segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Sobre o tempo...

Vou falar diretamente para minhas e meus colegas advogadas e advogados. Mas, para um grupo específico dentro da classe. Quero conversar diretamente com aquele profissional que, pelo fato de um ultrapassado decreto imperial lhe conferir o título de Doutor, e por, no curso, ter decorado umas tantas expressões em latim, sente-se membro do nível mais elevado da elite intelectual, ocupando, com isto, um lugar hierarquicamente superior ao dos meros mortais; falo para você, coleguinha reaça, que acredita de fato no sucesso do capitalismo e acha de verdade que você só não enriqueceu ainda porque não está trabalhando o suficiente; para você que acha que falar em luta de classes é mimimi de esquerdista perdedor.

Vou ilustrar uma cena para você, a qual você conhece bem: Você trabalha como empregado ou como associado em um escritório qualquer. Um desses, dentre tantos, que te chama de PJ e não te paga como se houvesse vínculo de emprego, mas exige de você todos os compromissos do empregado. Ali você tem seu pagamento mensal, que não chega nem perto da metade daquilo que, nos tempos de universidade, você acreditava e sonhava que ganharia. Você ganha causas e mais causas para o escritório do seu chefe e acha um absurdo o grupo de sócios levar os honorários integralmente, sem deixar com você sequer aquele 1% que lhe renderia um bônus de dois dígitos antes do ponto, logo naquele mês de aperto por causa da fatura mais alta do cartão de crédito daquela viagem que você fez ao Nordeste.

Você trabalha em horário integral, muitas vezes, inclusive, ultrapassando a hora, cujo pagamento extra você não receberá. Seu chefe tem com você um contrato de exclusividade, não lhe sendo possível pegar casos processuais por fora do trabalho, para atuar por conta própria, mesmo sendo contratado como um prestador de serviços. Além de ser facilmente descoberto, podendo ensejar o desfazimento do seu contrato de trabalho, você não teria tempo para se dedicar às causas. Como iria para uma audiência daquele processo que você patrocina por conta própria se no horário você estará trabalhando para sua coordenadora, que estará trabalhando para sua gerente, que estará trabalhando para o dono do escritório?

Mas, seu chefe também é um cara incrível e lhe propõe parceria!

"Doutora, se algum amigo seu lhe levar um caso, a colega não poderá pegar, não é? É aí que a gente entra, traga o caso para o escritório. Te damos aqui computador, telefone, e-mail, as ferramentas necessárias para você atuar na causa. Quando houver audiência, poderá ir sem afetar o horário de trabalho, já que o caso é nosso. Então, o escritório fica com 70% dos ganhos e os outros 30% são seus por ter trazido o cliente. Que tal? Imperdível, não é?"

Qual sua outra opção? Dispensar o caso, já que, de qualquer forma você não poderia mesmo atuar nele por não ter tempo livre? Não tem nada a perder, então leva o cliente para seu patrão que, com olhos vorazes e boca salivando, engole os 70% dos honorários que ele deixará com o advogado, que poderia ser somente você. Se você tivesse tempo. Mas, você é um cara muito esperto, já garantiu aí uns 30% do dinheiro-que-poderia-ser-todo-seu-se-você-tivesse-tempo. Ou isso, ou ver o cliente ir para outro escritório, encher de dinheiro os bolsos do concorrente da sua chefe. Melhor encher os dela e você conseguir uns farelos disso, né não?

Você atua no caso com dedicação. O cliente é seu amigo, poxa, você o levou para o escritório, então tem que garantir tratamento VIP. Seu chefe não lhe paga pra isso, mas você se dedica por que você é bom. E cada vez que você atua neste caso, você pensa no quão injusto é o dono do escritório que te paga um salário baixíssimo ficar com quase dois terços de um valor que poderia ser só seu. Se você tivesse tempo.

Por que, afinal, você faz todo o trabalho de pesquisa de jurisprudência, faz todo o trabalho de redigir um texto, pensando nos melhores argumentos para a causa; por que você fica três horas aguardando para falar com o juiz que sequer queria te ver, e no fim, seu trabalho inteiro só servirá para enriquecer seu patrão? Aí você lembra que não pegou o caso por conta própria porque não tem tempo livre. E seu tempo está sendo usado para garantir seu salário mensal, muito, muito, muito abaixo daqueles honorários que uma só ação irá render, de um cliente que é seu amigo, que levou  caso até você, e não até a sua patroa; a cliente é alguém que estava disposta a te pagar porque confia no seu trabalho. E que você, por ter vendido seu tempo para um empresário em troca de um salário mensal, não poderá receber. Dê-se, portanto, por satisfeito em ter os 30%.

Aposto que você sempre achou injusto seu patrão receber mais do que você, somente por ele ter disponibilizado uma mesa, uma cadeira, um computador e conexão wi-fi. Afinal, quem fez o trabalho pesado foi você! Você até acharia justo pagar o chefe pelos meios que ele disponibilizou para que você exercitasse seu ofício de advogar. Você é uma profissional justa, não iria querer explorar também os instrumentos da sua patroa sem lhe dar uma contraprestação. Mas, para você, o justo seria que você ficasse com 80% e ele com 20%. É isso que você sabe que seu tempo vale em relação aos meios de produção que o empresário lhe forneceu. Mas, é com o seu salário que você compensa o tempo que disponibiliza para seu chefe ter todo o lucro.

Você viu como, ao longo do texto todo, o fator tempo foi enfatizado. Você viu o quão limitado você fica por ter seu tempo vendido ao seu patrão em troca de um pagamento mensal que você mesmo entende ser muito menor do que o que deveria ser pago. Pois então, coleguinha, reaça, defender o socialismo e a luta de classes é sobre pagar por este tempo que você vende ao empresário por um valor irrisório aquilo que este tempo efetivamente vale. Agora, arrisque dizer para quem o comunismo se mostra uma ameaça.

Nenhum comentário:

Postar um comentário