para garantir a existência de amanhã, quando a vida deixar de ser uma festa e passar a ser um fardo? Não, obrigado.

__________________
¹ Casar aqui, tomado na acepção mais ampla: morar junto de alguém com se tem uma relação afetiva.

segunda-feira, 11 de julho de 2016

O Vazio do Discurso

Normalmente eu gosto de ver quem concorda comigo. Claro, como ser humano, dotado da prepotência de quem acha que está no topo da cadeia alimentar, eu gosto de ver gente que concorda comigo, já que, supostamente, tratando-se do meu pensamento, é presumível por mim mesmo que aquilo em que eu penso é o correto.

Mas, espero sempre, de quem pensa diferente, que me convença. Amo ser convencido. Mas, não de qualquer forma. Não me transformo com falácias ou premissas prontas. Quando abordo qualquer assunto polêmico, o que quero, de verdade, é que alguém me mostre, dentro da lógica, que eu estou errado, equivocado, incompleto. Algumas (muita) vezes, dou-me conta de tenho pensamentos não compartilhados pela maioria das pessoas que conheço. Por serem "meus pensamentos", prefiro achar que estou certo. Mas, admitindo que é um pensamento pouco compartilhado, acabo sempre me questionando "será que estou com razão?" e, nesta hora, espero sempre que alguém me mostre que não, que não estou certo. Algumas vezes, bem poucas, conseguem me convencer. E não enho nenhum problema em dizer "você tem razão, eu não tinha olhado por este ponto de vista". Na maioria das vezes, porém, não. Quase sempre me trazem argumentos rasos e ultrapassados, calcados em premissas prontas, que aceitam como dogmas e jamais questionam como teriam formado tais premissas.

Acho uma pena as pessoas terem preguiça de pensar para além das próprias premissas.

Imagino o quão triste deve ser a pessoa que diz "melhor mudar de assunto", no calor de um debate, porque não tem mais argumentos e não aceita a possibilidade de ter que mudar de ideia. Estas pessoas têm um apego tão forte às próprias convicções que preferem encerrar a conversa que aceitar que pode mudar. Quando uma discussão gera discordância, é lamentável ver que na maiorias das vezes as ideias se encerram porque as partes envolvidas preferem não brigar. Como se a discordância de ideias envolvesse necessariamente um conflito. "Vamos mudar de assunto, não quero acabar brigando com você."

Sempre que alguém me diz, neste contexto, "melhor mudar de assunto", interpreto isto como "pouco me importo com o que você tem a me dizer, você não irá me convencer" ou ainda, "meus argumentos são tão frágeis que prefiro não discutir mais para não demonstrar a fragilidade do meu pensamento". Qualquer uma das duas hipóteses significa a mesma coisa: "estou de tal forma preso às minhas convicções, que prefiro não me arriscar a mudá-las, mesmo que eu veja que eu devo". É triste demais ver essas pessoas escravas das próprias ideias, que não se permitem mudá-las, que não se permitem desconstruir conceitos tidos como absolutos, sem que jamais tivessem questionado o porquê.

Tenho o máximo do prazer quando consigo olhar para mim mesmo e me dar conta de que vinha reproduzindo pensamentos equivocados e raciocínios incoerentes; quando digo para o outro "você tem razão"; quando me permito olhar sob um prisma inédito até então. Adoraria conseguir compartilhar esta sensação com pessoas que se agarram com tanta força às convicções que, mesmo quando reconhecem a infalibilidade de determinados argumentos, rendem-se a eles e dizem "é verdade, você tem total razão", mas finalizam com "no entanto, continuo não aceitando".

Quem continua não aceitando aquilo com que não tem mais opções senão concordar é escravo da própria intransigência. E não ter liberdade para com as próprias ideias é o pior tipo de escravidão a que se pode submeter. Por isso mesmo que faço minhas as palavras do poeta, preferindo sempre ser essa metamorfose ambulante a ter aquela velha opinião formada sobre tudo.

domingo, 3 de julho de 2016

Cartas

Todas as cartas são comoventes. Pouco importa o teor. São. Ecos de um passado não muito distante, quando serviam de liame entre dois mundos, resgatando um passado um pouco mais distante, da remessa, trazido para outro passado, este um pouco menos, do destino.

Quem lê uma carta, vive um tempo ido. Cartas trazem consigo a incerteza. Quem escreveu a mim está para mim hoje como sua carta que me chegou às mãos? Uma carta é como a luz de uma estrela, que nos chega aos olhos tempos depois de ter saído de lá. E "lá" pode mesmo nem mais existir.

Uma carta é como um botão que une dois lados distantes de uma mesma camisa. É uma ponte entre passado e futuro. Enquanto me escreve, não sabe se serei ainda o mesmo que ora sou, quando chegar o momento de desdobrar o papel e começar a decifrar as letras na sua superfície.

Todas as cartas são comoventes. Não pode não ser comovente, se começa com a ternura de "meu querido" e finaliza com a pungência do "estou com saudades". Porque uma carta é uma ausência. É o sopro de voz de alguém que está longe. É a presença que não se cumpre, senão sob a forma da incompletude.

Ler uma carta é dublar uma voz que não se ouve, de quem falou ontem o que se escuta hoje; quando hoje ficou para trás, porque, afinal, quem ainda escreve cartas? Todas as cartas são comoventes. Há tantos dedos esperando com sofreguidão violar um envelope para desnudar uma missiva, quando há tão poucas mãos que se dispõem a segurar uma caneta para tatuar a superfície do papel.

Escrever cartas deixou saudade. Carta é nostalgia. Duas vezes nostalgia. Porque toda carta traz consigo saudade. Não são apenas letras, rabiscos e uma folha de papel. Uma carta é a falta que alguém faz a outrem. É um retrato de forma poética de um desencontro. Mas, por trazer consigo o desejo, a despeito de esfregar a distância na cara de quem escreve e de quem lê, uma carta é um presente. Raro. E comovente. Como somente as cartas podem ser.

Papo de Homem?

Vi nesta semana uma imagem em que se veem mulheres maquiadas, trajando roupas curtíssimas, posando de costas para a foto, em poses que certamente evidenciam partes dos seus atributos físicos, também conhecidos como bunda. Acompanha a imagem uma legenda em que se lê algo que, se não é isso, é parecido com isso (realmente eu não memorizei, o nível de imbecilidade é tão grande que eu preferiria tê-la esquecido): “são mulheres assim que vivem dizendo que nenhum homem presta”.

A nítida intenção do texto é infamar a imagem dessas mulheres que, tachadas por “vagabundas”, “putas”, “galinhas”, “piranhas” e outros adjetivos pejorativos, não seriam merecedoras de homens de caráter. De acordo com a lógica assustadora da legenda da imagem, restam-lhes apenas os homens que não prestam, aqueles de índole compatível à desse tipo de mulher que, por vestir roupa curta e desejar mostrar partes do seu corpo, não é digna, tampouco merecedora de “alguém que preste”.

Cansa-me profundamente ter de repetir à exaustão o clichê de que roupa nenhuma define caráter, comprimento nenhum de vestido determina merecimento de castigos ou benesses e não me alongarei nesta discussão. Assusta-me pensar que, tão pouco tempo depois da imensa repercussão de um caso de estupro coletivo, no qual a índole da menor estuprada foi reiteradamente posta em xeque nas mídias de todo país, pessoas supostamente esclarecidas compartilhem imagem com este tipo execrável de legenda machista, preconceituosa e estúpida.

Postagem estúpida, extraída de uma página intitulada Papo de Homem (que não deve ser confundida com esta outra aqui, PapodeHomem), é quase inevitável deduzir que os responsáveis pela confecção da montagem e seu respectivo compartilhamento foram homens (não desconsiderando ainda a parcela de mulheres machistas que há, por mais incoerente que isto possa parecer). Sem cérebro, mas homens. E é para esses homens que eu respondo: não é esse tipo de mulher que diz que homem nenhum presta, mas são, sim, esses tipos de homem que fortalecem a ideia errônea de que nenhum de nós vale alguma coisa.

terça-feira, 14 de junho de 2016

Administração do companheiro ou desapego

Em um debate sobre relações abertas e poliamor, deparei-me com um comentário em tom jocoso, que me pôs a pensar. Uma das pessoas presentes disse que pessoas envolvidas em relações coletivas devem ter um poder de administração que jamais terá; disse que administrar um parceiro já é difícil, mais difícil ainda será administrar dois.

Depois de abordar o assunto em duas discussões distintas num mesmo dia, com um intervalo de menos de cinco horas entre uma conversa e outra, pus-me a pensar a respeito e cheguei a algumas conclusões.

De fato, administrar um parceiro ou uma parceira é difícil. Porque "administrar" acaba se tornando sinônimo de "tomar conta de" ou "controlar". A ideia por trás de “administrar” está atrelada à noção de "tomar conta do que é meu", o que, por sua vez, está correlacionado à percepção do parceiro ou parceira como propriedade sua, como aquilo sobre o qual se deve ficar de olho para que outra pessoa não venha “tomar posse”.

Neste sentido, é possível dizer que “administração” de dois ou mais companheiros, companheiras, namorados, namoradas, ou o nome que se quiser dar, é bem mais fácil. Justamente porque a ideia de administração perde o significado de controle sobre alguém. Antes, adquire contornos de descentralização. As responsabilidades para com os respectivos parceiros passam a ser dividas com os demais.

Quando se desapega desta ideia de ter uma pessoa como sua propriedade, o ciúme passa a ser irrelevante, já que a noção de exclusividade se dilui. O ciúme é fruto da percepção do outro como algo que pertence alguém. Mas, além disto, vem também do pensamento arraigado em nossas cabeças – dentro dos padrões impostos pela sociedade – de que o outro deve ser exclusividade de um ou de uma somente. E isso traz em si um medo poderoso, reproduzido automaticamente por quem aceita, sem questionar, os padrões de relacionamentos tais como são empurrados goela abaixo.

O silogismo é inevitável se adotamos como premissa que seu parceiro ou parceira “deve pertencer” a apenas você e a mais ninguém. Ora, se ele, ou ela, se sentir atraído (a), interessado (a), afetivamente envolvido (a) por outra pessoa; e ainda, considerando-se que ele, ou ela, deve ser de um só – no caso, você – necessariamente, a situação implicará em uma escolha. Seu parceiro terá de escolher entre você e a outra pessoa. Este outro assume uma posição de ameaça. Uma sombra que representará a probabilidade de ruptura do laço que une vocês dois. Deverá necessariamente haver uma escolha e uma renúncia, já que a conciliação, nesta hipótese, não é uma alternativa. O outro passa a ser um substituto em potencial de você.

Se você aceita que seu parceiro é livre para ter múltiplas escolhas, que sua atração sexual e afetiva por outra pessoa não implica necessariamente na perda do interesse por você, não haverá, consequentemente, necessidade de fazer uma escolha. Você não verá o outro como um inimigo que poderá usurpar seu lugar. Porque o lugar que você ocupa é seu. E haverá outros lugares para que outras pessoas também ocupem. E todos poderão coexistir. O outro passa a ser irrelevante na relação que você mantém com a pessoa com quem você está. O outro não precisará mais ser um substituto de você, mas será um complemento de você. Será um acréscimo, não uma substituição.

segunda-feira, 13 de junho de 2016

A Revolta de Atlas ou Quem é John Galt?

Sou simpatizante do pensamento esquerdista, de dar igualdade de oportunidades a todos e dividir dentre todos os resultados.

Mas, para não me perder na visão de um só lado, venho buscando, como em tudo que faço, conhecer o lado oposto. Assim, vou contrapondo paradoxos e formando minha opinião através de um processo dialético. E juro que tento ser o mais imparcial possível em minha análise.

Um amigo de direita me indicou a leitura do romance A Revolta de Atlas, de Ayn Rand, escrito em 1957, que, segundo ele, mostraria a mim uma outra visão do Capitalismo e mudaria completamente minha percepção sobre os ideais socialistas.

Ainda não terminei a leitura da imensa obra de cerca de 2.000 páginas, mas, tendo ultrapassado a metade do livro, o que já não é pouca coisa numa leitura de tanto conteúdo, creio que posso me posicionar acerca da ideia ali trazida.

O obra mostra o declínio de um país solitário em que o Capitalismo agoniza em meio a um mundo dominado pelo Socialismo. Os heróis do enredo são os empresários de princípios éticos rígidos, que tentam a todo custo demonstrar que a produção de bens e serviços compartilhada entre pessoas não qualificadas gera escassez, acarretando, consequentemente, no colapso de toda a economia. Sem a produção das grandes empresas, a população sofre com desemprego, com a fome, com falta de bens essenciais. É, de fato, um cenário aterrador.

Enquanto lutam para ter o direito sobre suas empresas, o casal protagonista combate um Governo formado por homens hipócritas que tentam, de todas as formas, usurpar bens e serviços, supostamente em nome do bem público. Ao longo do romance, o leitor não consegue não torcer para o êxito de Dagny Taggart e Hank Rearden, que mostram com o trabalho, que o destino do país não está em um regime socialista imposto por uma oligarquia oportunista, que visa a se apossar do resultado da produção em detrimento do mercado e da população e com o sacrifício dos grandes empresários. Antes, mostram que a atividade econômica, se explorada por profissionais competentes, gera empregos e lança serviços e produtos no mercado, trazendo conforto a toda a população.

E aí, infelizmente, percebo que o livro sensacional de Ayn Rand ainda está longe de me convencer a mudar de ideia. Porque sua falha argumentativa é evidente ao tomar por premissa que os socialistas são, necessariamente, homens fracos e incapazes que, por nunca terem obtido sucesso e dinheiro em suas atividades comerciais, passam a perseguir aqueles que o obtêm. Da mesma forma, o livro mostra industriais e empresários honrados e de índole irrepreensível, que não exploram o homem, mas que pagam salários justos e acima de qualquer mercado, dando a cada empregado, condições ideais de exercer sua profissão.

Óbvio que o livro não se resume apenas a isto e traz diversos outros debates filosóficos paralelos, como o paralelismo entre individualismo e altruísmo, questionamentos acerca do amor próprio e dos sacrifícios pessoais, hedonismo, epicurismo, etc. É uma das bases da filosofia objetivista, com a qual até nutro alguma identificação.

A leitura é recomendadíssima! Claro que, abstendo-me da realidade e aceitando como contexto o cenário ali pintado, minha torcida será para que os heróis da estória derrubem aquele governo socialista e devolvam o equilíbrio ao mercado, voltando a produzir, voltando a gerar empregos e punindo aquelas pessoas que nunca produziram nada, mostrando que o futuro do país e do mundo está no Capitalismo.

Fora do contexto do romance, no entanto, ainda espero ser convencido de que a exploração do homem pelo homem e a centralização dos meios de produção em monopólios ou oligopólios seja mais útil à sociedade que a igualdade de oportunidades e equilíbrio das desigualdades sociais através de subsídios estatais.

O que vejo, no entanto, é que qualquer sistema econômico pode ser justo ou injusto enquanto a mudança de caráter não ocorrer dentro dos indivíduos que o compõem. E neste caso, não direcionaria minha predileção para o Socialismo ou para o Capitalismo. Mas, para a real valorização do ser humano, o que não sei se algum dia chegará a existir.

quinta-feira, 9 de junho de 2016

O frio que faz aqui dentro

Faz frio lá fora. Não há música. Ao menos, não fora da minha cabeça. Cá dentro, uma melodia patética e pungente ressoa, mas eu não conseguiria cantarolar. Violino. Um solo. Talvez piano. Não importa. Qualquer instrumento de timbre melancólico.

Como tem acontecido com frequência preocupante, meu sono me deixou esquecido na cama. Faz frio aqui dentro. Não, não estou falando sobre meu quarto. Mais cá dentro. Bem mais. Mais frio também. Uma alma que não existe. Uma preguiça medonha de sorrir, de falar, de rir, de chorar, de existir. Sem música, claro.

No silêncio da madrugada, ganha maiores dimensões a tortura de não se ouvir os passos sorrateiros do sono, abrindo a porta lentamente e saindo para ganhar o mundo. Longe, lá bem longe. No frio que faz lá fora.

Meus pés gelados. Meus olhos não fecham. Aqui dentro, não diviso o espaço em que me insiro. Tudo é breu. Agora falo do meu quarto. Frio. Escuro. Silencioso. Como aqui dentro. Não, não meu quarto, meu imo.

O violino não vibra mais. Vai ver era piano. Agora tanto faz. Não há mais música. Se é que houve outrora. Na minha cabeça, talvez? Não há mais nada. Só silêncio. E o frio. Que termômetro algum jamais conseguirá registrar.

sexta-feira, 11 de março de 2016

Se

Se

É como se no entorno tudo se esvaísse
O sonho resvalasse, o mundo se extinguisse
A estrada acabasse, o muro então ruísse
O sol que nos fritasse, a chuva não caísse

A luz se apagasse, a alma não sorrisse
A noite clareasse, o som não se ouvisse
A fome aumentasse, o chão que se abrisse
A morte que chegasse, o filho que partisse

A dor não se curasse, o pássaro fugisse
O monte desabasse, a espada brandisse
A criança clamasse, a mãe não permitisse

A vida que passasse, o olho que nao visse
Então todos chorassem, mas ninguém acudisse
E eu não me importasse. E eu não mais sentisse.

Rio, 10/03/2016.

terça-feira, 8 de março de 2016

Feliz dia das.

Passei minha infância em uma casa com três mulheres mais velhas que eu e com cujos olhos aprendi a olhar o mundo. Obviamente, até uns cinco ou seis anos de idade, minha cabeça - que estava descobrindo o mundo e que, felizmente, ainda está - passou por alguma confusão por ter que lidar com três seres que não eram como eu porque traziam entre as pernas uma genitália diversa da minha.

Levei muita bronca da minha mãe porque fui pego em flagrante tentando usar seu batom escondido. Não, nunca quis ser mulher, até porque com cinco anos eu nem sabia o que era ser mulher ou ser homem. Era apenas uma curiosidade de criança que via as únicas pessoas com quem compartilhava o mesmo teto usando um objeto colorido que eu não podia usar. E como quase toda criança, queria para mim aquilo que o outro tem. Acontece que "o outro" na casa da minha infância eram "as outras".

Da mesma forma, nunca gostei de ficar sem camisa num microcosmo em que todas estavam vestidas e eu era único que me via obrigado a me despojar das minhas roupas. Porque eu era menino. Fazia com que me sentisse diferente. E a adaptação neste pequeno reino feminino não foi tão fácil. Já tinha lá meus sete, oito anos, quando o contato mais prolongado com os garotos na rua me mostraram que havia um universo de meninas e um universo de meninos. Um grande bobagem que tive de aprender para poder viver em sociedade.

Se carrego traumas disso? Não. Ao contrário. Agradeço por ter sido o único homem no meio de mulheres. Ter sido minoria me fez engolir leis ditadas pela maioria. Ditadas, mas não criadas. Não por aquela maioria compostas ali por uma mãe e duas irmãs mais velhas.

Hoje vejo que ter sido criado em um domínio de mulheres, que historicamente vivem dominadas em universo para os homens, me permitiu abrir a cabeça para compreender sua luta. Nunca entendi minhas irmãs dizendo que me invejavam porque eu podia tirar a camisa se sentisse calor e elas não. "Você aí, podendo ficar sem roupa e não querendo. Nós aqui, tendo que viver cobertas da cabeça aos pés!" Por que não, se eram elas quem mandavam no pedaço?! Que engano, não eram! Eram aquele grupo do qual eu havia sido o único dentro de casa em que teve a sorte e o privilégio do pertencer: homens.

Hoje percebo como é libertador não ter que usar maquiagens, fazer unhas, caminhar de salto alto, cuidar da casa, dos filhos, contentar-me com a enceradeira e a panela de pressão recebidas como presente de aniversário, e ainda estar sorridente e sempre à disposição do provedor da família. E me solidarizo com quem tem de engolir leis impostas pelo "macho dominante".

Agradeço por vivenciar tão de perto o universo feminino criado - quem diria?! - por homens e concedido, não tão gentilmente a elas. E agradeço por perceber que universo feminino e universo masculino são reflexo de um mesmo universo: o da estupidez.

Por tudo isso, deixo aqui registrado meu voto de Feliz Dia Internacional da Mulher. Para você que usa salto alto. Para você que é mãe. Para você que é delicadinha. Para você que é sapatão. Para você que é puta. Para você que pilota ônibus. Para você que pilota fogão. Para você que não suporta a ideia de ser mãe. Para você que não arruma casa. Para você que é transexual. Para você que é chamada de vagabunda por usar roupa curta. Para você que tem medo de sair à noite e ser violentada. Para você que, mesmo não saindo à noite, é violentada. Para você que apanha dentro de casa e é julgada pela sociedade por ser obrigada a viver com seu agressor. Para você que é chamada de vadia porque escolhe o homem ou a mulher que vai levar para sua cama. E para tantas, tantas outras categorias que aqui podem ser listadas. A cada uma de vocês, igualdade, justiça, direitos. A cada uma de vocês, felicidade.

terça-feira, 1 de março de 2016

Insônia

Há três horas adormeci. Há uma hora e meia acordei. Um tique-taque insuportável de um relógio velho reverbera em cada centímetro de cada parede no silêncio da madrugada. E o sono não volta mais. Fugiu. Como foge um presidiário escorregadio que cai num túnel que liga o nada ao nada e nunca mais é visto.

Ao longe, carros vão e vêm. Indo para e voltando de. Sabe-se lá para e de onde. Talvez para o mesmo lugar secreto para onde escapou meu sono. Que em sua fuga não encontre pelo caminho um motorista incauto que o receba de braços abertos, olhos fechados e vidros estilhaçados. Se fugiu, que fuja para bem longe. Para além das autoestradas.

Não muito longe um galo canta. A noite é fresca, ao menos. E pela janela ouço a serenata que um grilo não faz para mim.

Em quatro horas precisarei estar de pé, para cumprir meu ofício de lutar contra o sono. Moleque travesso que deveria estar aqui para vencer uma batalha agora e não para me encontrar desprevenido ao amanhecer, tornando mais longas as horas do dia.

O chá me relaxa, as palavras se perdem. E os carros continuam indo e voltando. Ouço-os claramente, mesmo com cada tique e cada taque deste relógio que eu adoraria atirar contra a parede. Passei da idade de ter insônia.

Teimoso que sou, rastejarei lentamente para a cama, onde, resignado, esperarei. Fecharei meus olhos e ficarei à sua disposição. Totalmente entregue, totalmente vulnerável, aguardarei calmamente que ele volte de sua orgia noturna em paragens desconhecidas. Aguardarei, como quem se humilha aguardando um amante que não chega. E se ele chegar, apenas dormirei. Sem questionar. Sem brigar. Dormirei. E me sentirei feliz porque depois de sua farra noturna, terá sido para mim que o sono terá retornado.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

O preço é alto

Depois de ler uma matéria acerca de uma decisão do STJ, de que crianças com idade abaixo de seis anos completos antes de 31 de março não podem ingressar no ensino fundamental, e de verificar questionamentos de mães sobre o impacto desta decisão, comecei a lembrar da minha própria história educacional.

Faço aniversário em maio, no dia 23. Quase três meses depois da idade limite estipulada pelo Conselho Nacional de Educação, ratificada pelo STJ. Aprendi a ler com quatro anos e não cursei a alfabetização. Pulei do “pré”, direto para a primeira série, aos cinco anos de idade. Era o mais novo da turma, realidade que permaneceu até meus 15 anos, quando, em 1995, cursei o 2° ano do Ensino Médio, naquela época, ainda chamado 2º Grau. Nesse ano, fui reprovado e, ao repetir o 2° ano, finalmente estudei com colegas na mesma faixa etária que a minha - "adequados" à turma.

O que posso dizer é que, ao longo da minha vida escolar, sofri muita pressão por ser o "mascote" da turma, que entrava sempre na classe como o "menino prodígio" e assim era obrigado a me portar. Uma nota abaixo de 8,0 era praticamente uma afronta! Lidar com isso durante a infância era até OK. Até porque eu gostava de estudar e era vaidoso o bastante para sentir prazer em mostrar meus conhecimentos. E sobre a adaptação, o que significaria ter um ou dois anos a menos que os colegas, não é?

Mas, ter 12 anos numa turma em que a maioria tinha 13 ou 14 foi brutal e fez um estrago enorme na minha cabeça. Eu ainda era criança no meio de pré-adolescentes. O sentimento de desajuste trouxe uma confusão imensa e um processo de adaptação complicadíssimo. Enquanto os outros falavam em namoricos de escola, eu ainda pensava em gibis da Turma da Mônica e jogos de tabuleiro. Obviamente, era alvo de bullying pelos mais velhos. Sem falar na autoestima completamente prejudicada, já que eu era a companhia desinteressante, com quem ninguém queria andar. Afinal, meus interesses eram apenas os meus e não eram compartilhados por aquela turma de mocinhas e rapazotes, ocupados demais em aprender a lidar com a puberdade. E toda essa confusão mental – como não poderia deixar de ser – refletiu no meu desempenho escolar. De “menino prodígio”, “tornei-me o aluno relapso”, a ponto de reprovar em quatro disciplinas (duas das quais eu amo, frise-se: História e Química). O preço é alto.

A sensação de não pertencimento a nenhum grupo fez o estrago que fez na minha adolescência e isso só começou a se aliviar entre meus 17 e 18 anos, quando comecei a me ajustar um pouco mais, já que comecei a andar com pessoas da mesma idade e com os mesmos interesses. E nesta fase, novamente, as pequenas diferenças de idade realmente passam a ser pequenas, possibilitando o convívio harmônico entre os mais novos e os mais velhos.

Porém, o estrago já havia sido feito, lá atrás, entre os 12 e 14 anos, e “começar” a me adaptar aos 18 significou que, pelo menos, por mais uns cinco anos seguintes ainda havia uma série de conflitos para serem quebrados. O preço é alto.

Portanto, pais e mães que querem incentivar a antecipação da vida escolar de seus filhos, tenham muito cuidado antes de quererem adiantar sua série. Pode até ficar bonitinho no boletim, mas na cabeça da criança, pode gerar linhas ilegíveis e cálculos com resultados que nunca batem. E o preço disto? Ah, é alto. Muito alto.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Chuva de Verão

Chuva de verão

Caem do céu, sem lamento, choro ou mágoas.
Pesadas, resvalam em apressadas faces
Escorrem pelo chão: genocídio de águas...
Morrem solitárias. Não há quem as abrace?

Líquida joia, diamante diminuto
Donde vem a plúmbea ausência de suas cores?
Tudo é cinza: seus sorrisos, suas dores!
Tudo é brilho: seus reflexos, seu luto!

Chove... chove... O céu desaba em fragmentos!
Galhos que se curvam, folhas que valsejam
Quando passa em seu cortejo o nobre vento.

Que rufem os trovões à Sua Majestade,
Rodopia o mundo (Vejam! Vejam!)
Quando desce com noite a tempestade.

Rio, 19/02/2016.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

A Cura da Transfobia e a Ressaca Depois do Carnaval

Depois de duas semanas polêmicas, nas quais falei de racismo, suburbanos e gays, vi, durante o Carnaval, circulando nas redes sociais, umas fotos de um rapaz bonitão beijando uma travesti. Vários ângulos, vários cliques e vários comentários, todos repetidos à exaustão. Desde os cliques, que sempre denotavam o imenso prazer do rapaz e do travesti de estarem um com o outro; aos comentários, que sempre mencionavam, em tom constrangedoramente jocoso, o suposto papel de trouxa que o rapaz teria feito ao ser enganado por uma travesti.

Depois de falar sobre tantos temas capazes de despertar a ira de muitos e o apoio de outros tantos, num intervalo tão curto de tempo, prometi a mim mesmo que não comentaria sobre o caso. Mas, eis que ainda hoje, passados mais de sete dias depois do Carnaval, parece-me que não se passaram os efeitos colaterais da bebedeira e dos desvarios típicos da Festa da Carne. E assim, numa constante embriaguez de ideias turvas, a capacidade de falarem besteiras parece não ter fim. Sim, ainda hoje, vi o assunto ser trazido à tona outra vez.

Novamente o mesmo tom ridicularizando o rapaz. Sempre o pobre rapaz, vítima das artimanhas da travesti do mal, enganado em sua honra, ridicularizado em sua masculinidade profundamente abalada. Poderia discorrer agora sobre este papel da vilã sórdida e enganadora atribuído à travesti e o papel de mocinho inocente enganado atribuído ao rapaz, e com um elo de ligação para abordar o papel da enganadora Eva ao trouxa do Adão, discorrer de forma prolixa sobre feminismo e misoginia, mas preferirei não fazê-lo. Não ainda.

Em uma semana na qual um pastorzinho com "a cara do leão" devorador de ovelhas trouxe novamente à mídia a então ultrapassada e medieval discussão sobre cura gay, achei por bem focar nos temas homofobia e transfobia.

E vendo novamente a repercussão das fotos do Casal Frisson deste Carnaval, a pergunta que faço é: Será mesmo que o rapaz foi enganado? Desdobrando o questionamento em inúmeras outras perguntas, será que ele não pode ter escolhido deliberadamente uma travesti para se relacionar durante o Carnaval, ou quem sabe, para além das festividades? O fato de o rapaz ter um perfil físico capaz de imperar no imaginário e nos desejos de muitas mulheres e de muitos homens tira de si o direito de escolher uma travesti para beijar durante o Carnaval?

Em uma semana na qual se falou sobre cura gay, acredito que seria muito mais saudável se tramitasse no Congresso uma lei que instituísse a cura da homofobia e da transfobia. Até porque, de acordo com a Organização Mundial de Saúde, homossexualidade não é uma doença, fobias são. Claro que este projeto de lei que prevê a cura da homofobia e da transfobia não passa de uma brincadeira utópica da minha cabeça. Mesmo porque, ainda de acordo com a OMS, a cura de algumas fobias pode ser obtida através de cirurgias que retiram parte do cérebro do paciente. E no caso de transfóbicos e homofóbicos, como retirar parte de um órgão que estas pessoas não têm?

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Vai ter suburbano, sim!

Aos nove anos, saí do Espírito Santo, onde nasci, para morar na Bahia. Quando dizia aos meus colegas que iria embora para a Bahia, a reação deles e a minha era sempre de pena e de autocomiseração. Afinal, eu iria para a Bahia, aquele lugar feio, subdesenvolvido, com terra árida e cuja população tinha um alto índice de pessoas negras. Era de dar pena uma criança branca e de olhos claros, acostumada a uma terra civilizada, repleta de outras pessoas brancas e de olhos claros, ter, de repente, que enfrentar aquela realidade nova e assustadora.

Assim, segui rumo ao meu exílio para o Nordeste do Brasil, lugar onde, antes mesmo de lá pisar, fui ensinado a odiar ou do qual me compadecer. Vivi meu preconceito e sofri por causa dele. Uma espécie de banzo me acompanhou por eu ter sido obrigado a lidar com aquela gente inferior a tudo aquilo que eu era.

Era de dar pena. Não, não a situação do menino branco, capixaba e mimado, que achava assustador ter que enfrentar os bárbaros nordestinos e inferiores. Mas, o tipo de criança mesquinha e preconceituosa que ensinaram este moleque a ser.

Um dia eu cresci e me dei conta de que era baiano, era fascinado pela cultura negra, deslumbrado com a capoeira, os atabaques, a culinária típica, era apaixonado pelo sertão de solo e feições rachadas e aquelas pessoas simples, cheias de histórias para contar. Estava livre do garoto antipático e preconceituoso que um dia fui e me sentindo grato por ter tido contato com culturas diferentes daquelas em que fui criado.

Aprendi a simpatizar com a pobreza, com o subúrbio, com negritude, com o sotaque carregado, com o som das periferias, com a batalha das pessoas que carregam latas d'água na cabeça ou cestas de salgados para vender na praia. E qual não foi minha surpresa quando me dei conta de que... Epa... Meu pai é negro, minha avó era lavadeira e eu nunca fui tão branco assim; ah, e sempre fui pobre.

Mas, nunca deixei de lado meu gosto tido por elitizado. Quando passei a curtir samba e ópera com a mesma intensidade, literatura de cordel e poesia simbolista com a mesma emoção, ballet e passinho com o mesmo encantamento, percebi que eu podia transitar livremente entre todos os mundos. E não trazer qualquer tipo de rótulo era libertador.

Infelizmente, ao longo da vida, convivi com muitos "antigos eus", gente que carrega tanto preconceito , que não consegue enxergar a própria  pequenez diante de um universo tão diversificado.

Lidar com tudo que nunca foi meu fez de mim um possuidor de tudo. Longe de mim carregar um discurso demagogo e despeitado, desdenhando do que não posso ainda alcançar, para supervalorizar aquilo que é costumeiramente menosprezado. Sim, eu adoro a Zona Sul carioca e adoraria morar em uma cobertura gigantesca na Vieira Souto, de frente para o mar. Sim, adoro restaurantes caros e requintados, e quem me dera eu pudesse frequentá-los diariamente. Adoro assistir a concertos de música clássica no Theatro Municipal e quem me dera não tivesse vizinhos ouvindo som alto e atrapalhando meu sossego em casa quando quero o silêncio.

Mas, gostar de tudo isto não me impediu de morar no subúrbio do Rio e saber aproveitar o que esta gente pobre, negra e de baixa instrução tem a oferecer de melhor! E põe "de melhor" nisso! Frequentador assíduo da praia de Ipanema até uns anos atrás, não senti pena de mim mesmo quando tive de me mudar para a Baixada Fluminense, como sentia vinte e tantos atrás quando saí do Espírito Santo para a Bahia. Ainda acho que Nova Iguaçu possui os melhores restaurantes com os melhores atendimentos da região.

Mas, tudo isso não me impediu também de encarar as pessoas chocadas, estupefatas, estarrecidas e abismadas, repletas de um deprimente misto de asco, medo e piedade porque em dado momento eu precisei ou optei por frequentar lugares tidos como abaixo de suas condições. Cresci lidando com isto. Do Espírito Santo fui para a Bahia. De uma cidade à beira-mar, fui cursar faculdade e morar numa favela à beira da estrada. Ao vir para o Rio, saí de um bairro perto da praia (mas que também não era Zona Sul e exigia a travessia de um túnel para chegar nela) para outro no subúrbio, de onde me afastei mais para ir para a Baixada, até voltar para o subúrbio, onde vivo atualmente. E todas essas fases sempre acompanhadas de olhares e questionamentos, comentários preconceituosos e discriminativos de muita gente à minha volta.

Quando deixei de escolher Ipanema e Leme, substituindo-os por Madureira e Inhaúma, passei a ser julgado. Lidar com gente preconceituosa nunca foi surpreendente, diante da trajetória que vivi e narrei acima. Mas, sempre foi imensamente desagradável. Dias atrás, exaltei o Parque Madureira, minha opção no verão deste ano, e fui surpreendido pela pergunta de um morador de Campo Grande, bairro da Zona Oeste, imensamente mais longe e ainda mais carente que o subúrbio da Zona Norte:

"- Parque Madureira? Mas, lá não tem muito favelado?"

Depois de revirar meus olhos verticalmente em quase 180 graus, sorri e respondi, seguindo-se o diálogo:

 - Óbvio que tem! Madureira é uma favela. E eu, que moro aos pés do Morro do Dezoito, na Piedade, sou favelado também. Eu estava lá. Como eu, muitos outros.
 - Você não é favelado! Você é civilizado..
 - Não sou? Claro que sou! E você também, né? Você mora em Inhoaíba, Campo Grande!
 - Não. Favelado, quero dizer, bandidinho, baderneiro, você sabe, né?
 - Sim, sei. Infelizmente os conceitos se mesclam. Favelado agora virou sinônimo de bandido. Preto, pobre, suburbano, tudo isso é sinônimo de bagunça, confusão, baixaria. Não, o Parque Madureira é um dos lugares mais incríveis que conheço aqui no Rio! Tem preto, tem pobre, tem favelado, tem funkeiro, tem tia gorda gritando com Cleudismar e o Cleydson... Tem tudo isso! E por isso mesmo é incrível. Porque nos coloca em contato com gente de verdade, de todo tipo, de todo modelo, de toda variedade...

Infelizmente esse pensamento ridículo, prevalente em mentes pouco evoluídas, se multiplica a cada geração que perpetua a (des)educação que recebeu.

Nesta semana, ouvi de um morador da Tijuca, bairro de classe média da Zona Norte, a mesma Zona Norte onde também se encontra Madureira, comentários que não me despertaram menos que asco e desprezo, sobre a área de lazer que escolhi: "(...) Mas, vai para a porra de Madureira!? Você tá me debochando, adoro você, mas MADUREIRA? (...) ele é muito fofo para ir para Madureira. (..) Comer pastel em MADUREIRA?!"

Sim, Madureira! Se pessoas pequenas não sabem abrir os olhos para o que foge de sua zona de conforto e não conseguem aproveitar o que há de melhor em cada uma das regiões além das suas, só lamento pela redução de seus horizontes, e pela limitação do seu prazer.

Felizmente, quando criança fui morar aos nove anos na Bahia, fui apresentado àquela gente então estranha, naquela terra seca e encarquilhada, que descobri, tempos depois, que era muito mais chuvosa e próspera que muitos outros lugares por onde andei. Conheci a capoeira e o candomblé, a simplicidade sertaneja e ostentação das praias mais belas em que já pisei, o sotaque carregado e o vocabulário estranho que substitui "canjica" por "mungunzá". Felizmente, quando adulto, conheci Madureira e suas pretas roliças e bundudas, seus feirantes, suas frequentadoras de baile charme, seus homens de pele curtida pelo sol escaldante, a algazarra de suas crianças, as Velhas Guardas de suas escolas de samba, e seu parque.

Por tudo isso, se eu tiver mesmo de escolher entre o preto favelado do subúrbio e o burguesinho tijucano metido à besta, não pensarei duas vezes antes de fazer minha opção: Madureira, aí vou eu.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

O Racismo e a Relativização nas Discussões

Hoje vi uma foto de um rapaz e uma moça, ambos brancos, fantasiados de Aladim e Jasmine. O rapaz carregava em seus ombros um garotinho, moleque, de uns quatro anos, talvez, negro, que compunha o conjunto, fantasiado de Abu, o simpático macaquinho do Aladim.

Todos na foto pareciam felizes, inclusive o menino. Quem me mostrou a foto apenas me disse "Olha isto!". Fiquei algum tempo olhando sem compreender exatamente o que ele queria dizer com "isto". A fantasia do grupo? A beleza dos envolvidos? A composição da foto? Por alguns poucos segundos fiquei perdido, até que li parte do texto que acompanhava a foto e perguntei "é sobre racismo?". Era. "Não é um absurdo?"

Por mais uns segundos, minha mente vagueou pelo sorrisão da criança nos ombros do rapaz, ambos pareciam estar bem felizes juntos. Alguma relação de carinho parecia haver entre os dois. E resisti um pouco antes de enxergar racismo naquela imagem.

Depois de ter protagonizado, dias atrás, um pseudodebate no qual não pude sequer finalizar meu ponto de vista acerca de um ponto exposto e, antes de terminar de dizer o que eu tinha para dizer, fui sumariamente tachado de racista (eu, racista?! LOGO EU, RACISTA?!?!), tentei enxergar com outros olhos a situação exposta na foto - cobrando de mim mesmo para que não a visse com olhos de quem sempre carregou o privilégio e a comodidade de ter a pele branca em uma sociedade segregacionista como a nossa - até comentei, de forma vaga, concordando que a imagem era forte ao trazer um casal branco vestidos de príncipe e princesa e uma criancinha negra vestida de macaco, "Gente, que coisa..."

Mas, o que realmente me marcou ao ver a foto foi o semblante de alegria dos três ali. Não enxerguei racismo na relação carinhosa de duas pessoas brancas e uma criança negra. Até me culpei por não enxergar aquela forma "tão óbvia" de discriminação, segregação. Em algum ponto obscuro da minha mente eu cheguei a pensar que as pessoas que me apontaram o dedo, julgando-me racista, tinham razão. Que vergonha!

No entanto, tentando enxergar o melhor de cada um, prática esta que sempre tomo por princípio, felizmente, comecei a me perguntar: "será que alguém contextualizou a imagem?", "será que a criança não foi idealizadora da brincadeira?", "será que o casal de pessoas brancas não é de tios, amigos, ou mais, pais adotivos de uma criança negra?", "será que a atuação não era mais que apenas fantasia de carnaval, fazendo parte de alguma peça teatral ou algo de tipo?". Não creio que uma criança a quem alguém discriminaria por ser negra seria carregada e segurada com tanto afeto como aquela na foto, pelo casal que a discriminaria. Não creio.

Uns dias depois do tal pseudodebate que, ao que me parece, custou-me uma amizade, fui criticado por outro amigo - este permanece, felizmente - alegando que eu sou excessivamente "relativizador" e que algumas situações não permitem qualquer olhar condescendente, devendo ser sumariamente categorizadas valoradas, limitadas por uma caixinha, organizadas na prateleira, exigindo um julgamento imediato, sem ampla defesa, sem sopesagem dos fatores.

Vestir uma criança negra como um personagem, que calha ser um macaquinho, seria uma destas situações que não permitem qualquer tipo de relativização? Ainda que esta criança fosse adotada por um casal inclusivo que decidiu dar a ela um futuro digno, retirando-a de um orfanato? Ainda que esta criança nunca tenha tido uma oportunidade na vida de se divertir fantasiada do que quer que seja em um bloco de carnaval? Ainda que esta criança negra não seja a única em um grupo que contenha outras crianças também fantasiadas de Iago, sultão ou outros personagens da história do Aladim?

Não sei se algumas destas conjecturas é real, mas não consegui deixar de pensar nelas antes de apontar o dedo para o casal por uma foto, dentro de um contexto que não conheço, e julgá-los sumariamente como racistas, como fez o tribunal das redes sociais. Apenas para lembrar, este tribunal foi responsável pelo assassinato de Fabiane de Jesus, no Guarujá, em 2014, espancada até a morte após ser confundida com uma sequestradora de crianças. Apenas porque não relativizaram a situação. Porque não pensaram que “poderia não ser”.

A imagem pode ser impregnada de racismo? Pode, sim. Não conheço o casal, não conheço a criança, não conheço a circunstância. Então, é claro que pode! Mas, pode também não ser. E de pensar isto jamais abrirei mão.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Silêncio! É de lei.

“Ah, mas posso fazer o barulho que eu quiser até às 22 horas!”

Não, seu sem educação! Você não pode! Não invoque o Santo Nome da Lei do Silêncio em vão. E que lei é esta, sobre a qual todo mundo fala, mas ninguém sabe exatamente o que diz? Então, em nível nacional não existe – pelo menos, ainda não – uma lei tratando especificamente sobre o assunto. 

Mas, cada Estado tem sua autonomia e um Poder Legislativo que lhe permite criar leis também. E este é o caso da famosa Lei do Silêncio.

No Brasil, quem se aproximou disto foi o Decreto-Lei nº 3.688/1941, também conhecido como Lei de Contravenções Penais, aquela lei que trata de “pequenos delitos”, graves o bastante para serem puníveis, mas brandos o suficiente para não serem considerados crimes. E está lá, em seu artigo 42, a previsão que coíbe a perturbação do sossego alheio:
“Art. 42. Perturbar alguém o trabalho ou o sossego alheios:
I – com gritaria ou algazarra; 
II – exercendo profissão incômoda ou ruidosa, em desacordo com as prescrições legais; 
III – abusando de instrumentos sonoros ou sinais acústicos;
IV – provocando ou não procurando impedir barulho produzido por animal de que tem a guarda:Pena – prisão simples, de quinze dias a três meses, ou multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis.”
Como se pode perceber, a lei não é muito precisa em definir o nível tolerável de barulho e o que pode ser considerado ou não abusivo. Tampouco estabelece um horário dentro do qual seja permitido perder a linha em detrimento do sossego dos seus vizinhos.

Mas, de onde então se tirou essa ideia de que somente depois das 22 h é que se deve limitar o barulho? Provavelmente, da sua estupidez! OK, grosserias à parte, isso deve ser proveniente de alguma ou outra lei diferente, dependendo do Estado em que você more.

Falarei apenas da Lei Estadual nº 126/1977, em vigor em todo o Estado do Rio de Janeiro. Se você mora em outro estado, vale a pena fazer uma pesquisa no Google sobre a legislação daí.

A Lei Estadual nº 126/1977 proíbe a produção de ruído capaz de prejudicar a saúde, a segurança e o sossego públicos. E para não incorrer na mesma imprecisão da Lei de Contravenções Penais, enumera, em seu artigo 2º, quais são os ruídos considerados prejudiciais:
“Art. 2º – Para os efeitos desta Lei, consideram-se prejudiciais à saúde, à segurança ou ao sossego público quaisquer ruídos que:
I – atinjam, no ambiente exterior ao recinto em que têm origem, nível sonoro superior a 85 (oitenta e cinco) decibéis, medidos na curva C do “Medidor de Intensidade de Som”, de acordo com o método MB-268, prescrito pela Associação Brasileira de Normas Técnicas; 
II – alcancem, no interior do recinto em que têm origem, níveis de sons superiores aos considerados normais pela Associação Brasileira de Normas Técnicas;
E aqui, acho importantíssimo atentar para o inciso I, que estabelece um critério bastante objetivo para se determinar se o ruído deve ou não ser proibido: o limite de 85 decibéis em ambiente externo àquele de onde o som se origina. Este sempre será meu principal critério para eu saber se poderei chamar a polícia ou não! Com um decibelímetro (que hoje em dia se consegue facilmente através de aplicativos em smartphones) em mãos, farei a medida dentro da minha casa para saber se o som do meu vizinho, fora de sua casa (local onde se origina), se encontra acima do limite. Independentemente do horário.

Vale ainda mencionar o rol previsto no artigo 3º, que estabelece modalidade específicas de ruídos, que estarão sempre proibidos:
"Art. 3º- São expressamente proibidos os ruídos:
I - produzidos por veículos com o equipamento de descarga aberto ou silencioso adulterado ou defeituoso;
II - Produzidos por aparelhos ou instrumentos de qualquer natureza utilizados em pregões, anúncios ou propaganda na via pública ou para ela dirigidos, desde que ultrapasse o nível sonoro superior a 85 (oitenta e cinco) decibéis. 
III - produzidos por buzinas, ou por pregões, anúncios ou propaganda, à viva voz, na via pública, em local considerado pela autoridade competente como “zona de silêncio”; 
IV - produzidos em edifícios de apartamentos, vila e conjuntos residenciais ou comerciais, em geral por animais, instrumentos musicais ou aparelhos receptores de rádio ou televisão ou reprodutores de sons, tais como vitrolas, gravadores e similares, ou ainda de viva voz, de modo a incomodar a vizinhança, provocando o desassossego, a intranquilidade ou desconforto;
V - provenientes de instalações mecânicas, bandas ou conjuntos musicais e de aparelhos ou instrumentos produtores ou amplificadores de som ou ruído, tais como radiolas, vitrolas, trompas, fanfarras, apitos, tímpanos, campainhas, matracas, sereias, alto-falantes, quando produzidos na via pública ou quando nela sejam ouvidos de forma incômoda;
VI - provocados por bombas, morteiros, foguetes, rojões, fogos de estampido e similares; 
VII - provocados por ensaio ou exibição de escolas-de-samba ou quaisquer outras entidades similares, no período de 0 hora às 7 horas, salvo aos domingos, nos dias feriados e nos 30 (trinta) dias que antecedem o tríduo carnavalesco, quando o horário será livre.
VIII - produzidos em Casas Noturnas, acima de 55 decibéis, a partir das 22 horas.”
Vejamos que este rol se encontra no título das proibições, que, exceto a previsões dos incisos VII e VII, não especifica horários de permissão, do que se pode deduzir que os ruídos acima especificados são simplesmente proibidos, justamente por serem considerados prejudiciais à saúde, ao sossego e à segurança.

Então, ao contrário do que se afirma comumente, de que qualquer ruído será permitido, desde que seja praticado antes das 22 h, o que se tem é a proibição expressa de barulhos acima de 85 dB em ambiente externo ou barulhos acima do considerado normal pela ABNT, dentro do ambiente em que se origina. E isto, a qualquer horário!

Vale aqui mencionar que a “lenda urbana” das 22 h tem sua razão de existir, com base no inciso VIII do artigo 3º e com base em alguns incisos do artigo 4º, que trata justamente das permissões. No entanto, ao contrário do que diz o senso comum, não são quaisquer sons que se permitem antes das 22 h. Na verdade, a lista tem uma natureza mais restritiva que concessiva, uma vez que, contrario sensu, deixa subentendido que os ruídos ali presentes são permitidos apenas no intervalo de tempo entre 7h e 22h. Vejamos:
“Art. 4º - São permitidos - observado o disposto no art. 2º desta Lei - os ruídos que provenham:
I - de sinos de igrejas ou templos e, bem assim, de instrumentos litúrgicos utilizados no exercício de culto ou cerimônia religiosa, celebrados no recinto das respectivas sedes das associações religiosas, no período das 7 às 22 horas, exceto aos sábados e na véspera dos dias feriados e de datas religiosas de expressão popular, quando então será livre o horário; 
II - de bandas-de-música nas praças e nos jardins públicos o em desfiles oficiais ou religiosos;
III - de sirenas ou aparelhos semelhantes usados para assinalar o início e o fim da jornada de trabalho, desde que funcionem apenas nas zonas apropriadas, como tais reconhecidas pela autoridade competente e pelo tempo estritamente necessário;
IV - de sirenas ou aparelhos semelhantes, quando usados por batedores oficiais ou em ambulâncias ou veículos de serviço urgente, ou quando empregados para alarme e advertência, limitado o uso ao mínimo necessário;
V - de alto-falantes em praças públicas ou em outros locais permitidos pelas autoridades, durante o tríduo carnavalesco e nos 15 (quinze) dias que o antecedem, desde que destinados exclusivamente a divulgar músicas carnavalescas, sem propaganda comercial;
VI - de explosivos empregados em pedreiras, rochas e demolições, no período das 7 às 12 horas;
VII - de máquinas e equipamentos utilizados em construções, demolições e obras em geral, no período compreendido entre 7 e 22 horas;
Parágrafo único – As serras dos tipos adotadas em construção de edificações, situadas em regiões urbanas, no âmbito do Estado do Rio de Janeiro, só poderão operar em recintos devidamente protegidos contra ruídos.
VIII - de máquinas e equipamentos necessários à preparação ou conservação de logradouros públicos, no período de 7 às 22 horas;
IX - de alto-falantes utilizados para propaganda eleitoral durante a época própria, determinada pela Justiça Eleitoral, e no período compreendido entre 7 e 22 horas.
Parágrafo único - A limitação a que se referem os itens VI, VII e VIII deste artigo não se aplica quando a obra for executada em zona não residencial ou em logradouro público, nos quais o movimento intenso de veículos e ou pedestres, durante o dia, recomende a sua realização à noite.”
Sendo assim, se você se encontra na condição vizinho mal-educado e barulhento, não se garanta no fato de estar perturbando sua vizinhança antes das 22 h. Você pode ser enquadrado nas penalidades previstas na lei, inclusive na de Contravenções Penais. E se você se encontra na condição de vítima desse tipo de gente – o que é o meu caso – não hesite antes de chamar a polícia. Se alguém se recusar a atender você, sob o falso fundamento de que ainda não são 22 h, você já tem informação suficiente para rebater.

Nunca é demais lembrar que o direito de um termina quando o do outro começa.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Crônicas de um AdvoGADO

QUANDO O DIA COMEÇA COM VOCÊ JÁ QUERENDO MANDAR SERVENTUÁRIO IMBECIL VAZAR PARA A MERETRIZ QUE DEU À LUZ.

Estava eu, lindo, loiro e serelepe – “melhor atriz do Brasil, e amada pelo povo brasileiro” (VIEIRA, Suzana) – seguindo mais um dia feliz de trabalho, em uma empresa linda e bela, em um agradabilíssimo dia de verão carioca, quando me deparei com a informação de que teria HOJE, Dia de Vossa Mãe Iemanjá, uma audiência em uma das Varas Cíveis no Reino de Tão Tão Distante, que a ética me impede de revelar qual é.

Para confirmar a informação, como sempre faço, entrei no site do TJ para me certificar de que a audiência aconteceria, e vi – “meninos, eu vi” (PIRAMA, Juca) – que a data seria no próximo 23 (“são oito dias para o fim do mês, faz tanto tempo que não lhe vejo...” ABELHA, Kid). Eram duas informações diferentes que precisavam ser confirmadas.

Liguei para o Cartório em Tão Tão Distante, quando uma ternurinha, que não era a garota papo firme que o Roberto falou, me disse que não haveria nenhuma audiência marcada, nem hoje, nem dia 23, nem nunca mais, muahahahahaha! Riu maleficamente e desligou o telefone, não sem antes fazer uma ameaça: “certifique-se com o Gabinete!”

Lá fui eu ligar para o Gabinete, com três informações diferentes, quando o palhaço, digo, serventuário, me atendeu. Depois de explicar duas ou três vezes a situação, insistindo que eu tinha três informações discrepantes, as três prestadas pelo mesmo cartório, e que eu precisaria esclarecer qual delas seria real, seguiu-se o seguinte diálogo:

- Dr. (já adorei, porque reconheceram minha pompa e me chamaram pelo título que mais gosto #SQN), não posso dar informações por telefone. Para isto, o Dr. precisa vir aqui.

- Querido, eu quero a informação por telefone, justamente para não ter que ir aí. Até porque o erro na informação é de vocês. Eu ainda tenho que ir aí resolver, pessoalmente, uma situação por um erro que a Vara cometeu?! Se fosse para ir aí, eu já iria por ter uma audiência designada para hoje.

- Ah, sua audiência é hoje? – Pausa dramática para minha cara de paisagem, quando expliquei mais uma vez a situação.

- Então, acho que você ainda não me entendeu. É justamente isso que quero esclarecer: se minha audiência é para hoje ou não. Afinal, se eu tenho três informações divergentes prestadas por vocês, gostaria de saber qual delas é procedente para não ter que dar viagem perdida até São João de Meriti, digo, até Tão Tão Distante. Então, você pode confirmar pelo menos isto?

- Ah, então sua audiência é para hoje, né? Espera um pouco. Vou conferir a informação e já volto. – porque para o Serventuário esperto e ágil, somente seria justificável dar a informação por telefone quando a audiência estivesse agendada para o mesmo dia.

Passaram-se alguns instantes quando me volta o néscio, com um tom de voz muito, muito, muito pouco amistoso:

- O DOUTOR NÃO TINHA DITO QUE A AUDIÊNCIA ERA HOJE?!

E foi neste momento que minha paciência, que se encontrava em seu volume morto, acabou:

- Não, quem disse que a audiência seria hoje foram vocês mesmos, aí da Vara Civ...

- DOUTOR, POR FAVOR, NÉ? SUA AUDIÊNCIA É DIA 23! O DR. ME FEZ PRESTAR INFORMAÇÃO TELEFÔNICA À TOA. POSSO SER PUNIDO POR ISSO! QUANDO FOR ASSIM, POR FAVOR, VERIFIQUE NO SISTEMA DO TRIBUNAL A DATA CORRETA.

- Ah, então é dia 23 mesmo, né? – Respirei fundo, agradeci a informação, desliguei o telefone, segurando na minha garganta o sonoro “vá tomar no olho do seu cu!” que minha boca jamais pronunciou.

E o salário, ó.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Aconteceu em Lumiar

(Originalmente publicado como postagem no meu perfil do Facebook, exatamente um ano atrás).

A noite ia caminhando, lenta, mole, calma. Os lampiões das ruas lançavam sombras de padrões diversos sobre o chão de paralelepípedos, tão característico destas paragens interioranas. Uma brisa fria tomava forma e se arrastava sorrateira pelas curvas do vilarejo, fazendo com que as pessoas saíssem dos bancos nas praças e retornassem ao conforto de seus lares.

Um pouco adiante, um homem e um cão dialogavam entre si, nos modos que apenas um homem e um cão conseguem fazer. Ambos pareciam felizes.

Ao cruzarmos pelos dois, vimos o cachorro saltitando em nossa direção. O homem, que até então estava agachado, levantou-se.

- É de vocês este cachorro?
- Não. Havia um senhor brincando com ele ainda há pouco ali atrás. Acho que é dele.
- Ah! Se fosse da rua, eu o levaria para minha casa agora.
- Não vemos mais o senhor que estava com ele. Vai ver que o cachorro é de rua mesmo.

O homem voltou a fazer carinho no animal, que o retribuiu sacudindo a cauda. Dei força:

- Leve-o com você. Está frio. Se o dono aparecer você devolve. Já que o senhor o quer e parecem se dar tão bem...

Ele se agachou para pegar o cachorro no colo. Assustado, o animal gritou e recuou. O homem tentou mais uma vez e novamente o cachorro se afastou.

- Ele pode ser de rua e estar pouco habituado a ser pego no colo. Cuidado para que ele não o morda. Melhor que o senhor vá caminhando e chamando para que ele o siga. Ele está te seguindo mesmo!

Assim, o homem foi subindo a ladeira de calçados irregulares. Passou por postes com lampiões e alternou entre as luzes acesas e as sombras projetadas. Atrás dele, seguiu o cãozinho.

Nós os acompanhamos com o olhar até vê-los subirem a rua e se perderem numa curva escura. A brisa fria rastejava por todos os cantos e a noite sorria, assim como fazíamos nós. Assim como fazia o homem, que adotara um parceiro. Assim como fazia um cão, que não dormiria ao relento e encontraria um lar.

Seguimos nosso caminho para o lado o oposto ao deles e é muito provável que jamais saibamos quaisquer notícias sobre cão e homem que traçaram seus destinos numa das curvas, num verão qualquer de Lumiar.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Desejo

Desejo

Hoje eu quis tomar banho de chuva
Mas, a noite corria alta
E eu estava sozinho

Hoje eu quis contemplar teu sorriso
Mas, o dia foi cansativo
E eu estava sozinho

Hoje quis o afago das tuas mãos
Mas, eu precisava trabalhar
E eu estava sozinho

Hoje eu quis dormir abraçado
Mas, a madrugada era quente
E eu estava sozinho

Hoje eu quis. E quero. Cada vez mais.
Mas, amanhã o dia virá
E te trará para mim
Para que eu não mais esteja sozinho

E amanhã
Quando a noite correr alta e a madrugada for quente,
E o cansaço de um dia de trabalho pesar,
Sorri para mim e pega minhas mãos
E me abraça forte sob a chuva
(se chover)
Que eu continuarei querendo. Cada vez mais.

Rio, 14/01/2016