O diálogo versava sobre um
processo que meu interlocutor estava movendo em face de uma empresa. Ele havia
tido acesso à contestação apresentada pelo adversário e estava chocado com a
quantidade de mentiras ali narradas e com a quantidade de falhas técnicas cometidas
–ausência de documentos e mesmo documentos que corroboravam suas alegações
iniciais. Junto com essas constatações, ele ainda me narrava, num tom de exasperação,
o incômodo que sentiu com a postura da advogada do seu litigante durante a
audiência de conciliação.
– Não é possível que alguém
minta daquela forma e volte para casa com a consciência tranquila.
Pus-me a pensar na minha própria trajetória
profissional e não pude deixar de me colocar no lugar dessa advogada. Embora me
mostrasse bastante satisfeito com o péssimo trabalho prestado pelo escritório
do seu adversário, que favorecia meu interlocutor, não execrei a postura
daquela advogada, tampouco condenei o profissional que elaborou a peça de
defesa com tantas falhas:
– Isso é resultado dessa
política estúpida que impera nos escritórios de advocacia. Fazer mais em quantidade
por menos em qualidade. Muito trabalho, pouca técnica. Eu acho é pouco que eles
se deem mal! Mas, a advogada que fez sua audiência é uma vítima. Não é a ela
que seu ódio deve ser direcionado. Quem tem que se foder mesmo é o escritório
onde ela trabalha.
– Soube que ela foi demitida.
– Sério?! Não me surpreende! Só
confirma o que penso. Provavelmente ela era uma boa profissional. E tinha que receber
seu salário obedecendo cegamente às determinações do patrão. Ao se atrever a descumprir uma ordem, teve sua cabeça pedida.
Em seu estarrecimento, demonstrava
não acreditar que um profissional pudesse se esforçar para tentar retirar um
direito que sabia ser do outro apenas para que pudesse se adequar às
diretrizes dos chefes.
Então quem ficou surpreso fui eu.
– Eu não sei qual a sua
surpresa. Não é assim que funciona tudo dentro do capitalismo? “Vamos destruir
o meio ambiente, sabemos que é errado, mas fazemos isso em troca de uns
centavos, alimentamos a famigerada indústria da moda, fazemos feliz o
empresário e tiramos disso nosso sustento” ou “Vamos maltratar animais em
cativeiro, inserindo neles hormônios de todos os tipos, mantendo-os confinados
em celas superpopulosas, como presidiários brasileiros, alimentamos a indústria
da carne, fazemos feliz o empresário e tiramos disso nosso sustento”. Isso é o
capitalismo! Ou fazemos isso ou morremos de fome. Não culpo o advogado
empregado. É tão vítima desse sistema quanto as 1.127 costureiras desgraçadas
de Bangladesh que morreram no desabamento do prédio em 2013. E para quê? Para
alimentarem o sistema com seu trabalho escravo porque tinham que sustentar uma
família.
Tais constatações reforçam a
minha crise com a nossa sociedade que, de uns tempos para cá vem assolando meus
pensamentos com uma frequência gigantesca. E quando digo às pessoas que tenho sonho
de sair desse convívio tóxico, minimizando tanto quanto possível meu contato com
esta sociedade, isolando-me no mato como narra Thoureau em seu livro Walden, sinto
que muita gente não compreende o alcance do meu incômodo.
Vejo sempre que há uma espécie de
tendência entre as pessoas de adotarem uns discursos vazios, publicando em suas
redes sociais mensagens que parecem extraídas de livros de autoajuda, nas quais
muito se fala sobre “valorizarem as pequenas coisas”. No entanto, essas mesmas pessoas
parecem que não se tocam de verdade de que há coisas mais importantes que bens
materiais, dinheiro, consumo, e seguem perpetuando esse ciclo nefasto de ruptura
da moral vigente, de esvaziamento de princípios em troca de uns poucos centavos,
na luta por uma sobrevivência dificultada pela falsa necessidade incutida em
suas mentes, de que é preciso ter mais do que se precisa. Não, eu não me excluo
deste grupo.
O profissional que mente em uma
audiência para garantir o lucro do seu patrão é o mesmo profissional que vende
plano de internet e telefone para o consumidor, escondendo dele que terá de
pagar multa se romper o contrato; é o mesmo profissional que tem cachorro em
casa, que adora animais, mas não pensa duas vezes antes de matar de forma
extremamente dolorosa uma foca a pauladas, para vender sua carne, sua banha,
seu couro: é o profissional que precisa sustentar a própria família, é o
profissional precisa comer, pagar aluguel, sustentar filho...
Para um advogado empregado, um
caso é apenas mais um caso, de uma planilha com outros cinquenta casos para
cumprir num dia. Eu mesmo pude experimentar essa realidade em diversos
estabelecimentos em que trabalhei. Para esse advogado, não há tempo para analisar
uma situação, para fazer uma defesa justa, dentro de parâmetros legais. Para
esse advogado, o que se evidencia é o risco de perder o emprego se propuser ao
chefe uma defesa justa, incentivando-o a reconhecer o direito do outro. Esse
advogado é apenas obrigado a copiar e colar, copiar e colar, copiar e colar, sem
sequer poder pensar no impacto que isso tem na vida de uma pessoa.
As pessoas têm princípios, claro.
E muitas vezes não se dispõem a abrir mão deles. Até o momento em que não
encontram um prato de comida em casa, ocasião em que, provavelmente, sua
elasticidade seria muito maior para suportarem as condições que o patrão impõe.
Eu tenho princípios. Muitas vezes
me recusei a cumprir ordens, muitas vezes não me vendi ao sistema. E só pude
fazer isto porque sabia que por trás de mim havia um suporte financeiro
familiar com o qual eu poderia contar em último caso. Ainda assim, paguei caro:
fiquei oito meses desempregado em um ano, sete meses desempregado em outro, dez
meses em outro. Porque tenho meus princípios éticos e morais e não me disponho
a baixar a cabeça para a indústria do consumo, não me disponho a vender minha
força de trabalho para quem não reconhece meu real valor... Discurso lindo.
Seria ainda mais se fosse absolutamente verdadeiro. Se eu não tivesse um suporte
familiar em última hipótese, será mesmo que meus princípios seriam tão fortes,
tão inabaláveis? Antes de qualquer coisa, eu precisaria comer. E eu pergunto a
quem estiver me lendo: se sua escolha fosse entre comer para sobreviver ou ser
honesto com seus princípios, você morreria de fome? Provavelmente eu não. Ou, mantendo-me
firme em minhas convicções, daria um tiro no meu próprio ouvido para não ser obrigado a abrir mão daquilo em que acredito em troca de uma vida sem
propósitos.
São constatações como esta que me
fazem insistir em dizer que a vida é uma droga, que viver é uma atividade
extenuante, cansativa e desagradável.
Ainda sobre trabalhos de merda
impostos por um sistema de merda, pergunto: qual a diferença entre o advogado
que fode a vida de uma pessoa – que para ele é só mais um caso – e um
assaltante a mão armada que atira na vítima? Quando eu tomo a casa de um
devedor do banco que eu defendo, quando eu tiro o ressarcimento da família do
pai morto atropelado por um trem, quando eu fecho uma rádio de uma cidade
porque não paga direitos autorais, o que faz de mim uma pessoa menos pior que
aquela outra que disparou o gatilho em troca do celular de última geração?
Ao tratar cada caso como uma mera
tarefa a ser cumprida, dou-me conta de que posso estar tirando dessas pessoas
bens que eles passaram a vida inteira para juntar (possivelmente explorando o
trabalho de outras pessoas também)? Dou-me conta de que essas pessoas se
suicidam quando têm sua casa hipotecada, ou veem fechada a rádio de onde tiram
a sobrevivência? O que me diferencia do assaltante que matou o dono do celular
para levar comida para os três bebês que ele tem em casa?
É possível até que me digam: “Ah,
Guto, mas o bandido nem matou para sustentar um bebê. Ele matou para ostentar
um iPhone!” E quando eu contribuo com meu trabalho honesto, auxiliando o
meu patrão a fechar o estabelecimento comercial que sustenta toda uma família,
em troca do salário com o qual eu compro o meu iPhone, por que isso faz de mim alguém
digno e faz do outro um criminoso? O bandido que assalta, não por comida, mas
para ostentar uma roupa cara – e, consequentemente não tem a seu favor o salvo-conduto
do estado de necessidade para justificar seu crime – é muito diferente do CEO
de uma grande companhia que desmata e obriga toda uma população de um vilarejo
a inalar gases tóxicos que invariavelmente irão lhes matar? Qual é a diferença,
se cada um faz o que faz para se adequar a uma sociedade de consumo? A mesma
que me faz tomar a casa de um devedor do banco para quem eu trabalho, em troca
de um salário que me permitirá ter o meu iPhone.
Não pense você que se atreve a me
ler que estou fazendo uma campanha para que você odeie os advogados. O que chamo
é uma reflexão que nos permita reconhecer que praticamente qualquer trabalho
feito para manter esse sistema é tão infame quanto. E quem o exerce, quase
sempre o faz porque precisa sobreviver.
O trabalho supostamente honesto é
quase análogo à lavagem de dinheiro. Para lavar dinheiro, você adiciona várias
etapas na circulação dos valores financeiros de origem ilícita, criando uma
cadeia gigantesca, até que na última etapa já se tenha perdido sua origem, ocultando-se
a ilicitude subjacente à circulação da quantia em questão. É assim que enxergo
as nossas profissões em sua grande maioria: uma lavagem do gesto, uma limpeza
do ato.
O assaltante atira no trabalhador
e seu ato delituoso é imediatamente reconhecido como tal. Já o banco explora o
trabalhador. O banco cobra juros. O banco hipoteca sua casa. Tudo isto está
dentro da legalidade. O advogado defende o banco, dentro da legalidade. O banco
recupera "seu prejuízo" ao retomar a casa hipotecada daquele trabalhador.
O advogado ganha seu salário de merda e nem tem tempo para avaliar a gravidade do
que fez antes de passar para o próximo caso. Para aquele trabalhador, a casa
era seu sonho tomado. Para aquele trabalhador, a casa era o abrigo da sua
família. A família vai morar nas ruas. A família adoece. A família morre de
fome. E quem fez isso? Ninguém.
Ninguém mesmo? Ou será que toda
essa cadeia serviu só para fazer uma "lavagem" para o ato do banco,
para o ato do advogado, para o ato do contador, para o ato do administrador de
empresas, todos envolvidos na atividade financeira que destruiu uma família?
Legalidade não necessariamente se
confunde com moralidade. O meu trabalho é legal. O seu trabalho é legal. A
sociedade está sedimentada sobre trabalhos legais. Quantos deles são moralmente
defensáveis? O marceneiro que constrói o cadafalso tem menos responsabilidade que
o carrasco que aperta o nó do enforcado?