(Originalmente publicado no meu Facebook em 07.07.2018)
Numa noite qualquer
de verão, estava com quase tudo arranjado para momentos incríveis de sexo,
carinhos e - quem sabe? - algo que pudesse vir a se desenvolver para um
relacionamento.
Mas, num dado
momento, falando sobre política, o rapaz me disse que iria votar naquele
fascista, cujo nome prefiro não mencionar para não lhe dar moral. Fiquei um
pouco chocado. Fui tomado de surpresa, afinal, era alguém com quem eu vinha
mantendo contato há alguns meses, a quem já tinha, inclusive, levado para a
cama.
Minha primeira
reação foi rosnar involuntariamente: "Porra! Você é viado! É candomblecista e portador de HIV, como votar num cara desses? Ele é homofóbico, condena minorias e fala que vai cortar investimento público no tratamento e prevenção do HIV, porque diz que AIDS – ele chama de AIDS! – é doença de viado!" E só depois foi que eu decidi perguntar o porquê desse disparate. Sempre sou
inclinado à orientação antes do descarte. Conversamos um pouco sobre política
e, ao final do papo, ouvi, num tom que me pareceu honesto um "não tinha
parado para pensar sob esta ótica, talvez você tenha razão".
Ufa! Aquela alma
tinha salvação! Voltamos à programação habitual. Uns pegas daqui, uns pegas
dali, não para, não para agora, puxa cabelo, morde pescoço, me dá sua língua
aqui, ah! Naquele estado entre cansaço e relaxamento, cada um olha o próprio
celular, fala algumas trivialidades e, não lembro como a Pabllo Vittar foi
parar naquela cama.
- Você não acha
ridículo esse sucesso todo para uma travesti?
- Oi?! - o tom de
voz já tinha saído com vontade própria, sem muito controle da minha parte, e
soou como de alguém cuja paciência nunca foi uma marca registrada - Ridículo
por quê?! Travesti, transexual, Drag Queen, não podem fazer sucesso? Não, não
acho ridículo! Não gosto da sua música,
mas acho extremamente importante que sua imagem seja mostrada de forma
positiva, o máximo possível, como vem sendo. - e descambei a metralhar meu
discurso sobre a importância da representatividade da diversidade nas mídias,
no quanto isso me fez falta durante uma adolescência conturbada numa
cidadezinha medieval do interior da Bahia nos anos 90 e no quão importante é
para pessoas se sentirem representadas e, com isso, evitando os elevados
índices de suicídios entre jovens LGBT.
Ali, eu já tinha
certeza de que meu crush tinha acabado. Só estava me perguntando então como
faria para dizer que não ia rolar mais nada. Eu estava num conflito interno
entre a vontade de pedir que ele fosse embora, depois que eu mesmo o convidara (e insistira para que ele viesse) e no quanto seria rude da minha parte fazer isto. Provavelmente permitiria que
ele dormisse ali e, no dia seguinte, conversaríamos sobre isso e eu lhe diria
que, por questões de princípios inconciliáveis, não conseguiria mais ter
qualquer envolvimento com ele.
Mas, já estava um climão instaurado no
ar, quase 2h da madrugada, um silêncio constrangedor no quarto. Polêmica sobre
o cabelo da modelo negra Yasmim, racismo e preconceito no programa da Fátima
Bernardes pipocando em todas as mídias, ele tenta puxar papo:
- Olha isso! Vai dizer que um
cabelo desse é bonito?! Esse povo negro é engraçado! Vitimista, tudo agora
é racismo!
Estourei. Paciência
acabou. Na minha cabeça tinha ficado claro que eu não precisava ser um
gentleman com alguém que estava disposto a destruir ideais igualitários de um
mundo melhor, alguém que estava pronto para votar num candidato que chancelaria
a violência contra mim, contra meus amigos, contra si próprio.
- Cara, olha só, não vai mais
rolar nada comigo e com você. Nem hoje, nem amanhã. Não vai. Pode se
vestir e ir embora? Eu chamo seu Uber.
Ao sair, depois de
ser expulso da minha casa, disse que eu era intolerante:
- Vocês de esquerda são um
bando de hipócritas. Falam tanto em igualdade, mas não toleram uma opinião
diferente da de vocês. Eu convivo com gente de direita e de esquerda, mas
vocês não. Só por causa de uma divergência de opinião!
Saiu. Bloqueou-me de
todas as redes sociais. Nunca mais vi. Nunca mais tive notícias. No fundo eu
estava orgulhoso para caralho por ter tido pulso firme e ter decidido não ser
um cavalheiro com alguém que pauta a existência na segregação.
***
Numa noite qualquer
de inverno, durante um papo descontraído com um outro pretendente.
- Não sei o que você viu em
mim, mas seja lá o que for, gosto que tenha visto.
- Além de tudo o mais, a sua
visão política foi um fator determinante para manter meu interesse. Acho
até confortável estar com alguém com interesses e gostos parecidos, mas
não é essencial. Respeitadas as liberdades individuais e o espaço de cada
um, acho tranquilo lidar com alguém gostar de pop e eu gostar de jazz,
alguém gostar de viver em casa e eu gostar de pedalar e fazer trilha. Mas,
ao contrário, acho essencial estar com alguém alinhado pelos mesmos
ideais. Eu namoraria alguém baladeiro, que detesta praia e odeia contato
com a natureza, mesmo sendo o oposto disso. Mas, não namoraria alguém que
achasse legal o homem ser explorado pelo homem.
***
Percebo como é fácil
para pessoas que têm uma visão conservadora de mundo dizerem que nós, "de
esquerda", somos intolerantes quando queremos nos manter distantes deles.
Sem adentrar a seara
daqueles que têm má-fé mesmo e acham correto espancar homossexual, negro e
mulher, vejo, em sua grande maioria - e
digo aqui apenas com base em conhecimento empírico fundado numa observação do mundo
à minha volta, não se podendo levar em conta como dados estatísticos confiáveis
- que são pessoas pouco inteligentes e não enxergam a política como uma
alavanca capaz de mudar o mundo.
Para estas pessoas,
política é um universo paralelo, que não alcança os meros mortais. Então, não
faz diferença em quem votam, já que em sua mente limitada, seu voto no candidato homofóbico não
vai agredir seu vizinho bicha, porque a violência está na rua e não no Congresso. Para estas pessoas, você não é o mesmo negro de quem aquele candidato defende
que se pode falar mal e fazer piada, você é brother, pô. "Eu sou seu
amigo, negão, então não sou racista!"
Esse tipo de gente
não entende o significado de democracia representativa e que, ao dar ao
candidato seu voto, está lhe conferindo um poder parar agir em seu nome, fazendo aquilo que não tem condições de fazer
sozinho. Estas pessoas não parecem levar em conta que estão legitimando o
candidato para lhes representar. Se não acham correto bater em criança, e mesmo
assim dão poder a alguém que defende que crianças devem apanhar, estas pessoas
não têm coerência. São, talvez, as que tenham salvação. Ignorantes, pouco
inteligentes, nada engajadas. Se forem bem orientadas, talvez possam abrir os
próprios horizontes e se tornarem mais conscientes.
Outro tipo, que não
exclui o anterior, é o de quem não tem uma visão sistêmica, de que o discurso de
um candidato pode ser uma influência ao cidadão comum. O candidato que diz que
a mulher merece ser estuprada se estiver usando decote está chancelando a prática
do mero mortal para cometer esse tipo de violência.
Cortei relação com
um parente depois que me mandou uma montagem na qual homens sorridentes ao
redor de uma mesa de sinuca seguram armas em vez de tacos, na qual se lia
"Eu e meus amigos quando meu candidato for eleito". Naquela ocasião,
antes de bloqueá-lo e limá-lo do meu convívio, enviei a foto de um rapaz gay
brutalmente assassinado, espancado a pauladas até a morte. E escrevi na última
mensagem que lhe enviei: "Eu e meus amigos quando seu candidato for
eleito. Quando acontecer comigo, lembra da escolha que você fez e não venha
dizer que me ama".
Entendo porque
parece tão fácil para essas pessoas conservadoras conviverem com gente que tem
uma "opinião diferente" e porque elas não compreendem como anseio por
igualdade e por liberdade o nosso afastamento.
Porque em seu mundo,
a opinião diferente de uma minoria continuará sendo apenas uma opinião
diferente de uma minoria, que, por ser minoria, jamais será uma ameaça aos seus
privilégios. O mundo ideal do conservador é aquele em que sua posição de
destaque permanece inalterada. Então, ok vc ser negro, ok vc ser viado, ok vc
ser mulher. Você continuará sendo discriminado, continuará sendo
explorado, continuará sendo submissa ao patriarcado e nada disso afetará a
condição de homem, heterossexual, branco, de classe média alta. Ao passar a
manteiga no pão que tem em sua mesa pela manhã, não irá mesmo se lembrar
que em lugar do planeta, uma legião estará passando fome. Então, sim, "convive" com todos numa boa!
No meu mundo não
cabe esse tipo de gente. No meu mundo eu quero derrubar os privilégios e dar
oportunidades iguais a todas as pessoas. Todas as pessoas que não se utilizarão
dessa oportunidade para crescer sobre as outras e viver privilégios que as
outras não têm.
Então, você que é
descartado deste meu mundo, não ache que estou sendo intolerante. É fácil
demais para você, cujo mundo ideal é um mundo de intolerância, achar que as
minorias devem querer conviver contigo, já que você mesmo não enxerga a falha
no seu sistema e não se interessa em dar um boot para reiniciar de outra forma.
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