quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

O Discurso do Empoderamento Como Mecanismo de Controle

Outro dia, vi uma postagem acerca da comum associação da desistência com o fracasso, que a maioria das pessoas faz com base no senso comum. “Se você desistiu, você fracassou”“desistir é para os fracos” e outras bobagens do tipo.  A postagem, bastante sensata, trazia a ideia de que desistir é necessário em muitos casos para preservação da sanidade mental, já que muitas vezes a gente desiste daquilo que nos faz mal. Só pude concordar.

Esse discurso de demonização do enfraquecimento está diretamente relacionado à estruturação do poder. Os que dominam impõem sacrifícios aos dominados. Estes, por sua vez, se sucumbirem, obstarão os interesses daqueles. Aquele que diz não ao que lhe causa sofrimento passa a ser visto como o desistente, como aquele que não aguentou, o fraco. A dominação lhe causa sofrimento. Logo, o desistente, ao abrir mão daquilo que lhe causa sofrimento em razão das imposições perpetradas pelos dominantes, paralisam as atividades que os sustentam.

Por isso esse papo de "não desista, isso é para os fracos". Leia-se: "você não é fraco, continue se matando de trabalhar para alimentar meus privilégios". Tá ali, de mão dada com essa noção de romantizar o sofrimento. Vemos aos milhões no LinkedIn esse tipo de bobagem disfarçada de incentivo, em mensagens do tipo "o sucesso chega pra quem não dorme, não come, se esforça, a quem PARA DE RECLAMAR E PARA DE SE VITIMIZAR E VAI À LUTA". Muito conveniente.

No âmbito corporativo, o pensamento hegemônico, pelo menos na cidade do Rio de Janeiro, ainda é aquele que cria animosidade entre empregados, conferindo a uns as prerrogativas de capitão do mato, isto é, mantendo sobre estes a mesma opressão, mas fazendo-o acreditar que é melhor que o outro por lhe atribuir mais responsabilidades, incluindo o exercício do poder de vigilância. O pior é que esse discurso do falso empoderamento tem um poder gigantesco! “VOCÊ PODE! VOCÊ É CAPAZ! CONTINUE SE FERRANDO SEM PIEDADE E ENCHENDO MEU BOLSO DE DINHEIRO ENQUANTO EU TE FAÇO CRER QUE VOCÊ É IMPORTANTE!”

Trabalhei em um escritório que era craque nisso, criando essas disputas e afastando as pessoas umas das outras. Nada melhor para o opressor que criar separação entre os oprimidos. Empregados unidos representam uma ameaça. "Olhem o exemplo do Fulano. Mora no Inferno de Dentro, leva dezessete horas de ônibus para chegar aqui e outras dezessete para voltar pra casa. Por causa disso, vou delegar a ele um número maior de atividades porque SABEMOS QUE ELE É CAPAZ! Com isto, ele irá fiscalizar as atividades do restante da equipe.” Enquanto profere essas palavras, o pensamento percorre a cabeça do empregador: “Porque assim eu não preciso pagar um salário maior a um supervisor”.

Não compre essa ideia. Você é apenas mais um explorado no meio de tantos outros. Seu inimigo não é seu colega de trabalho que recebe o mesmo salário que você e a quem você foi designado para vigiar. Seu inimigo é quem lucra com base no seu esforço e não pensará duas vezes antes de cortar você do quadro de funcionários da empresa se lhe afigurar conveniente.

quinta-feira, 22 de agosto de 2019

O beco sem saída de um sistema que te obriga a pecar


O diálogo versava sobre um processo que meu interlocutor estava movendo em face de uma empresa. Ele havia tido acesso à contestação apresentada pelo adversário e estava chocado com a quantidade de mentiras ali narradas e com a quantidade de falhas técnicas cometidas –ausência de documentos e mesmo documentos que corroboravam suas alegações iniciais. Junto com essas constatações, ele ainda me narrava, num tom de exasperação, o incômodo que sentiu com a postura da advogada do seu litigante durante a audiência de conciliação.

– Não é possível que alguém minta daquela forma e volte para casa com a consciência tranquila.

Pus-me a pensar na minha própria trajetória profissional e não pude deixar de me colocar no lugar dessa advogada. Embora me mostrasse bastante satisfeito com o péssimo trabalho prestado pelo escritório do seu adversário, que favorecia meu interlocutor, não execrei a postura daquela advogada, tampouco condenei o profissional que elaborou a peça de defesa com tantas falhas:

– Isso é resultado dessa política estúpida que impera nos escritórios de advocacia. Fazer mais em quantidade por menos em qualidade. Muito trabalho, pouca técnica. Eu acho é pouco que eles se deem mal! Mas, a advogada que fez sua audiência é uma vítima. Não é a ela que seu ódio deve ser direcionado. Quem tem que se foder mesmo é o escritório onde ela trabalha.
– Soube que ela foi demitida.
– Sério?! Não me surpreende! Só confirma o que penso. Provavelmente ela era uma boa profissional. E tinha que receber seu salário obedecendo cegamente às determinações do patrão. Ao se atrever a descumprir uma ordem, teve sua cabeça pedida.

Em seu estarrecimento, demonstrava não acreditar que um profissional pudesse se esforçar para tentar retirar um direito que sabia ser do outro apenas para que pudesse se adequar às diretrizes dos chefes.

Então quem ficou surpreso fui eu.

– Eu não sei qual a sua surpresa. Não é assim que funciona tudo dentro do capitalismo? “Vamos destruir o meio ambiente, sabemos que é errado, mas fazemos isso em troca de uns centavos, alimentamos a famigerada indústria da moda, fazemos feliz o empresário e tiramos disso nosso sustento” ou “Vamos maltratar animais em cativeiro, inserindo neles hormônios de todos os tipos, mantendo-os confinados em celas superpopulosas, como presidiários brasileiros, alimentamos a indústria da carne, fazemos feliz o empresário e tiramos disso nosso sustento”. Isso é o capitalismo! Ou fazemos isso ou morremos de fome. Não culpo o advogado empregado. É tão vítima desse sistema quanto as 1.127 costureiras desgraçadas de Bangladesh que morreram no desabamento do prédio em 2013. E para quê? Para alimentarem o sistema com seu trabalho escravo porque tinham que sustentar uma família.

Tais constatações reforçam a minha crise com a nossa sociedade que, de uns tempos para cá vem assolando meus pensamentos com uma frequência gigantesca. E quando digo às pessoas que tenho sonho de sair desse convívio tóxico, minimizando tanto quanto possível meu contato com esta sociedade, isolando-me no mato como narra Thoureau em seu livro Walden, sinto que muita gente não compreende o alcance do meu incômodo.

Vejo sempre que há uma espécie de tendência entre as pessoas de adotarem uns discursos vazios, publicando em suas redes sociais mensagens que parecem extraídas de livros de autoajuda, nas quais muito se fala sobre “valorizarem as pequenas coisas”. No entanto, essas mesmas pessoas parecem que não se tocam de verdade de que há coisas mais importantes que bens materiais, dinheiro, consumo, e seguem perpetuando esse ciclo nefasto de ruptura da moral vigente, de esvaziamento de princípios em troca de uns poucos centavos, na luta por uma sobrevivência dificultada pela falsa necessidade incutida em suas mentes, de que é preciso ter mais do que se precisa. Não, eu não me excluo deste grupo.

O profissional que mente em uma audiência para garantir o lucro do seu patrão é o mesmo profissional que vende plano de internet e telefone para o consumidor, escondendo dele que terá de pagar multa se romper o contrato; é o mesmo profissional que tem cachorro em casa, que adora animais, mas não pensa duas vezes antes de matar de forma extremamente dolorosa uma foca a pauladas, para vender sua carne, sua banha, seu couro: é o profissional que precisa sustentar a própria família, é o profissional precisa comer, pagar aluguel, sustentar filho...

Para um advogado empregado, um caso é apenas mais um caso, de uma planilha com outros cinquenta casos para cumprir num dia. Eu mesmo pude experimentar essa realidade em diversos estabelecimentos em que trabalhei. Para esse advogado, não há tempo para analisar uma situação, para fazer uma defesa justa, dentro de parâmetros legais. Para esse advogado, o que se evidencia é o risco de perder o emprego se propuser ao chefe uma defesa justa, incentivando-o a reconhecer o direito do outro. Esse advogado é apenas obrigado a copiar e colar, copiar e colar, copiar e colar, sem sequer poder pensar no impacto que isso tem na vida de uma pessoa.

As pessoas têm princípios, claro. E muitas vezes não se dispõem a abrir mão deles. Até o momento em que não encontram um prato de comida em casa, ocasião em que, provavelmente, sua elasticidade seria muito maior para suportarem as condições que o patrão impõe.

Eu tenho princípios. Muitas vezes me recusei a cumprir ordens, muitas vezes não me vendi ao sistema. E só pude fazer isto porque sabia que por trás de mim havia um suporte financeiro familiar com o qual eu poderia contar em último caso. Ainda assim, paguei caro: fiquei oito meses desempregado em um ano, sete meses desempregado em outro, dez meses em outro. Porque tenho meus princípios éticos e morais e não me disponho a baixar a cabeça para a indústria do consumo, não me disponho a vender minha força de trabalho para quem não reconhece meu real valor... Discurso lindo. Seria ainda mais se fosse absolutamente verdadeiro. Se eu não tivesse um suporte familiar em última hipótese, será mesmo que meus princípios seriam tão fortes, tão inabaláveis? Antes de qualquer coisa, eu precisaria comer. E eu pergunto a quem estiver me lendo: se sua escolha fosse entre comer para sobreviver ou ser honesto com seus princípios, você morreria de fome? Provavelmente eu não. Ou, mantendo-me firme em minhas convicções, daria um tiro no meu próprio ouvido para não ser obrigado a abrir mão daquilo em que acredito em troca de uma vida sem propósitos.

São constatações como esta que me fazem insistir em dizer que a vida é uma droga, que viver é uma atividade extenuante, cansativa e desagradável.

Ainda sobre trabalhos de merda impostos por um sistema de merda, pergunto: qual a diferença entre o advogado que fode a vida de uma pessoa – que para ele é só mais um caso – e um assaltante a mão armada que atira na vítima? Quando eu tomo a casa de um devedor do banco que eu defendo, quando eu tiro o ressarcimento da família do pai morto atropelado por um trem, quando eu fecho uma rádio de uma cidade porque não paga direitos autorais, o que faz de mim uma pessoa menos pior que aquela outra que disparou o gatilho em troca do celular de última geração?

Ao tratar cada caso como uma mera tarefa a ser cumprida, dou-me conta de que posso estar tirando dessas pessoas bens que eles passaram a vida inteira para juntar (possivelmente explorando o trabalho de outras pessoas também)? Dou-me conta de que essas pessoas se suicidam quando têm sua casa hipotecada, ou veem fechada a rádio de onde tiram a sobrevivência? O que me diferencia do assaltante que matou o dono do celular para levar comida para os três bebês que ele tem em casa?

É possível até que me digam: “Ah, Guto, mas o bandido nem matou para sustentar um bebê. Ele matou para ostentar um iPhone!” E quando eu contribuo com meu trabalho honesto, auxiliando o meu patrão a fechar o estabelecimento comercial que sustenta toda uma família, em troca do salário com o qual eu compro o meu iPhone, por que isso faz de mim alguém digno e faz do outro um criminoso? O bandido que assalta, não por comida, mas para ostentar uma roupa cara – e, consequentemente não tem a seu favor o salvo-conduto do estado de necessidade para justificar seu crime – é muito diferente do CEO de uma grande companhia que desmata e obriga toda uma população de um vilarejo a inalar gases tóxicos que invariavelmente irão lhes matar? Qual é a diferença, se cada um faz o que faz para se adequar a uma sociedade de consumo? A mesma que me faz tomar a casa de um devedor do banco para quem eu trabalho, em troca de um salário que me permitirá ter o meu iPhone.

Não pense você que se atreve a me ler que estou fazendo uma campanha para que você odeie os advogados. O que chamo é uma reflexão que nos permita reconhecer que praticamente qualquer trabalho feito para manter esse sistema é tão infame quanto. E quem o exerce, quase sempre o faz porque precisa sobreviver.

O trabalho supostamente honesto é quase análogo à lavagem de dinheiro. Para lavar dinheiro, você adiciona várias etapas na circulação dos valores financeiros de origem ilícita, criando uma cadeia gigantesca, até que na última etapa já se tenha perdido sua origem, ocultando-se a ilicitude subjacente à circulação da quantia em questão. É assim que enxergo as nossas profissões em sua grande maioria: uma lavagem do gesto, uma limpeza do ato.

O assaltante atira no trabalhador e seu ato delituoso é imediatamente reconhecido como tal. Já o banco explora o trabalhador. O banco cobra juros. O banco hipoteca sua casa. Tudo isto está dentro da legalidade. O advogado defende o banco, dentro da legalidade. O banco recupera "seu prejuízo" ao retomar a casa hipotecada daquele trabalhador. O advogado ganha seu salário de merda e nem tem tempo para avaliar a gravidade do que fez antes de passar para o próximo caso. Para aquele trabalhador, a casa era seu sonho tomado. Para aquele trabalhador, a casa era o abrigo da sua família. A família vai morar nas ruas. A família adoece. A família morre de fome. E quem fez isso? Ninguém.

Ninguém mesmo? Ou será que toda essa cadeia serviu só para fazer uma "lavagem" para o ato do banco, para o ato do advogado, para o ato do contador, para o ato do administrador de empresas, todos envolvidos na atividade financeira que destruiu uma família?

Legalidade não necessariamente se confunde com moralidade. O meu trabalho é legal. O seu trabalho é legal. A sociedade está sedimentada sobre trabalhos legais. Quantos deles são moralmente defensáveis? O marceneiro que constrói o cadafalso tem menos responsabilidade que o carrasco que aperta o nó do enforcado?

segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Sobre o tempo...

Vou falar diretamente para minhas e meus colegas advogadas e advogados. Mas, para um grupo específico dentro da classe. Quero conversar diretamente com aquele profissional que, pelo fato de um ultrapassado decreto imperial lhe conferir o título de Doutor, e por, no curso, ter decorado umas tantas expressões em latim, sente-se membro do nível mais elevado da elite intelectual, ocupando, com isto, um lugar hierarquicamente superior ao dos meros mortais; falo para você, coleguinha reaça, que acredita de fato no sucesso do capitalismo e acha de verdade que você só não enriqueceu ainda porque não está trabalhando o suficiente; para você que acha que falar em luta de classes é mimimi de esquerdista perdedor.

Vou ilustrar uma cena para você, a qual você conhece bem: Você trabalha como empregado ou como associado em um escritório qualquer. Um desses, dentre tantos, que te chama de PJ e não te paga como se houvesse vínculo de emprego, mas exige de você todos os compromissos do empregado. Ali você tem seu pagamento mensal, que não chega nem perto da metade daquilo que, nos tempos de universidade, você acreditava e sonhava que ganharia. Você ganha causas e mais causas para o escritório do seu chefe e acha um absurdo o grupo de sócios levar os honorários integralmente, sem deixar com você sequer aquele 1% que lhe renderia um bônus de dois dígitos antes do ponto, logo naquele mês de aperto por causa da fatura mais alta do cartão de crédito daquela viagem que você fez ao Nordeste.

Você trabalha em horário integral, muitas vezes, inclusive, ultrapassando a hora, cujo pagamento extra você não receberá. Seu chefe tem com você um contrato de exclusividade, não lhe sendo possível pegar casos processuais por fora do trabalho, para atuar por conta própria, mesmo sendo contratado como um prestador de serviços. Além de ser facilmente descoberto, podendo ensejar o desfazimento do seu contrato de trabalho, você não teria tempo para se dedicar às causas. Como iria para uma audiência daquele processo que você patrocina por conta própria se no horário você estará trabalhando para sua coordenadora, que estará trabalhando para sua gerente, que estará trabalhando para o dono do escritório?

Mas, seu chefe também é um cara incrível e lhe propõe parceria!

"Doutora, se algum amigo seu lhe levar um caso, a colega não poderá pegar, não é? É aí que a gente entra, traga o caso para o escritório. Te damos aqui computador, telefone, e-mail, as ferramentas necessárias para você atuar na causa. Quando houver audiência, poderá ir sem afetar o horário de trabalho, já que o caso é nosso. Então, o escritório fica com 70% dos ganhos e os outros 30% são seus por ter trazido o cliente. Que tal? Imperdível, não é?"

Qual sua outra opção? Dispensar o caso, já que, de qualquer forma você não poderia mesmo atuar nele por não ter tempo livre? Não tem nada a perder, então leva o cliente para seu patrão que, com olhos vorazes e boca salivando, engole os 70% dos honorários que ele deixará com o advogado, que poderia ser somente você. Se você tivesse tempo. Mas, você é um cara muito esperto, já garantiu aí uns 30% do dinheiro-que-poderia-ser-todo-seu-se-você-tivesse-tempo. Ou isso, ou ver o cliente ir para outro escritório, encher de dinheiro os bolsos do concorrente da sua chefe. Melhor encher os dela e você conseguir uns farelos disso, né não?

Você atua no caso com dedicação. O cliente é seu amigo, poxa, você o levou para o escritório, então tem que garantir tratamento VIP. Seu chefe não lhe paga pra isso, mas você se dedica por que você é bom. E cada vez que você atua neste caso, você pensa no quão injusto é o dono do escritório que te paga um salário baixíssimo ficar com quase dois terços de um valor que poderia ser só seu. Se você tivesse tempo.

Por que, afinal, você faz todo o trabalho de pesquisa de jurisprudência, faz todo o trabalho de redigir um texto, pensando nos melhores argumentos para a causa; por que você fica três horas aguardando para falar com o juiz que sequer queria te ver, e no fim, seu trabalho inteiro só servirá para enriquecer seu patrão? Aí você lembra que não pegou o caso por conta própria porque não tem tempo livre. E seu tempo está sendo usado para garantir seu salário mensal, muito, muito, muito abaixo daqueles honorários que uma só ação irá render, de um cliente que é seu amigo, que levou  caso até você, e não até a sua patroa; a cliente é alguém que estava disposta a te pagar porque confia no seu trabalho. E que você, por ter vendido seu tempo para um empresário em troca de um salário mensal, não poderá receber. Dê-se, portanto, por satisfeito em ter os 30%.

Aposto que você sempre achou injusto seu patrão receber mais do que você, somente por ele ter disponibilizado uma mesa, uma cadeira, um computador e conexão wi-fi. Afinal, quem fez o trabalho pesado foi você! Você até acharia justo pagar o chefe pelos meios que ele disponibilizou para que você exercitasse seu ofício de advogar. Você é uma profissional justa, não iria querer explorar também os instrumentos da sua patroa sem lhe dar uma contraprestação. Mas, para você, o justo seria que você ficasse com 80% e ele com 20%. É isso que você sabe que seu tempo vale em relação aos meios de produção que o empresário lhe forneceu. Mas, é com o seu salário que você compensa o tempo que disponibiliza para seu chefe ter todo o lucro.

Você viu como, ao longo do texto todo, o fator tempo foi enfatizado. Você viu o quão limitado você fica por ter seu tempo vendido ao seu patrão em troca de um pagamento mensal que você mesmo entende ser muito menor do que o que deveria ser pago. Pois então, coleguinha, reaça, defender o socialismo e a luta de classes é sobre pagar por este tempo que você vende ao empresário por um valor irrisório aquilo que este tempo efetivamente vale. Agora, arrisque dizer para quem o comunismo se mostra uma ameaça.

terça-feira, 14 de maio de 2019

A necessária democratização do conhecimento como fator de transformação social

Reclamamos do coleguinha que faz bobagem na política, que é racista, que é homofóbico, que é machista, que é preconceituoso... Mas, o que já fizemos para lhe mostrar o outro lado da moeda? Como agimos para orientá-lo à mudança?

Achamos ruim aquela família pobre e ignorante que "não sabe votar", mas o que já fizemos para lhes ensinar a votar? Falamos para as pessoas a língua que as pessoas entendem? Ou será que vivemos debatendo ideias com intelectuais no ambiente acadêmico, apenas falando difícil para inflarmos nosso próprio ego? Você já parou para pensar na sua responsabilidade pelas atitudes do outro?

Já fiz parte de grupo de WhatsApp em que havia cerca de cinquenta homens gays fazendo contato para amizade, flerte, etc. Dessa galera, a maioria reproduzia um discurso heteronormativo, nocivo e segmentador, dizendo que na hora da paquera "não curtia homens afeminados". Alguns iam além e diziam que não gostavam sequer de andar com esses homens afeminados, porque entendiam que eles os expunham ao ridículo, "denunciando" sua sexualidade para a sociedade que, supostamente não poderia saber que eram gays.

Muitas vezes revirei meus olhos, impaciente com o preconceito arraigado, até que, cansado de ler tanto discurso machista e heteronormativo, saí do grupo.

Em uma conversa sobre racismo, criminalidade e exclusão social, um familiar meu que não chegou a cursar o nível médio, num dado momento comentou:

"Falam que é minha responsabilidade porque aqueles pretos da favela debandaram para o crime. Minha responsabilidade por quê?! O que eu fiz? Eu não tenho culpa de nada. Não fiz nada para levá-los ao crime. Por que eu sou responsável?"

Irritado com o comentário racista, encerrei a conversa ali mesmo, deixando aquelas perguntas ecoando no ar, sem respostas.

Em mesa de bar, bebendo com amigos acadêmicos, por diversas vezes destilei discursos lindíssimos, explanando o quão prejudicial era a "imposição de padrões de masculinidade pela mídia, que se replicavam no discurso de homens, mulheres, heterossexuais, homossexuais, bissexuais, na forma da busca pela padronização comportamental e estética, influenciando a formação de gostos e elementos de atratividade sexual, fomentando o preconceito contra tudo o que subvertesse o padrão estabelecido".

Já discursei em rodinhas de intelectuais acerca das "movimentações sociais pós-abolição da escravatura, que excluíram os negros da sociedade de consumo, obrigando-os a viverem à sua margem, em guetos e favelas, e negando-lhes condições mínimas de subsistência digna, de forma que, impedidos de viverem inseridos no mesmo contexto social dos brancos, ricos e privilegiados, resvalaram para a criminalidade, como alternativa para a própria sobrevivência" e de como o "direito penal e a cultura carcerária são fatores de controle social, uma vez que, aliados com a mídia de massa que reforça a cultura do medo, tende a incutir na cabeça do cidadão socialmente incluído a ideia de que aqueles excluídos precisam ser mantidos neste status quo, já que representam uma ameaça à ordem social vigente".

Refletindo sobre isto, perguntei-me qual foi minha contribuição efetiva para mudar a sociedade à minha volta, a comunidade palpável, concreta, tangível. E lembrei da oportunidade que tive de orientar cinquenta homens gays, em linguagem que os fizessem compreender, sobre como seu discurso heteronormativo havia sido moldado por imposição de padrões comportamentais e como isso reforçava o preconceito e a homofobia dentro da própria comunidade gay, influenciando o aumento das taxas de violência contra pessoas LGBT. Eu poderia ter mudado o pensamento de cinquenta pessoas! E cada uma dessas pessoas poderia ter mudado o pensamento de outras cinquenta...

Pensei na oportunidade que tive de conversar com meu parente racista sobre não ser sua, especificamente, individualmente, a responsabilidade pela criminalidade, mas mostrando-lhe que tanto ele quanto eu fazemos parte de um sistema excludente e que, por causa desse sistema, existe um incremento dos números na criminalidade praticada por quem é socialmente excluído. E então, perdi a oportunidade de fazer com ele aprendesse uma lição e a replicasse para outros parentes e amigos, ampliando o pensamento sobre a necessidade de inclusão social de quem é marginalizado, incentivando a criação de projetos de inclusão social para melhorar a comunidade em que vivem.

Em vez disto, acabei me rendendo à minha impaciência contra a ignorância alheia, virando as costas para quem, de acordo com meu pensamento egocêntrico e vaidoso, deveria saber o mínimo e tinha obrigação de não ser racista, de não ser homofóbico o heteronormativo.

É comum sermos pessimistas com o cenário político quando constatamos que uma passeata composta por cem mil pessoas não representa mais que 0,07% de um universo de 150 milhões de eleitores e que, nas urnas, o resultado poderá ser diferente daquele pleiteado naquela manifestação popular.

Quase sempre lembramos que a maior parte da população não tem educação ou consciência política e não pensa de forma crítica, votando em qualquer candidato em troca de um botijão de gás ou de uma cesta básica. E quase sempre os criticamos por isso. Mas, o que já fizemos para levar a estas pessoas algum pensamento político que as faça refletir para além do imediatismo necessário à própria subsistência? Será que paramos para pensar que, se hoje somos instruídos como somos, foi porque algum dia houve alguém que se dispusesse a nos instruir?

Queremos a transformação social, mas o que fazemos de fato para consegui-la? Em vez de debatermos juridiquês, sociologismos e filosofismos apenas para outros teóricos, quantas vezes os levamos para o churrasco de domingo, traduzidos em linguagem digerível para pessoas que, muitas vezes, não têm o mesmo cabedal teórico que nós?

Passamos anos problematizando o machismo e a misoginia, mas hoje ainda vemos aquele vizinho analfabeto, alcoólatra, praticando abuso contra sua esposa. E quando tentamos lhe mostrar, de forma que se faça compreensível pela sua base de conhecimento, dizendo-lhe que "é preciso ajudar nas tarefas de casa, sim.", uma parte da intelectualidade vigente se volta contra os termos usados e passa a debater sobre a necessidade de não se usar o termo "ajudar", pois a obrigação do homem nas tarefas de casa deve ser compartilhada e equivalente à da mulher. Deixo claro que não sou contrário a debates teóricos e problematizações sobre terminologias. E também entendo que a obrigação mas tarefas domésticas são de ambas as partes que coabitam. Mas, antes, sou favorável a ações paralelas e simultâneas e, se a forma daquele homem – que teve seu caráter moldado em um meio no qual o pensamento machista foi massificado em sua cabeça – entender que para fazer cessar o sofrimento da mulher, é preciso que ele "ajude em casa", defendo que lhe seja assim ensinado, até que os teóricos cheguem a um consenso acerca da melhor terminologia. Isso é democratizar o conhecimento. Isso é transformar a realidade com ações práticas baseadas em teorias estudadas. Enquanto pessoas estudiosas se revoltam, alegando ser um erro grotesco usar o termo "homem feminista" e defendem que o correto é "homem pró-feminismo", a esposa continuará sofrendo violência doméstica até que se chegue a um consenso sobre a palavra mais adequada para orientar o homem que pratica essa violência?

Nosso conhecimento não é democrático quando não se faz compreender na língua que o nosso interlocutor entende. E aqui, insisto que, se por um lado é essencial haver debates entre pensadores dentro da academia, por outro lado urge que as elucubrações intelectuais saiam pelos portões das universidades e alcancem as ruas, as associações de bairro, as comunidades carentes. Se o seu conhecimento técnico, acadêmico, hermético, não dialoga com a sociedade, ele serve para quê?

sábado, 20 de abril de 2019

A Hipocrisia Nossa de Cada Dia ou O Poder do Nosso Discurso Vazio

(Originalmente publicado no meu Facebook em 10 de janeiro de 2017)

Se você tem uma foto feita com um amigo negro naquele verão de 1997 e bate no peito para dizer que não é racista, tenho uma notícia triste para te dar: sua foto e seu amigo não garantem que você não seja. Especialmente se você já pediu para esse amigo se vestir mais arrumadinho porque, sabe-como-é-né, as pessoas são preconceituosas e poderiam achar que ele era um pivete.

Você tem um amigo gay, mas preferiria que seu filho fosse hétero e quando você vai xingar um cara, a primeira ofensa que lhe salta da boca é "viado!", lamento dizer isto, mas você pratica homofobia, sim. E não adianta ficar feliz porque o seu amigo musculoso com "jeito de hétero" arrumou um namorado tão musculoso e com "jeito de hétero" quanto: se você diz que pode até ser gay, mas não precisa ser tão afeminado, sua homofobia está num nível quase patológico.

Quando você abre a boca para dizer que é esquerdista, mas atravessa a rua e olha com desconfiança para todo mendigo que aparece na calçada em que você caminha, você não está sendo diferente em nada do reacinha que diz que na "favela só tem bandido". Se a miséria humana lhe causa mais temor pelo celular no seu bolso que solidariedade e empatia pela opressão que, de algum modo, você também sofre, sinto muito, mas isso não é esquerdismo. É estratificação social. Mesmo que você insista em dizer a seu favor que um dia você até subiu a Favela da Rocinha para ir ao aniversário daquela sua amiga de escola.

E não adianta você dizer que não é machista se você chega cansado do trabalho e acha um absurdo a sua mulher querer que você ainda lave os pratos!

Para justificar sua hipocrisia, não se paute na exceção daquele seu amigo "que é gay, mas nem parece", daquela negra que "por acaso é linda" ou daquela vizinha que você defendeu quando apanhava do marido. Viver uma ideologia inclusiva é muito mais do ter um amigo que.

"Não sou e não curto"

(Originalmente publicado no meu Facebook em 01.08.2015)

Então você é gay e sustenta esse tipo de discurso? "Sou macho discreto, não sou e nem curto afeminados e passo por hétero onde chego". Cuidado. Amanhã você pode ser vítima da homofobia que você está ajudando a propagar e fixar na mente dos seus semelhantes. Por "semelhantes", leia-se "gays, assim como você, e heterossexuais, ambos preconceituosos, assim como você".

Diariamente gays são assassinados, espancados, expulsos do seio familiar por causa deste pensamento que você ajuda a fixar como aceitável no senso comum. Quem mata um homossexual está pouco se importando com sua discrição. Mata um homossexual. Afeminado ou não. Cuidado, macho discreto. O próximo pode ser você.

Sou e curto afeminados. Embora não entenda nada de moda e maquiagens. Embora colecione ferramentas. Macho discreto? Os caras mais afeminados que conheço também são. Machos porqie nasceram com uma genitália que a biologia  determinou como oposta à de fêmea. Esta sim, acepção correta da palavra "macho" . Agora, se "macho" você entende como sinônimo de forte, corajoso, impetuoso, então conheço muito macho discreto por aí! Gente que lida diariamente com trânsito caótico, preços abusivos, violência urbana, e ainda tem que sorrir e ser feliz. Todos machos por encararem de frente uma sociedade mesquinha e preconceituosa como a nossa. Minha mãe é um dos caras mais machos que conheço. Sou discreto porque a vida alheia pouco me interessa. Não, eu não me referia ao meu comportamento sexual. Pouco importa a você com quem durmo. Gesticulo e falo fino às vezes. E continuo sendo discreto. Não se iluda achando que as pessoas não sabem sua orientação sexual. Ponho a mão no colar de pérolas imaginário que trago sempre comigo todas as vezes em que me assusto. Mesmo não me DES-LUM-BRAN-DO com último trabalho da Madonna ou da Beyoncé. E ai de mim se eu não curtisse afeminados! Teria deixado de conhecer meus melhores amigos. Teria perdido orgasmos incríveis.

Cuidado, você que não é e nem curte afeminados. Cuidado, você que acha bonito "parecer hétero". Você está ajudando a disseminar a vida baseada em aparências. Você está ajudando a disseminar o pensamento de que gente como você - leia-se gays, como você - são inferiores. Cuidado, másculo e discreto, não é bonito se passar por hétero quando, na verdade, você deseja o namorado da sua amiga. Bonito mesmo é você aceitar e ser quem você é. Livre de preconceitos, livre de rótulos.

domingo, 14 de abril de 2019

Recrutadores e proprietários de escritórios, desçam do Olimpo!


Recrutadores e proprietários de escritórios, desçam do Olimpo. Vocês precisam dos candidatos tanto quanto os candidatos precisam da vaga. E nem sempre o seu estabelecimento é o melhor lugar do mundo para trabalhar.

Dias atrás, fechei uma porta. Provavelmente, fecharei outras tantas ao redigir este texto-desabafo. Mas, é preciso mostrar que diversos recrutadores estão fazendo algo de muito errado, para além da falta de retorno pós-entrevistas. Neste aspecto, aliás, já coleciono uma quantidade enorme de "entraremos em contato" sem que jamais venham a entrar. Incluindo grandes prestadores de serviço de recrutamento especializado em contratação de advogados.

A oferta era para advogado associado, uma maneira sutil para dizer que seus direitos trabalhistas serão usurpados, inexistindo o vínculo empregatício mesmo quando o patrão determinar exatamente como você deve trabalhar e exigir estrito cumprimento de horários para chegada, mas sem hora para saída, muitas vezes obrigando-o a se exceder sem que você receba hora extra para isto. Não haveria muita liberdade criativa, já que o escritório trabalhava com teses prontas, por determinação do próprio cliente. O salário, R$ 2.700,00, um pagamento simbólico, bastante inferior ao piso da categoria, determinado pela OAB, mas compatível com um mercado desvalorizado como o do Rio de Janeiro, não fazendo muita diferença se você tem mais de dez anos de experiência, se é pós-graduado, se tem mestrado, doutorado, bastando que você seja uma mão-de-obra barata. Sem benefícios. Nem mesmo vale-transporte. Deste valor, eu teria que pagar meu aluguel, meu transporte, minha comida, minhas despesas com saúde e ainda dar um jeito de comprar ternos, gravatas e sapatos, para poder manter a indumentária adequada à suposta dignidade da profissão, conceito que vem se perdendo com a exploração que a advocacia vem sofrendo neste mercado maltratado.

A seleção consistia numa prova com vinte questões discursivas. Isso mesmo, VINTE QUESTÕES DISCURSIVAS! Além da análise de um caso concreto, para elaboração de um recurso inominado. No total, cerca de sete horas de prova e algo entre 16 ou 17 laudas escritas à mão. Quase uma sabatina do Senado Federal com o nome escolhido para Ministro do STF. Nem a prova da OAB foi tão demorada e tão cansativa!

Cerca de uma semana depois, o telefonema:

- Alô, falo com Gustavo?
- Eu mesmo.
- Aqui é Fulano. Falo do escritório tal. Estou com seu currículo em mãos e tenho interesse em conversar contigo. Tem disponibilidade para participar da seleção?
- Oi, Fulano. Então... eu já estou participando de um processo seletivo com vocês. Fiz uma prova gigante semana passada. Estou sendo chamado para continuação deste processo, correto? Vocês não perderam minha prova, perderam? Não depois do trabalho que ela me deu e do tempo que levei.
- Não, não. Fica tranquilo. Na verdade, é a continuação do processo. Sua prova está aqui comigo. Desta vez, é apenas para conversar com a sua coordenadora, que irá te passar os detalhes da vaga. Traga sua documentação, RG e CPF.

Agradeci o contato e encerramos a chamada. Eu estava feliz, ao que tudo indicava, a vaga era minha! Não me pediriam a documentação à toa. Não se referiria à pessoa que me receberia como “a sua coordenadora” se não fosse para começar a trabalhar. A vaga estava longe de ser a melhor vaga do mundo, mas era uma forma de recolocação no mercado.

Na data e hora agendados, cheguei ao escritório. Esperei mais de 40 minutos até ser atendido pelo rapaz que havia me telefonado, que segurava um calhamaço de papel nas mãos. “Minha coordenadora” não apareceu. Ele me conduziu a uma sala, pediu que me sentasse à mesa e depositou a papelada à minha frente.

- Então, Gustavo, aquela prova que você fez foi para o Setor de Prazos. A vaga que apareceu agora é para o Setor de Defesas, então não aproveitaremos a sua prova. Essa aqui é outra prova que você precisa fazer.

Fiquei atônito por um momento. A cabeça estava doendo pela ansiedade. Não havia me preparado para prova nenhuma, tinha compromisso para o final daquela tarde, e havia sido expressamente informado de que não teria de fazer outra prova. Olhei o relógio, que marcava 16h. Mentalmente calculei que se eu fosse levar mais sete horas, sairia dali às 23h. Fiquei irritado. Muito irritado! Mesmo assim, fui cordial. Levantei-me, agradeci pelo contato, ainda sorrindo, disse que não faria aquela prova. Sem alterar minha voz, discursei em tom polido. Firme, mas polido:

- Fulano, agradeço pelo seu interesse no meu currículo. Mas, não farei a prova. Estou com a cabeça estourando de dor. E ainda tenho um compromisso daqui a pouco. Vim para uma conversa agendada para às 15h, com minha suposta coordenadora, que sequer me recebeu. Esperei cerca de 40 minutos para você me dizer agora que farei mais uma prova. Sendo que de outra vez, levei um dia inteiro aqui, saí com a mão doendo depois de redigir mais de quinze laudas. Até mesmo porque, pelo que vocês me disseram, as petições que vocês fazem são modelos prontos, com teses determinadas pelo cliente e fundamentações engessadas, não fazendo muita diferença o meu conhecimento jurídico. Se com um recurso elaborado e mais vinte questões discursivas respondidas em sete horas, vocês não conseguiram avaliar meu conhecimento jurídico e minha habilidade para redigir, mesmo eu tendo doze anos de carreira, uma pós-graduação completa e duas em curso, não será com outra prova que irei me habilitar à vaga.

Fui questionado se eu era pavio curto. Definitivamente, se meu pavio fosse curto, com a raiva que senti diante daquele desrespeito, eu teria sido bem menos delicado e educado. Precisava da vaga? Sim, precisava. Mas, tenho noção do meu próprio valor. O suficiente para saber que recrutadores não são deuses e precisam ser limitados quando ultrapassam o limite da exigência para um cargo.

O fato de haver uma fila de pessoas desempregadas disputando uma vaga não confere salvo-conduto para que recrutadores e donos de escritórios se sintam no direito de impor condições arbitrárias e desrespeitosas às pessoas que querem concorrer a ela. Afinal, se exigem que o advogado se porte em conformidade com a dignidade da profissão, na forma prevista pelo Estatuto da Advocacia, devem ter me mente que o tratamento a ser dado a este profissional também esteja de acordo com a mesma noção de dignidade.

terça-feira, 2 de abril de 2019

Defendendo bandido?

Quando era novinho, sonhava em entrar no curso de direito e ser penalista. Queria um trabalho de grande nobreza, como seria fazer parte da acusação de bandidos e colocar todos na cadeia. Não entendia como alguém "defendia bandidos" e tinha uma visão realmente limitada quanto a isto. Eu seria da acusação. Sempre! Queria acabar com as injustiças no mundo e, olha como é fácil, bastaria limitar a atuação dos criminosos, encarcerando-os, e estaria cumprindo meu papel de transformar a sociedade, tornando-a justa, fazendo do mundo um lugar melhor para se viver.

Quis o destino que eu tivesse um péssimo professor de direito penal e passasse a odiar a matéria. Durante o curso universitário, quase reprovei em Penal III, e passei no limite em Penal IV. Tinha certeza de que havia me equivocado na minha escolha e sabia que jamais atuaria com direito penal na minha vida. Lidar com direito penal real, fora da glamourosa imagem que os filmes hollywoodianos e as novelas das 21h me mostravam era uma tarefa inglória.

Quis também o destino que eu me interessasse pelas áreas correlatas ao direito, como filosofia, psicologia e sociologia. Passados muitos anos daquela minha noção equivocada de que iria fazer justiça colocando bandido na cadeia e estudando algumas matérias sem o compromisso de "passar na prova", mas apenas por curiosidade e interesse, eis que eu me descobri novamente apaixonado pelo direito penal. Mas, com uma visão bem menos limitada que a dos meus 12 anos, passei a rever minha própria noção do conceito de "delinquente".

Pensar em justiça meramente como a aplicação da lei e a exclusão pelo encarceramento do indivíduo delinquente porque praticou atos que violam o equilíbrio social é ignorar que a norma visa à manutenção da sociedade que lhe precede e não o contrário. A lei, em seu aspecto mais formal, aqui conceituada como o produto oriundo da atividade do poder legislativo, não determina a organização social. Antes, é a organização social que impõe a criação de leis que traduzam os anseios de uma sociedade.

Falar, então, em justiça me parece um descalabro quando a limito à mera aplicação da lei, sem pensar na realidade social que a precede. Assim, antes de pensar em encarceramento de bandidos como ato de justiça e manutenção da sociedade em seu perfeito equilíbrio, primeiro eu devo me questionar sobre o que repousa essa ideia de "perfeito equilíbrio".

Equilíbrio para quem? Para quem tem acesso à educação e à saúde, tem estudo, emprego e renda é fácil perceber o mundo ao seu redor como um lugar equilibrado, a ser mantido. E para quem não tem as mesmas condições? Essas pessoas encontram equilíbrio na organização social e sua estratificação?

Quando comecei a compreender melhor que a sociedade se estendia para além do meu mundinho de classe média e que, enquanto eu podia usufruir de boas condições de vida, havia muito mais gente que não tinha as mesmas oportunidades, comecei a rever a minha própria ideia de que fazer justiça seja "colocar bandido na cadeia". Comecei a entender que "defender bandido" é muito mais justificável do que parece quando me dei conta de que existe um desequilíbrio social que precede a normatização pela atuação legislativa. Desta forma, manter a suposta organização social através da aplicação das normas postas pelo Estado é manter uma sociedade estratificada e desequilibrada, atendendo a interesses de uma oligarquia, enquanto maior parte de quem compõe esta mesma sociedade padece.

Hoje, vendo-me novamente encantado com o direito penal "de verdade", aquele que eu conheci depois de estudá-lo e que nada tinha a ver com minha visão romântica alimentada no cinema e na TV, posso dizer que a visão que eu tinha antes do ingresso na universidade está realmente transformada.

Se antes eu acreditava que fazer justiça era colocar na cadeia quem delinquiu, hoje eu buscaria justificar seu ato e não mediria esforços para defender aquilo que nossa sociedade injusta decidiu conceituar como bandido. O excluído social que rouba está praticando redistribuição de renda.

Com isto, deixo aos estudantes e profissionais do direito uma dica importante: em vez de se ocuparem em decorar lei, estudem filosofia, estudem sociologia, estudem antropologia, estudem psicologia. E aprendam que o direito deverá ser um instrumento para um fim maior, regulação da sociedade. E não queremos uma sociedade desequilibrada e injusta como a que já temos, queremos?

A lei estará à sua disposição para consulta quando você precisar trabalhar sobre ela. A destinação do seu trabalho não. Se você pretende trabalhar para transformar o mundo ao seu redor, é necessário que você o conheça e entenda como ele se construiu. Do contrário você será apenas mais uma engrenagem girando para manter o "equilíbrio" de uma sociedade que precisa fazer malabarismos para se sustentar.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

Diga Não ao Golpe

Tenho notado por parte da imprensa, por parte das pessoas nas redes sociais, nas conversas de mesas de bar e grupos de WhatsApp um certo fomento à ideia de que o General Mourão estaria seguindo os passos do seu antecessor Michel Temer, arquitetando um golpe contra o presidente fascista Jair Bolsonaro.

A impressão que tenho é a de que a própria imprensa vem insistindo no fato de que o presidente não poderia governar hospitalizado e que a administração do país deveria ser instituída ao vice-presidente, Mourão.

Vejo alguns conhecidos endossando o discurso de que um golpe perpetrado pelo General seria bem-vindo, pois acabaria com os desmandos de um governante autoritário e incompetente que ocupa a presidência da república. E o coro aumentou depois que o General Mourão passou a fazer declarações de tom mais moderado e progressista, alinhado a pautas de alguns movimentos sociais, como ao mencionar o aborto como um direito exclusivo das mulheres.

É neste momento que entro num conflito intenso comigo mesmo, quando penso no sonho de um Brasil não governado pelo presidente das armas, Jair Bolsonaro, e na felicidade que me daria vê-lo vítima de um golpe deflagrado por seus aliados. Conflito porque não fico nada, absolutamente nada confortável com a ideia de um golpe apoiado pela mídia, que me parece fazer questão de reforçar a ideia de que o presidente eleito (ainda que sob a influência das fake news) não se encontra apto a governar em razão do seu estado de saúde.

Concordo que o presidente não tem aptidão alguma para governar, mas não é pelo seu estado de saúde. O Brasil já assistiu às reviravoltas decorrentes dos dois pesos e duas medidas no uso conveniente da saúde do Bolsonaro que, quando lhe convinha, era pretexto para se abster de debates e entrevistas, como a gafe que cometeu em Davos, ao dar um bolo na entrevista coletiva depois do seu malfadado discurso de seis minutos, mas não impunha quaisquer óbices à sua aparição na TV aberta, no famigerado canal conservador e evangélico. O presidente não tem aptidão para governar por ser fraco, covarde, néscio, estúpido até, nada preocupado com o bem estar dos governados, mas disposto a sempre dar um jeitinho para beneficiar seus parentes e amigos, valendo-se da máquina pública para tanto.

No entanto, por mais que eu deseje ver a presidência da república do meu país nas mãos de alguém competente e com o Bolsonaro fora, eu não simpatizo com a ideia de que um golpe do seu vice Mourão seja benéfico.

Recentemente, vi pelo Facebook um meme que comparava as últimas declarações do general ao discurso do esquerdo-macho heterossexual oportunista e desconstruído de fachada que, para se aproximar das mulheres, finge estar alinhado às pautas feministas: "Miga, acorda! Ele só quer te comer!" É exatamente o que penso sobre o General Hamilton Mourão. Usa um discurso envolvente para devorar a esquerda, engolindo-a no primeiro momento que lhe for possível.

Durante a campanha eleitoral, tive oportunidade de ouvir o atual vice-presidente em algumas entrevistas. Extremamente bem articulado, chamava atenção pela postura elegante em suas colocações e pelo tom de voz modulado, de maneira comedida, com que exprimia argumentos bem fundamentados e defendia seu ponto de vista. Mostrava-se anos-luz mais informado e culto que o atual presidente e eu quase poderia simpatizar com ele. 

Quase. Não fossem alguns conhecimentos prévios acerca do posicionamento político do militar. Assim como Jair Bolsonaro, Hamilton Mourão é simpatizante à ditadura militar e tem como herói o Coronel Ustra, torturador notável do DOPS. Só isto já elimina qualquer possibilidade de simpatia que eu eventualmente tenha cogitado em ter para com ele.

Em 2017, defendeu que o exército deveria impor o afastamento de pessoas envolvidas em ilícitos, caso o judiciário não o fizesse, o que não apenas invade a esfera de competência do poder judiciário, como ainda extrapola a função das forças armadas.

Em seu discurso linha dura, Mourão já declarou ser contrário ao ativismo LGBT. De acordo com o entendimento raso e equivocado de alguém que notoriamente almeja retirar a credibilidade e a importância de um movimento social, a militância em prol de direitos equiparados entre gays e héteros pretende impor a homossexualidade como um padrão à sociedade, o que não é verdade!

Em 1964, quando João Goulart ainda se encontrava em solo brasileiro, seus rivais, apoiados pelo exército, declararam sua ausência do país e a consequente vacância do cargo de presidente. O resultado disso, todos conhecemos. O Brasil viveu 21 anos sob o domínio militar e sufocou a democracia, que somente seria instaurada em 1988, com o advento da Constituição Federal atualmente vigente. Quando vejo um esforço grandioso da imprensa em declarações como a de que o presidente não está apto ao governo e deve deixar o vice assumir interinamente o cargo, não consigo deixar de associar isto ao apoio que a mesma imprensa deu ao golpe de 1964. E a impressão que tenho é a de que, a qualquer pretexto, a mídia irá declarar a vacância para que, com o apoio popular da esquerda seduzida pelo seu discurso progressista, o General Mourão usurpe o cargo e assuma a presidência da república. Não, eu não apoio.

Não, também não significa que eu esteja satisfeito com alguém como Jair Bolsonaro nos governe. Se estamos dispostos a fazer barulho e questionar a legitimidade da chapa eleita, continuemos a brigar pelas investigações da influência das fake news propagadas pelo PSL e eventualmente pela cassação da chapa eleita, com a deposição do Bolsonaro e do Mourão, se confirmado o vício de consentimento decorrente de erro e dolo, hábil a ter alterado os resultados das eleições.

A substitução um fascista por outro que lhe tenha puxado o tapete pode até soar agradável a quem tem o animus de ver um vilão de novela se dar mal no final. No entanto, diferentemente do script da novela, que acaba quando tudo vai bem para os mocinhos e os vilões recebem seu castigo, na vida real um enredo pode se revelar ainda mais assustador que o antecedente. E seu direito de regozijar com a queda de um presidente incompetente pode ser seu último ato dentro de uma democracia, antes que esta seja sepultada.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

Uma maldição chamada WhatsApp.

Uma maldição chamada WhatsApp.

Amores, não é porque eu estou em casa que eu posso receber todos os meus amigos ao mesmo tempo e dar atenção integral a todos. O mesmo vale para aplicativos de mensagens instantâneas. O fato de eu estar online não significa necessariamente que eu esteja disponível para conversar com todo mundo ao mesmo tempo.

Sim, eu visualizo as mensagens, as barrinhas ficam azuis. E eu volto quando dá para voltar. Ou quando eu quero. Muitas vezes estou lendo, estou cozinhando, estou vendo filme... ou estou recebendo visitas, aquela que você também poderia me fazer em vez de cobrar resposta rápida no WhatsApp.

Sim, eu saio do aplicativo sem me despedir e entro sem dar bom dia. Não gosto de introduções do tipo "preciso falar com você". Já está falando, manda a mensagem. Se for urgente, liga. Se não for, aguarda, que eu respondo. O aplicativo para mim é um mero instrumento facilitador de contato. Não um substituto para o olho no olho. Minha vida está acontecendo ao meu redor, à minha frente, ao alcance das minhas mãos. A prioridade é sempre aquilo que está aqui diante de mim.

Então, sim, vou deixar você sem resposta se meus cachorros vierem brincar comigo. Vou deixar você sem resposta se eu tiver de correr para apagar o forno porque o pão estará queimando. Vou deixar você sem resposta se minha campainha tocar. E quando eu tiver um segundo a mais, pode ficar em paz, sua mensagem será respondida. E vou voltar horas mais tarde e continuar o papo de onde parou. Ou, iniciar outro se, para o anterior eu não tiver resposta a acrescentar.

"Mas, é rapidinho, Gu!" Seria rapidinho se a cobrança viesse de uma pessoa apenas. Mas, minha agenda tem mais de 300 contatos, dentre amigos, parentes, contatos profissionais, etc. Pelo menos 20% desses contatos conversam comigo via WhatsApp. Cada um querendo um tempo que é rapidinho,  não me sobrará mais tempo de fazer outra coisa. E se tiver de avisar a cada um que "estou entrando no banho" ou ser educadinho e polido com "bom dia, pode perguntar", "preciso sair agora", nada mais farei senão enviar mensagens protocolares de introdução e despedida.

Assim, se você falar comigo com um "Bom dia, tudo bem?" E fizer algum comentário qualquer a seguir, não se surpreenda, nem se chateie se eu não responder nem ao seu bom dia, nem dizer se estou bem, e partir direto para o assunto que foi abordado.

Bora marcar uma praia, uma pedalada, uma trilha, um passeio no museu. Assim a gente coloca todo o papo em dia e ainda aproveita o prazer da companhia um do outro. E quando fizer isso, pode chamar assim: "tô indo para o CCBB hoje à noite, topa?". Dispense a formalidade e ganhe tempo ao deixar de escrever três ou quatro mensagens protocolares, tipo "Oi, Guto!", "Boa tarde", "Tudo bem?", "Posso te fazer um convite?". Apenas convide. Ou ligue se eu não visualizar ou responder em tempo hábil e a minha companhia for realmente desejada. É assim que eu faço e dá certo.

Passei cerca de três meses afastado das redes sociais e percebi que tornei inexistente para uma galera! Amigos simplesmente sumiram, convites deixaram de ser feitos, e quando alguém esbarrava em mim em algum canto, exclamava em tom de espanto: "Nossa! Você sumiu!" Não, gente, eu estava no mesmo lugar. Você é que estava vivendo demais a vida virtual, onde deixou de me ver, e parou de se preocupar com a vida real, com o telefonema "Gusta, acabei de fazer um bolo de chocolate. Traz uns salgadinhos e vem aqui agora para gente ouvir música e bater um papo, regado a bolo e salgadinhos!"

Quando retornei para o Facebook para divulgar os pães que eu estava vendendo, de repente voltei a ser visto. Recebi tantos "Estava com saudades!", que me perguntei onde se guardava essa saudade, que poderia ter sido resolvida com uma visita de algumas horas. Não, não estavam com saudades de mim. Estavam com saudades de ver um avatar meu seguido por algumas palavras ácidas, que a gente chama "postagem", e que minutos depois se perderiam em meio a uma enxurrada de outras postagens.

E é com este compromisso acirrado ao mundo virtual que me cobram presença e respostas via WhatsApp quando eu estou muitas vezes vivendo a minha vida do lado de fora do celular.

Para os desavisados, posso estar soando como um velho anacrônico, reclamando do avanço da tecnologia, preso ao passado com o pensamento "na minha época era melhor". Não, não é disso que se trata. É o oposto! Eu entendo que os tempos são outros, entendo que a comunicação avançou com a conectividade permanente, entendo que a agilidade das relações virtuais muitas vezes se torna mais atraente que o contato pessoal. Entendo tudo isso! E é justamente por isso que escrevo este texto. Porque os tempos são outros, pessoal! Para que trazer formalidades que faziam sentido na comunicação de outrora para outro tipo de comunicação que é mais veloz?

- Guto?
- Oi.
- Bom dia.
- Bom dia.
- Como vc está?
- Tô bem e vc?
- Tô bem também. Posso fazer uma pergunta?
- Faz, claro!
- Tem certeza?
(Porraaannnn...)
- Claro, fala logo!
- Não vai atrapalhar, não? Se estiver ocupado, falo outra hora.
(Ah, caralho, fala logo, cacete!)

Olha o tempo que as pessoas perdem e nos fazem perder, quando já podiam começar assim:

- Oi, Gu. Ganhei um par de ingressos para o cinema num sorteio. Ta a fim de ir comigo? Hoje às 21h.
- Opa! Tô sim! Vamos!

The fim!

É isso, galera. Não é preciso ser rude e grosseiro, mas dá pra ser educado sem ser enrolado no WhatsApp. Os tempos são outros. Mas, mesmo assim, existe uma realidade acontecendo ao meu lado enquanto o app está me chamando. Não espere de mim que eu sempre esteja disponível para papear no WhatsApp. Ainda que eu esteja online.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

O Criminoso Projeto de Lei Anticrime do Moro

Sérgio Moro, esse mesmo que se valeu do cargo de juiz para tirar do processo eleitoral o favorito Lula e, com isto, garantir a eleição que lhe renderia o posto de Ministro da Justiça, apresentou nesta segunda o seu Projeto de Lei Anticrime, uma miscelânea teratológica de medidas autoritárias que visam a alterar dispositivos de leis penais e processuais penais, com a esfarrapada desculpa de endurecer o combate ao crime.

O ministro, que em sua trajetória política iniciada com a perseguição ao ex-presidente Lula, já demonstrou não ser muito preocupado com o respeito à Constituição Federal e aos princípios assecuratórios do estado democrático de direitos, vale-se da cultura do medo, arraigada na cabeça da população, para validar as medidas de exceção inseridas no texto do projeto de lei apresentado.

Tive o desprazer de ler a íntegra do projeto e não posso dizer que fiquei chocado com o teor elaborado por um simpatizante de um governo fascistoide, que galgou sua carreira política disfarçado de agente do Poder Judiciário. Mas, se o texto não me causou espanto, não posso dizer que não me tenha causado medo.

Isto porque as alterações propostas pelo Ministro da Injustiça violam nitidamente a Constituição Federal, lei máxima na hierarquia do ordenamento jurídico do país, ao propor a presunção de inocência como uma exceção, não como regra. Além disso, retiram do direito penal sua natureza protetiva do delinquente em face dos excessos punitivos adotados pelo Estado, conferindo-lhe, antes, o caráter de mecanismo apto a legitimar o jus puniendi estatal, ainda que praticado em violação dos direitos humanos. Um dos exemplos disto é o texto que amplia o conceito de legítima defesa e inclui o "medo escusável" como elemento configurador da excludente de ilicitude, além de incluir proteção ao policial, dando-lhe total autonomia sobre o próprio ato, inclusive isentando-o de pena por homicídio cometido em atividade supostamente alegada como confronto.

Conforme introduzido acima, este projeto de lei ganha força quando a sociedade se deixa levar pela cultura do medo, à qual está exposto o "cidadão de bem". Trata-se do discurso amplamente divulgado pela mídia, que insiste em enfatizar, de forma não representativa de números reais, a prática de pequenos delitos, abordando-os em notícias sensacionalistas de forma reiterada, causando a impressão de que sua prática se dá rotineiramente em quantidade exponencialmente maior do que realmente acontece.

Este discurso, aliado à ausência de políticas públicas eficazes no combate às desigualdades sociais, quando capturados por candidatos ou agentes públicos, cujos interesses são ganhar a simpatia deste "cidadão de bem", massifica a ideia de que existe o "cidadão", aquele privilegiado que vive inserido no bojo da sociedade, e existe "o outro", o inimigo, aquele que, por não estar incluído na sociedade, vive dela à margem, passando a ser visto não mais como sujeito de direitos, mas como um sujeito que ameaça os direitos do cidadão, desestabilizando a suposta ordem social vigente.

Vejamos que tal ordem somente existe pelo ponto de vista de quem goza os benefícios da inclusão nos espaços urbanos ou rurais, estruturados de maneira a lhes garantir existência digna. Para aquele a quem as comunidades sociais institucionais viram as costas, nada resta como ordem, e qualquer movimento que eventualmente tente incluí-lo na sociedade, a fim de equilibrar as desigualdades, será visto como desordenador por aqueles cujas posições no grupo serão alteradas. 

Existe um abismo social que separa os "cidadãos" e "os outros", não somente de maneira ideológica ou simbólica, mas também de maneira física. É uma linha demarcatória de lugar, que cria uma fronteira, dentro da qual "o outro" não deverá estar.

Faço uma necessária digressão para comentar que nossa cultura foi criada valorando a noção de escassez, criando desde a mais tenra idade a ideia de competitividade para assegurar ao indivíduo aquilo que não pode ser para todos. Brinquedos na infância. Emprego, moradia, saúde, condições dignas de sobrevivência, na vida adulta. Essa valoração distorcida de que tudo o que existe não existe para todos mantém um suposto, mas inexistente, "instinto de sobrevivência". Assim, o "cidadão" passa a enxergar como ameaça não somente o ato delinquente, mas as próprias iniciativas estatais para redução da desigualdade. Em sua mentalidade de quem foi doutrinado pelo viés da concorrência oriunda da escassez, o acesso do "outro" àquilo que é "seu" o obrigará necessariamente a perdê-lo. E neste contexto, vemos a movimentação da sociedade para barrar políticas assistencialistas, mantendo a exclusão como norma, já que a inclusão do outro no seu espaço, supostamente trará concorrência, para o que quer que seja. É quando assistimos, chocados, a pessoas que se indignam quando o filho da empregada doméstica frequenta a mesma universidade que seu filho.

Assim, tem-se a fórmula ideal para sustentar projetos de lei com foco punitivo e não inclusivos, tais como redução de maioridade penal, aumento de pena ou criminalização de condutas. O medo incutido no "cidadão" leva ao desejo de afastar "o outro" do seu convívio, não importando os meios para tanto. A cultura do medo cria a figura do "inimigo", para quem será direcionado o Direito Penal.

É neste contexto que o projeto do Ministro oportunista Sérgio Moro ganha o apoio da parte conservadora da sociedade, fortalecendo a falsa ideia de um Estado atuante e eficaz no combate à criminalidade. O que este Estado de exceção faz, na verdade, é um trabalho de mascarar a realidade, mantendo excluídos os excluídos, que, se não permanecerão nos espaços urbanos que lhes são destinados, estrategicamente para mantê-los afastados - favelas e periferias - então, serão confinados em prisões. Para o "cidadão de bem", não fará diferença, desde que a ordem social em que está inserido não se veja afetada. É um caso clássico de fins justificando os meios.

Se aprovado o texto integral proposto pelo usurpador Moro, o que veremos será maior segregação das classes menos favorecidas, já que as alterações legais propõem o endurecimento de um mecanismo que já funciona meramente de controle social, o direito penal.

Deste modo, as políticas penais adotadas pelo governo ampliarão o alcance punitivo do Estado, dando-lhe poderes que deveriam ser refreados e não fomentados, sob pena de vermos crescer o totalitarismo em detrimento da democracia. Afigura-se, por conseguinte, notória a incoerência do governo que se elegeu com a proposta de reduzir e enxugar o Estado, vir agora alterar as leis para estender seu alcance com o único propósito de perseguir e afastar "o outro", o desfavorecido  pela estratificação social, alçado à categoria de delinquente por qualquer policial que autodeclarar a prática de homicídio por ato em confronto, ou o cidadão que usar a desculpa do medo escusável como pretexto para excluir a ilicitude do seu ato.

domingo, 6 de janeiro de 2019

O dia em que explusei um bolsominion da minha cama


(Originalmente publicado no meu Facebook em 07.07.2018)

Numa noite qualquer de verão, estava com quase tudo arranjado para momentos incríveis de sexo, carinhos e - quem sabe? - algo que pudesse vir a se desenvolver para um relacionamento.

Mas, num dado momento, falando sobre política, o rapaz me disse que iria votar naquele fascista, cujo nome prefiro não mencionar para não lhe dar moral. Fiquei um pouco chocado. Fui tomado de surpresa, afinal, era alguém com quem eu vinha mantendo contato há alguns meses, a quem já tinha, inclusive, levado para a cama.

Minha primeira reação foi rosnar involuntariamente: "Porra! Você é viado! É candomblecista e portador de HIV, como votar num cara desses? Ele é homofóbico, condena minorias e fala que vai cortar investimento público no tratamento e prevenção do HIV, porque diz que AIDS – ele chama de AIDS! – é doença de viado!" E só depois foi que eu decidi perguntar o porquê desse disparate. Sempre sou inclinado à orientação antes do descarte. Conversamos um pouco sobre política e, ao final do papo, ouvi, num tom que me pareceu honesto um "não tinha parado para pensar sob esta ótica, talvez você tenha razão".

Ufa! Aquela alma tinha salvação! Voltamos à programação habitual. Uns pegas daqui, uns pegas dali, não para, não para agora, puxa cabelo, morde pescoço, me dá sua língua aqui, ah! Naquele estado entre cansaço e relaxamento, cada um olha o próprio celular, fala algumas trivialidades e, não lembro como a Pabllo Vittar foi parar naquela cama.

- Você não acha ridículo esse sucesso todo para uma travesti?
- Oi?! - o tom de voz já tinha saído com vontade própria, sem muito controle da minha parte, e soou como de alguém cuja paciência nunca foi uma marca registrada - Ridículo por quê?! Travesti, transexual, Drag Queen, não podem fazer sucesso? Não, não acho ridículo! Não gosto da sua música, mas acho extremamente importante que sua imagem seja mostrada de forma positiva, o máximo possível, como vem sendo. - e descambei a metralhar meu discurso sobre a importância da representatividade da diversidade nas mídias, no quanto isso me fez falta durante uma adolescência conturbada numa cidadezinha medieval do interior da Bahia nos anos 90 e no quão importante é para pessoas se sentirem representadas e, com isso, evitando os elevados índices de suicídios entre jovens LGBT.

Ali, eu já tinha certeza de que meu crush tinha acabado. Só estava me perguntando então como faria para dizer que não ia rolar mais nada. Eu estava num conflito interno entre a vontade de pedir que ele fosse embora, depois que eu mesmo o convidara (e insistira para que ele viesse) e no quanto seria rude da minha parte fazer isto. Provavelmente permitiria que ele dormisse ali e, no dia seguinte, conversaríamos sobre isso e eu lhe diria que, por questões de princípios inconciliáveis, não conseguiria mais ter qualquer envolvimento com ele.

Mas, já estava um climão instaurado no ar, quase 2h da madrugada, um silêncio constrangedor no quarto. Polêmica sobre o cabelo da modelo negra Yasmim, racismo e preconceito no programa da Fátima Bernardes pipocando em todas as mídias, ele tenta puxar papo:

- Olha isso! Vai dizer que um cabelo desse é bonito?! Esse povo negro é engraçado! Vitimista, tudo agora é racismo!

Estourei. Paciência acabou. Na minha cabeça tinha ficado claro que eu não precisava ser um gentleman com alguém que estava disposto a destruir ideais igualitários de um mundo melhor, alguém que estava pronto para votar num candidato que chancelaria a violência contra mim, contra meus amigos, contra si próprio.

- Cara, olha só, não vai mais rolar nada comigo e com você. Nem hoje, nem amanhã. Não vai. Pode se vestir e ir embora? Eu chamo seu Uber.

Ao sair, depois de ser expulso da minha casa, disse que eu era intolerante:

- Vocês de esquerda são um bando de hipócritas. Falam tanto em igualdade, mas não toleram uma opinião diferente da de vocês. Eu convivo com gente de direita e de esquerda, mas vocês não. Só por causa de uma divergência de opinião!

Saiu. Bloqueou-me de todas as redes sociais. Nunca mais vi. Nunca mais tive notícias. No fundo eu estava orgulhoso para caralho por ter tido pulso firme e ter decidido não ser um cavalheiro com alguém que pauta a existência na segregação.

***

Numa noite qualquer de inverno, durante um papo descontraído com um outro pretendente.

- Não sei o que você viu em mim, mas seja lá o que for, gosto que tenha visto.
- Além de tudo o mais, a sua visão política foi um fator determinante para manter meu interesse. Acho até confortável estar com alguém com interesses e gostos parecidos, mas não é essencial. Respeitadas as liberdades individuais e o espaço de cada um, acho tranquilo lidar com alguém gostar de pop e eu gostar de jazz, alguém gostar de viver em casa e eu gostar de pedalar e fazer trilha. Mas, ao contrário, acho essencial estar com alguém alinhado pelos mesmos ideais. Eu namoraria alguém baladeiro, que detesta praia e odeia contato com a natureza, mesmo sendo o oposto disso. Mas, não namoraria alguém que achasse legal o homem ser explorado pelo homem.

***

Percebo como é fácil para pessoas que têm uma visão conservadora de mundo dizerem que nós, "de esquerda", somos intolerantes quando queremos nos manter distantes deles.

Sem adentrar a seara daqueles que têm má-fé mesmo e acham correto espancar homossexual, negro e mulher,  vejo, em sua grande maioria - e digo aqui apenas com base em conhecimento empírico fundado numa observação do mundo à minha volta, não se podendo levar em conta como dados estatísticos confiáveis - que são pessoas pouco inteligentes e não enxergam a política como uma alavanca capaz de mudar o mundo.

Para estas pessoas, política é um universo paralelo, que não alcança os meros mortais. Então, não faz diferença em quem votam, já que em sua mente limitada, seu voto no candidato homofóbico não vai agredir seu vizinho bicha, porque a violência está na rua e não no Congresso. Para estas pessoas, você não é o mesmo negro de quem aquele candidato defende que se pode falar mal e fazer piada, você é brother, pô. "Eu sou seu amigo, negão, então não sou racista!"

Esse tipo de gente não entende o significado de democracia representativa e que, ao dar ao candidato seu voto, está lhe conferindo um poder parar agir em seu nome,  fazendo aquilo que não tem condições de fazer sozinho. Estas pessoas não parecem levar em conta que estão legitimando o candidato para lhes representar. Se não acham correto bater em criança, e mesmo assim dão poder a alguém que defende que crianças devem apanhar, estas pessoas não têm coerência. São, talvez, as que tenham salvação. Ignorantes, pouco inteligentes, nada engajadas. Se forem bem orientadas, talvez possam abrir os próprios horizontes e se tornarem mais conscientes.

Outro tipo, que não exclui o anterior, é o de quem não tem uma visão sistêmica, de que o discurso de um candidato pode ser uma influência ao cidadão comum. O candidato que diz que a mulher merece ser estuprada se estiver usando decote está chancelando a prática do mero mortal para cometer esse tipo de violência.

Cortei relação com um parente depois que me mandou uma montagem na qual homens sorridentes ao redor de uma mesa de sinuca seguram armas em vez de tacos, na qual se lia "Eu e meus amigos quando meu candidato for eleito". Naquela ocasião, antes de bloqueá-lo e limá-lo do meu convívio, enviei a foto de um rapaz gay brutalmente assassinado, espancado a pauladas até a morte. E escrevi na última mensagem que lhe enviei: "Eu e meus amigos quando seu candidato for eleito. Quando acontecer comigo, lembra da escolha que você fez e não venha dizer que me ama".

Entendo porque parece tão fácil para essas pessoas conservadoras conviverem com gente que tem uma "opinião diferente" e porque elas não compreendem como anseio por igualdade e por liberdade o nosso afastamento.

Porque em seu mundo, a opinião diferente de uma minoria continuará sendo apenas uma opinião diferente de uma minoria, que, por ser minoria, jamais será uma ameaça aos seus privilégios. O mundo ideal do conservador é aquele em que sua posição de destaque permanece inalterada. Então, ok vc ser negro, ok vc ser viado, ok vc ser mulher. Você continuará sendo discriminado, continuará sendo explorado, continuará sendo submissa ao patriarcado e nada disso afetará a condição de homem, heterossexual, branco, de classe média alta. Ao passar a manteiga no pão que tem em sua mesa pela manhã, não irá mesmo se lembrar que em lugar do planeta, uma legião estará passando fome. Então, sim, "convive" com todos numa boa!

No meu mundo não cabe esse tipo de gente. No meu mundo eu quero derrubar os privilégios e dar oportunidades iguais a todas as pessoas. Todas as pessoas que não se utilizarão dessa oportunidade para crescer sobre as outras e viver privilégios que as outras não têm.

Então, você que é descartado deste meu mundo, não ache que estou sendo intolerante. É fácil demais para você, cujo mundo ideal é um mundo de intolerância, achar que as minorias devem querer conviver contigo, já que você mesmo não enxerga a falha no seu sistema e não se interessa em dar um boot para reiniciar de outra forma.

Amizades desfeitas e a Democracia representativa II

Nesta semana um idiota voltou a me provocar no WhatsApp, mandando-me uma imagem na qual se viam alguns rapazes sorridentes ao redor de uma mesa de sinuca. Na tosca montagem, os tacos do jogo haviam sido substituídos por espingardas e fuzis, e sua legenda dizia "EU E MEUS AMIGOS QUANDO BOLSONARO FOR ELEITO EM 2018".

Antes de bloqueá-lo, depois dessa sua terceira provocação, devolvi a mensagem. Enviei-lhe a foto de um rapaz morto de forma violenta, com dentes quebrados, hematomas no rosto inchado e sangramento na boca e no nariz e fiz questão de legendá-la com a mensagem "EU E MEUS AMIGOS SE BOLSONARO FOR ELEITO EM 2018 POR GENTE COMO VOCÊ E SEUS AMIGOS".

Tempos atrás, tive uma ligeira indisposição com um amigo querido porque eu disse que alinhamento político diverso ao meu era um fator limitante para determinar meu interesse ou não por uma pessoa, ao que fui interpelado com o argumento de que opiniões divergentes são fundamentais para o crescimento e que não se deve perder a chance de descobrir pessoas interessantes por causa de política, já que os candidatos "estão lá" e "nossa vida segue por aqui", como se nossa existência fosse indiferente às políticas do nosso país.

Incomodo-me demais com esta visão de que política é uma coisa alheia à nossa vida, como se fosse um universo paralelo incapaz de nos afetar.

É claro que opiniões divergentes geram debates e enriquecem as ideias. Concordo em absoluto com esta premissa, o que não significa que eu deva ser aberto a toda e qualquer opinião. Especialmente se a manifestação dessa opinião for contrária a valores que trago como essenciais.

Disse-lhe que eu jamais conseguiria me envolver afetivamente com alguém que votasse num candidato como o Bolsonaro e fui tachado de radical por este posicionamento. "Uma pessoa pode ter outras qualidades". Sim, pode! Mas, conferir um voto a um candidato totalmente desalinhado com os valores que tomo como diretrizes para a minha própria existência faz dessa pessoa alguém diametralmente oposto a mim, anulando qualquer outro valor que porventura esta pessoa venha a ter.

Política é algo muito mais perto de nós do que imaginamos. E podemos extrair isto do artigo 1º, Parágrafo único, da Constituição Federal, que diz: "Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente". Significa que vivemos em uma democracia representativa, ou seja, que conferimos ao nosso candidato o poder que nos cabe, para que ele tome, em nosso nome, as medidas que nós mesmos tomaríamos. Por isso, são chamados de representantes eleitos. Porque eles representam aquilo que somos.

Assim, se alguém confere a um candidato como Jair Bolsonaro o poder para que ele venha restringir direitos das minorias, fazendo-as se curvar à maioria, como já declarou inúmeras vezes, este eleitor está dizendo que concorda com esta política e se sente representado por quem a exerce. Se alguém confere a este candidato o poder para agredir homossexuais, mulheres, negros, índios, não cristãos, está dizendo a mim que faria isto tudo se lhe coubesse. Como não cabe, outorga a um representante seu que o faça em seu lugar.

Uma pessoa que faz tudo isso está dizendo a mim que a minha existência é um erro e valida qualquer tentativa de corrigi-lo, ainda que eu venha a ser massacrado na rua com a chancela do seu candidato. Uma pessoa desta definitivamente não é digna da minha consideração, da minha amizade, do meu afeto, tampouco de qualquer laço existente meramente por consanguinidade.

O imbecil que me provocou reiteradas vezes pelo meu WhatsApp ao longo dos últimos dias já foi devidamente freado do meu convívio com um bloqueio no meu aplicativo. Se ele quiser jogar a sinuca dele com seus amigos, usando armas de fogo em lugar de tacos, que fique à vontade. Mas, quando um dos seus disparos me atingir, que não lamente pela escolha que fez. Ele escolheu me alçar à qualidade de alguém que pode deixar de existir.