quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Ele não me fez falta.

Em diálogo com um amigo que vem valentemente enfrentando um Linfoma Não Hodgkin, e por cuja recuperação torço sinceramente, fui questionado se eu nunca me senti solitário durante todo o período em que venho enfrentando/enfrentei meu Carcinoma pelo fato de eu ser ateu e, consequentemente, não depositar a esperança da minha cura em um “ser superior” que estivesse velando por mim. Em resposta, disse-lhe que não. E uma série de pensamentos me ocorreu de forma atabalhoada, quase me impedindo de seguir adiante na conversa, em razão da dificuldade de transpô-los ordenadamente em palavras.
De fato, não me senti sozinho durante meu tratamento e nas ocasiões das cirurgias a que tive de me submeter. Em todos estes momentos, contei com uma equipe médica bem preparada, o que, por razões óbvias para mim, é o principal! Ademais, contei com o apoio de amigos e da família, o que me impediu de sucumbir quando o medo, a dor e a tristeza bateram algumas vezes a minha porta.
Não. Deus não fez a menor falta! Até mesmo porque, ad argumentandum tantum, partindo do pressuposto hipotético de que ele realmente exista e de que nada no Universo acontece sem sua intervenção onipotente, o fato de eu ter desenvolvido uma neoplasia maligna supostamente foi uma vontade divina, seja lá quais forem os motivos que ele tenha tido para desejar minha doença... Não adentrarei neste mérito. Prosseguindo, Deus não fez falta, basicamente por dois motivos: o primeiro é que se ele teve a presença de espírito (para não dizer “espírito de porco” ou “fogo no rabo”) de me colocar um câncer, não acredito que ele se importaria muito com meu sofrimento, tampouco estivesse preocupado em me curar; segundo, porque se ele me proporcionou algo tão ruim como a doença, sou rancoroso demais para querer alguém como ele por perto, a não ser que eu tivesse a oportunidade de quebrar sua cara com um soco.
Como uma coisa acarreta outra, uma outra ideia que me ocorreu durante minha conversa com meu amigo foi que não há um critério baseado na fé para assegurar quem vai ser curado e quem não vai. Crentes e ateus sofrem com doença. Crentes e ateus morrem de câncer. Crentes e ateus morrem em paz. Crentes e ateus morrem a custa de muita dor. Crentes e ateus se curam. Crentes e ateus têm recidiva... Enfim, se a doença tiver que sumir de dentro de você, sumirá, com ou sem a sua fé na salvação de sua alma. Se a doença tiver que te matar, matará, com ou sem a sua fé na salvação de sua alma.
Penso como deve ser triste àquelas pessoas que contaram com Deus para sua cura, mas acabaram morrendo! Como deve ser sido decepcionante aos que ficaram e carregam a certeza de que não puderam contar com ele, mesmo tendo pedido tanto. O fato é que eu me sentiria menos enganado se eu morresse sem ter depositado minha esperança em alguém que, supostamente poderia me curar e não curou!
Honestamente, para mim, vale mais contar com os médicos, mesmo sabendo que muitas vezes eles não conseguem nos salvar. Alivia pensar que eles fazem o possível! Vale mais contar com a família e os amigos. Ainda que eles não tenham o poder de nos curar, senti-me bem mais seguro em meio aos que me amam e que se esforçaram para reduzirem de alguma forma os incômodos que a doença trouxe. Estes sim tiveram importância crucial para me ajudarem a lidar com o câncer!
E Deus, quem é? É aquele que poderia me manter saudável, mas preferiu macular meu corpo com um tumor maligno? É aquele que poderia ter me tirado as dores que a radioterapia me causou, mas preferiu permanecer omisso, agravando-me os sintomas com as queimaduras na minha pele e as feridas na minha garganta? É aquele que poderia me tirar as náuseas e azias decorrentes da quimioterapia, mas preferiu pagar para ver o quanto eu vomitaria? É aquele que poderia manter intacto o meu paladar, mas preferiu extirpar de mim o meu maior prazer, que é o de comer? É... Ele não me fez a menor falta!

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Yhwh: O precursor do terrorismo

Mais um ano caminha em direção ao seu fim e todo aquele ritual característico do mês de dezembro começa a ser observado no comportamento geral das pessoas. Em todos os cantos, todos correm pelas lojas em busca de presentes e pelos mercados em busca do maior peru. As agendas ficam lotadas com tantas reuniões e confraternizações que, rotineiramente, acabam no famigerado “Amigo Oculto”, o qual sempre deixa insatisfeito um considerável percentual do grupo em questão. Há sempre um exagero nas ornamentações de gosto duvidoso, com uma infinidade de luzes e cores, que configuram poluição visual sem fim, mas que todo mundo ama. Há homens gorduchos vestidos com inexplicáveis casacos vermelhos, que devem ter sido bastante úteis na última glaciação, mas, que se afiguram completamente desprovidos de sentido no verão escaldante destas paragens tupiniquins. E há ainda as mobilizações sociais para arrecadação de donativos a serem distribuídos para grupos menos favorecidos, que, muito provavelmente, só são lembrados nesta época do ano.

De outro lado, há sempre um grupo ávido pela discórdia, pronto para estragar o prazer alheio, insistindo em propagar que tudo isso é vão e que a verdadeira razão de ser do Natal é celebrar o nascimento de Jesus Cristo (que nasceu 7 anos a. C.!) e que todo o mais não passa de armadilha do Demônio do Capitalismo, filho mais velho de Satanás, que insiste em desvirtuar pessoas de bem do Verdadeiro Caminho (assim mesmo, com letra maiúscula, em sinal de reverência ao caminho – na verdade um desfiladeiro – que supõem ser a única opção válida). São os crentes! Os filhos de Deus! E faço questão de deixar claro que o termo “crente” aqui está tomado na sua acepção mais ampla, não se confundindo com “evangélico”, “religioso”, “cristão” ou qualquer outra designação restritiva de fé. É um clichê, mas para evitar comprar uma briga desnecessária com grupos que apregoam o politicamente correto, explicito aqui o conceito: crente é quem crê, é sinônimo de crédulo. Melhor assim.

Hoje, há poucas horas atrás, em conversa com uma amiga crédula, declarei-me ateu e ouvi a pergunta “por qual razão você é ateu?”. Antes de responder, por se tratar de um diálogo com uma pessoa com quem possuo um mínimo de intimidade e nutro um mínimo de estima, senti-me à vontade para brincar, munindo-me de uma suposta intolerância ateísta (que, aliás, também não me agrada em nada, porque qualquer forma de fundamentalismo me preocupa), revidei, num fingido tom agressivo: “por qual razão você crê? Ou melhor, por que você crê? Porque quem crê já não tem razão!”. Rimos da guerra ideológica e encerramos a contenda ali mesmo, com ambas as perguntas deixadas sem resposta.

Mas, confesso que, como ateu declarado há pelo menos 15 anos, começo a achar que são clichês as mesmas perguntas tantas vezes repetidas por mim e pelos meus pares como “porque crer?”, mas, ainda assim, não consigo deixar de fazê-las! E uma das coisas que mais me intriga na fé cega (que é realmente uma faca amolada) é quando eu escuto que “Deus é bom”.

Este raciocínio me atormentou durante um bom tempo, quando, anos atrás, assistindo ao desenho animado “O Príncipe do Egito”, cheguei a uma conclusão: “Deus é um terrorista!”, exclamei em um volume alto o suficiente para deixar minha irmã evangélica e minha mãe horrorizadas com a heresia proferida.

Em um excelente conceito extraído da Wikipedia, terrorismo é o uso de violência, física ou psicológica, através de ataques localizados a elementos ou instalações de um governo ou da população governada, de modo a incutir medo, terror, e assim obter efeitos psicológicos que ultrapassem largamente o círculo das vítimas, incluindo, antes, o resto da população do território. Trata-se de uma forma de coação das aglomerações sociais para se colocar em prática aquilo que se quer propagar, seja de cunho religioso, político, étnico, ou qualquer outra forma de ideologia, normalmente incutindo o pânico nas pessoas inocentes, para que os grupos que detém o poder possam realizar a vontade do grupo que pratica o terror.

Assim, como exemplo de terrorista, posso citar o grupo separatista Euskadi Ta Askatasuna (ou simplesmente ETA, sigla para “Pátria Basca e Liberdade”, no idioma basco) que, visando ao seu desmembramento do restante da Espanha com a criação de um país basco, desde 1959 vem pressionando o governo espanhol através de luta armada e ataques a civis. Da mesma forma, as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, as FARC, que, visando à implantação do sistema socialista na Colômbia, pressionam o governo, através de sequestros e homicídios. E o que dizer da Al-Qaeda, grupo fundamentalista islâmico, liderado por Osama Bin Laden, que, em combate ao imperialismo norte-americano, deixou boquiaberto o mundo ao lançar aviões sobre o World Trade Center, causando a morte de pessoas inocentes, que sequer tinham relações com o governo dos Estados Unidos!

É comum vermos toda a gente horrorizada com tais práticas, perguntando-se como é possível que tantos inocentes paguem pelos atos dos grupos terroristas que, pretendendo mobilizar governos, atacam-nos, mesmo que com eles sequer guardem relações!

Trata-se de uma prática antiga. Muito antiga. Em minha palavra de leigo, tenho como o mais antigo registro de terrorismo o livro do Êxodo, capítulo 3, versículos 19 e 20, que assim narrou: “Eu sei que o rei do Egito não os deixará sair, a não ser que uma poderosa mão o force. Por isso estenderei a minha mão e ferirei os egípcios com todas as maravilhas que realizarei no meio deles. Depois disso ele os deixará sair.”

Segundo a Mitologia Bíblica, ninguém mais que o próprio Deus, o mesmo que lá em cima me disseram que era bom, escolheu o povo hebreu como herdeiro da Terra Prometida de Canaã, ordenando a Moisés que convencesse o faraó a libertá-lo, eis que se encontrava escravizado no Egito. Quando Moisés perguntou como faria para convencer o faraó, com a naturalidade de quem responde as horas, Jeová teria respondido que causaria feridas aos egípcios e que isto o convenceria.

E assim, vieram as Dez Pragas do Egito, que culminaram na morte dos primogênitos descrita em Êxodo 12:29-30: “Então, à meia-noite, o Senhor matou todos os primogênitos do Egito, desde o filho mais velho do faraó, herdeiro do trono, até o filho mais velho do prisioneiro que estava no calabouço, e também todas as primeiras crias do gado. No meio da noite o faraó, todos os seus conselheiros e todos os egípcios se levantaram. E houve grande pranto no Egito, pois não havia casa que não tivesse um morto.”

A pergunta que nunca deixo de fazer é a de que se Deus é onipotente, não seria mais prático mudar a opinião do faraó, poupando a vida do “filho mais velho do prisioneiro que estava no calabouço”, que nada tinha a ver com a dominação dos hebreus? Ou, sem adentrar o mérito de sua questionável bondade e benevolência, e toda a ausência de lógica daí decorrente, se Yahweh precisava tanto satisfazer sua sanha assassina, porque não matar apenas o faraó? Ou apenas o seu filho mais velho? Para que levar “grande pranto” ao Egito?

Honestamente, se vejo alguma diferença entre o terrorismo de Alfonso Cano, Osama Bin Laden e Gilmar António e o de Javé é porque este último, supostamente onipotente, poderia dispor de outras estratégias para alcançar seu objetivo maior e se delas não fez uso, tal fato somente se explica por um prazer mórbido na destruição e na dor alheia.

Recentemente o ETA anunciou o fim da guerrilha, partindo para o diálogo e a diplomacia. As FARC não chegaram ao mesmo nível de civilidade, mas negociaram a libertação de vários prisioneiros, demonstrando certa relativização de seus métodos, ainda que sutil. Enquanto isso, para o futuro, o profeta João Batista nos diz, em Apocalipse 14:18-19: “Declaro a todos os que ouvem as palavras da profecia deste livro: Se alguém lhe acrescentar algo, Deus lhe acrescentará as pragas descritas neste livro. Se alguém tirar alguma palavra deste livro de profecia, Deus tirará dele a sua parte na árvore da vida e na cidade santa, que são descritas neste livro.”

Parece-me que a vingança será sempre a primeira opção para a Yhwh. E diante disto tudo, continuo seguindo meus passos de ateu, perguntando “qual a razão de crer?”, ou melhor, “porque crer?”

Porque quem crê, se o faz, é porque há muito já perdeu sua razão!

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

O Gado da Central

Não se pode dizer que desde sempre essa gente se porta como gado, sem capacidade de tomar decisão, sem organização do poder que lhe cabe, de forma a permitir melhoras e benfeitorias em sua existência vazia e desinteressante, vivendo tão somente para satisfazer necessidades primárias, como alimentação, descanso e reprodução... Mas é inquestionável que a coisa vem de longa data, inspirando autores, músicos e poetas a comparar a vida humana à vida de gado... É assim na política, enfocando-se na condição de autômato do eleitor; é assim na educação, tomada em sua acepção mais estrita, enfocando-se o aluno que desenvolve estratagemas dos mais imorais para galgar os degraus formais da escola, sem se preocupar com sua capacidade de raciocinar; é assim no metrô...

Abrem-se os portões do curral chamado Central do Brasil e todo o gado entra em debandada... O Gado da Central não tem quatro patas. Não muge. Não come grama. Não tem chifres e tampouco sacode a cauda para espantar parasitas incômodos. O Gado da Central é a vaca que carrega uma bolsa a tiracolo, que fala ao celular e corre para não chegar atrasada em seu escritório. É o bezerro que ouve funk sem fone de ouvido e em volume altíssimo, obrigando todo o curral a compartilhar seu som de gosto duvidoso. É a novilha de cabelo escovado, cuja chapinha lentamente se desfaz e gruda em sua testa, que transborda suor, como consequência do tempo abrasador desta cidade quando o verão se aproxima de forma inexorável. É o touro engravatado, que enverga um terno sóbrio, revelando o quão superficial é o traje - mera embalagem que nada tem a ver com sinônimo de boa educação...

O movimento das reses tem vida própria e quando toca o sinal avisando que a próxima estação está a caminho, toda a manada dispara, empurrando, pressionando, pisoteando e ofendendo a rês ao lado, por estar ocupando um lugar que seria seu por direito absoluto, como se a condição daquele fosse menos tormentosa que a sua por estar ali. A porteira se abre e as cabeças mais fracas são empurradas para fora pelo fluxo que se evade do curral, enquanto pelo lado externo, o gado que entra pisoteia tudo em seu caminho, formando-se, por alguns segundos, uma linha de batalha aterrorizante, na qual há uma disputa para se definir se o movimento dominante será o da boiada que entra ou da boiada que sai.

Assusta saber que este mesmo gado figura no ápice da escala evolutiva, como a criatura superior a todas as outras, tendo alcançado o topo darwiniano, do qual não existe mais possibilidade de subida e crescimento. E, no entanto, porta-se como um ser primitivo, inserido nas condições mais aviltantes e sub-humanas, sem ao menos se utilizar do poder que possui - demonstrada por sua inquestionável capacidade de empurrar e tomar à força o espaço que era do outro - para exigir um meio de transporte mais digno. Sim, pois o gado não está feliz com sua condição. Deseja fugir do seu status quo, mas não consegue - ou não quer - imaginar como fazê-lo.

Se todo o Gado da Central do Brasil se unisse com a mesma voracidade com que se une para invadir o curral, objetivando não um lugar desconfortável dentro metrô, como se disto dependesse sua vida, mas um metrô funcional, dentro dos padrões técnicos internacionais, os responsáveis pela concessionária de transporte público seriam arremessados contra a parede com a mesma intensidade com a qual diariamente as reses lançam-se umas às outras. E assim, talvez, por um momento único de sua existência mecânica, o gado pudesse ser alçado à condição de gente.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

"Que era fácil se perder por entre sonhos..."

Dias atrás um amigo me enviou um link do Youtube, com uma recomendação: “Dá uma olhadinha nesse moço”. Era um vídeo de um cantor, até então meu completo desconhecido. Tratava-se de um videoclip gravado ao vivo, nos estúdios da Trama, em que um rapaz cabeludo com uma voz aguda cantava uma letra áspera e cruel, que comparava o amor a uma droga que invarialmente conduzia o homem à destruição: “E fui gostando do sabor daquela coisa/Viciando em cada verso que o amor veio trovar/Mas, de repente, uma farpa meio intrusa/Veio cegar minha emoção de suspirar (...)”.

Assim, fui apresentado ao Filipe Catto e à sua angustiante composição “Saga”. A identificação foi instantânea e por um momento não acreditei que aquela voz tão perfeita, em um timbre tipicamente "feminino" fosse emitida por aquele moço de uma geração musical tão nova, pela qual me habituei a não ser surpreendido com a percepção de talentos que ultrapassassem a barreira do mediano. Eu queria conhecê-lo mais.

No dia 10 de novembro, o palco do Studio RJ, o mesmo do antigo Jazzmania, que apresentou ao Brasil a cantora e compositora Marisa Monte no final dos aos 80, trouxe Filipe Catto pela primeira vez ao Rio de Janeiro, no show de lançamento do seu álbum “Fôlego”, produzido pela gravadora Universal, após a divulgação pelos meios virtuais de um disco independente, “Saga”.

Aos desavisados de plantão, que porventura tentarem limitar a uma comparação despropositada o contratenor Filipe Catto ao eterno Ney Matogrosso, em virtude dos seus naipes vocais, eu diria que não tentem. A falsa identificação decorrente do fato de que ambos são homens com "voz de mulher" - uma definição um tanto imprecisa, frise-se - esgota-se nesta única coincidência.

Com uma postura bem próxima a um público bastante entusiástico, Filipe Catto cantou o amor. Não aquele amor que proporciona finais felizes a casais apaixonados, mas o amor destrutivo, que corrói, que desgasta, que conduz os amantes à sordidez humana quando perdem o equilíbrio e deixam de lado a dignidade racional, trocando-a pela conduta passional e desmedida. Filipe Catto cantou a mulher infiel, que se regozija de poder trair o seu esposo, cantou o homem bruto, que espanca imotivadamente sua companheira, cantou o homem abandonado, que, sem qualquer esperança, busca alento na bebida e se destrói pelo vício, cantou a mulher submissa, que espera em casa por seu homem, pacientemente, enquanto ele se diverte em um lupanar qualquer.

Mesclando o repertório do seu álbum “Fôlego”, como as belíssimas “Crime Passional”, “Roupa do Corpo”, “Gardênia Branca”, com clássicos da música brasileira, como uma ligeira citação ao “Canto de Ossanha”, o artista cantou de forma arrebatadora, possuído pela música, como se se tratasse de uma entidade transcendental, uma força externa capaz de colocá-lo em um estado de transe catártico, fazendo-o dançar, gesticular de forma incisiva, ajoelhar-se, fechar os olhos e rodopiar, sem no entanto parecer exagerado ou clichê. O que se via no palco era pura emoção, traduzida nos arranjos conduzidos pelos músicos Adriano, Ramon, Deco e Fabá, na voz impecável e na presença carismática do cantor, compositor e, sobretudo, intérprete, que estava perceptivelmente feliz por poder se apresentar nos palcos cariocas, “já que sempre viu o Rio de Janeiro desde criança nas novelas, tendo-o como algo distante e inatingível”.

Em minha modesta opinião de leigo, posso dizer que o show foi inversamente proporcional àquele palco tão pequeno no qual foi apresentado, tratando-se do maior show do ano de 2011 nos palcos cariocas. Compartilhei com o Filipe a felicidade de estar no Rio de Janeiro e poder testemunhar um espetáculo de tamanha carga emotiva.

Pouco antes de morrer, Elis Regina, uma das maiores intérpretes que este país já produziu, declarou em uma entrevista que a feijoada havia sido feita por ela, Milton Nascimento, Gal Costa, Tom Jobim, Gilberto Gil e João Gilberto, e que depois desta geração fazia-se muito pastel, mas feijão mesmo, nunca mais, dando a entender que, o que viesse depois da sua geração estaria relegado a um segundo plano, a uma qualidade inferior, à mediocridade pelo constante surgimento de talentos medianos ou duvidosos...

Concordando até então com a Pimentinha, vim me entristecendo ao longo dos últimos anos com os talentos incipientes que o mercado vinha nos impondo, acreditando que a música brasileira caminhava para sua derrocada. Mas, depois de ouvir inúmeras vezes o álbum “Fôlego”, além do seu precursor, o single “Saga”, e de testemunhar uma apresentação ao vivo do talentosíssimo Filipe Catto, eu saí feliz daquele show, com a certeza de que a música popular brasileira ainda está salva.

sábado, 22 de outubro de 2011

Maria Bethânia e as Palavras

Já lá se vão pouco mais dois anos, quando, em agosto de 2009, na Casa do Saber, na Lagoa, Dona Maria Bethânia apresentou o então chamado “Palavras, Palavras”, encontro literário voltado à divulgação da poesia luso-brasileira, como forma de incentivo às leituras em escolas públicas e privadas.

Diante do estrondoso êxito do projeto, a cantora decidiu levá-lo em turnê país afora, já sob o nome de “Maria Bethânia e as Palavras” ao longo de 2010, causando verdadeiro furor por onde passou, como as cidades de Porto Alegre, Recife, Curitiba e o próprio Rio de Janeiro, durante sua temporada no Teatro Fashion Mall, em São Conrado.

Já tendo assistido duas vezes ao espetáculo, confesso que, apesar de admirador da literatura brasileira e portuguesa, este não estava dentre os meus prediletos, e não me animei quando soube que haveria duas apresentações no Teatro Sesc Ginástico para o relançamento do livro “Maria Bethânia Guerreira Guerrilha”, do escritor Reynaldo Jardim. Assim, quando surgiu o convite, pensei, munido de toda a minha má vontade: “Na falta de um programa mais interessante, eu vou!”. Não queria ouvir Dona Maria recitando os mesmos poemas já citados e recitados, sedimentados em mais de quarenta anos de carreira.

Mas, eis que o “programa mais interessante” não apareceu e lá fui eu ao Teatro Sesc Ginástico, esperando encontrar pouca novidade e atratividade. Felizmente, estava enganado e o que observei no palco não foi uma simples leitura de poesia, mas um verdadeiro show! Maria Bethânia estava com um vigor e uma energia contagiantes. Sua voz estava no auge da beleza. E o repertório, musicalmente ampliado, aumentando para quase duas horas a duração inicial de setenta minutos daquela fase embrionária iniciada na Casa do Saber, comovente.

Após a exibição de um vídeo contendo um depoimento do próprio Reynaldo Jardim, deu-se início à abertura do show – insisto em me utilizar deste conceito – consistente em uma leitura, pelo ator e diretor do espetáculo, Elias Andreato, de excertos do livro que estava sendo relançado na ocasião. A entrada de Maria Bethânia no palco, com a canção “As Ayabás”, foi devidamente ovacionada, seguindo-se a isto uma constante intercalação de textos e músicas, os mais belos!

Claro que nada é perfeito e, como sempre, revirei-me, incomodado diante da heresia cometida contra o Mestre Caeiro, com a insistente transformação do “Poema do Menino Jesus” – notória crítica à Igreja Católica – em uma oração cristã, sendo a proposta reforçada e tornada inequívoca com a imediata execução da ladainha popular adaptada por Tavinho Moura, “Cálix Bento”.

Por outro lado, houve seqüências de beleza absoluta, como a iniciada com a música “Genipapo Absoluto”, continuada com os textos “Distribuição de Poesias”, “Poetas Populares”, intercalados com “O Trenzinho do Caipira”, “Trem de Ferro” e encerrado com a belíssima “Francisco, Francisco”, dentre tantos outros momentos memoráveis.

Outro registro que não pode deixar de ser considerado é a lamentável má educação de alguns integrantes da plateia: O show seguiu impecável e eu já me encontrava em completa imersão catártica quando, para meu horror, umas mulheres horrendas se levantaram de suas poltronas, postando-se em frente ao palco, atirando como se fossem pedras, pétalas de rosas em uma Maria Bethânia que se desconcentrou durante a interpretação de “Menino de Braçanã”. Juro que se essas mulheres tivessem se plantado à minha frente, eu teria perdido minha compostura, dando-lhes chutes nas pernas e pedindo enfaticamente que saíssem dali para que eu pudesse ver o final da apresentação em paz.

Passados esses disparates, Dona Maria contemplou o público com um bis repleto de energia da música que a lançou ao mundo, “Carcará”, encerrando com chave de ouro o evento, que se revelou a mim uma grata surpresa, mudando inclusive meus conceitos acerca do espetáculo “Maria Bethânia e as Palavras”, em muito evoluído desde aquele distante agosto de 2009.

A poesia agradece. A música agradece. E nós, que estivemos presentes nesta manifestação artística que logrou de toda excelência e majestade, saímos regozijados ante um desempenho notável, elegante e na medida certa, da cantora, intérprete e leitora, Maria Bethânia. Uma noite para se tornar inesquecível.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Hoje a noite tem cara de música velha

Hoje a noite tem cara de música velha. Daquelas que, quando éramos crianças, já eram velhas. E tarde da noite, sentávamos à beira do aparelho de som, sintonizado em uma rádio qualquer, e esperávamos ansiosos para gravarmos em um toca-fitas. Porque essas músicas velhas só tocam em rádio tarde da noite.

Nunca entendi porque música velha só toca tarde da noite... Deve ser porque, com aquele gosto de coisa antiga, a noite se torna menos sombria. É quando nos lembramos de que um dia fomos bem pequenos, e nossa maior preocupação era completar a coleção de figurinhas de chiclete antes do nosso melhor amigo. É quando pensamos na nossa mãe nos dando boa noite antes de fechar a porta do nosso quarto. É quando nos lembramos do nosso primeiro dia na escola...

Hoje a noite está quieta. Fria. Úmida. Um tilintar incessante de pingos grossos de chuva que caem de alguma telha quebrada sobre a escada de ferro vem do fundo do quintal e isso é bom. Aumenta a sensação de cara de música velha.

A noite range, como rangem as gravações antigas de um disco de vinil sujo e isso tem cara de música antiga. E é por ter esta cara de coisa velha, quase esquecida, empoeirada, mas que fica ali, presa nas nossas lembranças mais remotas, vindo vez ou outra à tona, que esta noite chuvosa, fria e áspera acaba se tornando terna.

Hoje a noite tem cara de música antiga. E o barulho da chuva que engrossa aumenta a saudade dos dias em que, quando lá longe, num inverno qualquer de uma infância que ficou para trás, sentávamos à mesa da cozinha, ansiosos pela caneca de chocolate quente para acompanhar um bom pão com manteiga.

Naquela época já a chuva causava algum tipo de emoção desconhecida. O vento que açoitava as janelas fazia barulhos assustadores. Por algum tipo de ironia, o medo passava logo quando quedas na rede elétrica banhavam a casa em escuridão porque logo arrumávamos um jeito de nos divertirmos, formando figuras nas paredes com a projeção de sombras criadas com a luz das velas acesas.

Hoje a noite tem cara de música velha. E é por tudo isso que estar sozinho nesta sala a esta hora não me faz mal. Escuto notas que vem de longe, que soaram em um outro tempo, tocaram num outro espaço e ecoaram em outros ouvidos que não os meus de agora... Naquele momento longínquo, faziam-me pensar num futuro incerto, que não se parecia com o dia de hoje.

Agora que aquele futuro é o presente que se descortina, as notas de outrora reverberam nestas paredes, conduzidas, sabe-se lá de onde. Mesclam-se ao tamborilar da chuva, que insiste em cair cada vez mais intensa, e trazem consigo o gosto do abraço quente, que sinto enquanto meus ouvidos captam a melodia da música antiga, cuja semelhança esta noite insiste em carregar.

domingo, 28 de agosto de 2011

Sem Mim

Tenho grande dificuldade de compreender o alcance de apresentações de dança, mormente em se tratando de ballet contemporâneo, cuja falta da leveza característica do ballet clássico muitas vezes me frustra. Não sou conhecedor de dança, então não sei se minhas frustrações com ballet contemporâneo decorrem do fato de que a arte supostamente não precisa transmitir alguma mensagem ou se da minha expectativa de que toda apresentação precisa me dizer alguma coisa, a qual eu nunca consigo captar.

Depois de assistir aos espetáculos “Breu” e “21”, do Grupo Corpo, e “4 por 4” e “Cruel” da Cia Déborah Colker, comecei a perceber que sou motivado mais pelo desafio do equilíbrio e da força exigidos dos bailarinos do que pela percepção de que a apresentação, enquanto manifestação artística, deve estimular percepção, emoções e ideias.

Em “Cruel”, o pensamento recorrente que me assaltava durante a apresentação era o receio de que os bailarinos colidissem suas cabeças à grande mesa que era a base do cenário. Em “4 por 4”, a tensão na “coreografia dos vasos” pela sensação de que algum pé desatento derrubaria pelo menos uma meia dúzia deles, e assim por diante. Mas, nunca consegui responder ao questionamento basilar do futuro expectador: “sobre o que se trata?”

Assim, ontem fui ao Theatro Municipal mais uma vez dar a cara a tapa na tentativa de captar um mínimo de emoção que nunca consegui encontrar no ballet contemporâneo. Antes da atração inédita “Sem Mim”, o Grupo Corpo revisitou seu espetáculo “O Corpo”, com música de Arnaldo Antunes e coreografia de Rodrigo Pederneiras. Trata-se de algo bonito aos olhos, mas que, não sendo a devastadora música de Arnaldo Antunes, não me sugeriu qualquer relação direta do tema “corpo” com as coreografias ali apresentadas. O espetáculo se encerrou e em mim permaneceu a impressão de que a grande obra ali era a música, servindo a dança apenas como um pano de fundo enquanto a obra seria executada, impressão esta, aliás, que se manteve em “Sem Mim”.

O roteiro musical de “Sem Mim” é composto de uma série de cantigas medievais, datadas do século XIII, escritas pelo jogral galego Martín Codax, pertencentes ao conjunto de “cantigas do amigo”, caracterizado pelos diálogos das mulheres com as amigas, enquanto aguardavam o retorno dos seus amados que partiam em navios rumo à exploração marítima.

Concedendo a César o lhe pertence, é preciso fazer uma grande ovação ao cenário e à luz de Paulo Pederneiras, que fizeram prevalecer um visual onírico, como se durante todo o tempo o mar ali representado não fosse o mar real, mas um mar dentro dos sonhos do qual, a qualquer momento regressariam os marinheiros.

Da mesma forma, fazendo justiça, em dois momentos distintos, consegui “sentir”, assim mesmo, como verbo intransitivo. Consegui ser tocado de alguma forma que me despertou emoção no pas de deux emoldurado pela membrana que, embora durante quase todo o espetáculo aludisse à superfície do mar, no momento transmitiu mais a sensação da neblina que circunda os sonhos ou as lembranças, nos quais, de alguma forma o amor fez-se tangível, seja para o navegador na solidão das águas, seja para a esposa ansiosa na solidão da terra (será daí o título “Sem Mim”?). Outro momento de beleza singular foi o solo em proscênio, marcado por glissés e port de bras, espelhado ao fundo de maneira diáfana, evocando o reflexo de si mesmo sobre as ondas.

No entanto, ao longo das coreografias o que se viu foi uma cansativa repetição ondulatória marcada por rodopios que, não obstante tivessem sua beleza, não fizeram a justa correspondência à temática do espetáculo.

A verdade é que a música de Carlos Nuñez e José Miguel Wisnik, sobre as composições de Martín Codax foram a alma da apresentação, o que, considerando-se se tratar de uma espetáculo de dança, afigura-se um demérito o plano secundário dentro qual se limitaram as coreografias, o que pode frustrar o expectador que espera encontrar na dança algum significado maior do que a mera ondulação do mar.

terça-feira, 12 de julho de 2011

"A Lua que ao te ver parece grata"

Em um contexto cultural no qual, para fazer sucesso os pseudo-músicos precisam inserir próteses em formato de chifres nos rostos, vestir figurinos futuristas e estranhos, reunir um verdadeiro exército de bailarinos com corpos esculturais seminus esfregando-se num inocultável apelo sexual e lançar mão de tantos aparatos pirotécnicos, explosivos, luminosos, que mal se presta atenção ao que está sendo cantado, afigura-se até inoportuno encontrar um palco escuro com uns violões de um lado e uns poucos instrumentos de percussão de outro, além de uma decoração constituída basicamente de uma espécie gigante de colares de contas pendentes do teto e presos ao chão.

O Projeto "7 em Ponto", de iniciativa da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro, tem trazido para o Teatro Carlos Gomes, sempre às terças-feiras, às 19:00 horas, espetáculos de diversas vertentes artísticas, buscando, na variabilidade de modalidades, proporcionar uma gama diversificada de eventos culturais. Tudo isso pelo simbólico investimento de R$ 1,00 (um real).

Em um teatro ocupado pela metade, o show “Satolep Sambatown” de Vítor Ramil e Marcos Suzano, que havia sido apresentado pela última vez em Tokyo há mais de um ano, começou com o bloco que abre o cd homônimo, em arranjos tão semelhantes que, por um instante, senti um certo desconforto com o pensamento de que estava diante de um show sem nada de novo, limitado à mera reprodução do trabalho de estúdio.

A impressão inicial revelou-se equivocada quando foi executada a belíssima “Espaço” que, confesso, não conhecia na voz do cantor, tendo apenas ouvido na voz de Verônica Sabino.

O show prosseguiu mesclando as composições presentes no álbum “Satolep Sambatown” e em trabalhos anteriores, tais como “Livros no Quintal” e “Neve de Papel”, executadas com arranjos intensos e lindos do sempre excelente percussionista Marcos Suzano.

Para “Que Horas Não São”, os músicos contaram com uma especialíssima e bonita participação de Kátia B, que permaneceu no palco para a não tão interessante participação em “Destiny (Be My Friend)”, cujo andamento arrastado quebrou um pouco o crescendo que vinha sendo construído ao longo da apresentação.

Destaque para a minha favorita e aguardada “Astronauta Lírico”, que ganhou arranjos novos, um pouco mais acelerados pela presença marcante do impecável pandeiro do Marcos Suzano e sua batida às avessas. Destaque também para “Café da Manhã”, da qual nunca gostei muito até hoje, em uma versão emoldurada por arranjos mais densos e perceptíveis que na gravação presente no álbum.

Os aplausos foram efusivos e o bis contou com a versão musicada do poema de Emily Dickynson, “A Word Is Dead”, e a singela “Estrela, Estrela”. E neste momento, após ter constatado o infortúnio das novas gerações de espectadores que, alheios à música de verdade que foi ouvida nesta noite, acostumados com as performances corporais de negras-loiras com pernas longilíneas e bizarrices como vestidos confeccionados em açougue, uma cena me chamou atenção e posso mesmo dizer que me chocou (como algo positivo): seis crianças agachadas, tendo o palco à altura dos olhos, contemplavam os músicos naquele espetáculo de iluminação simplória e ornamentos toscos, mas completamente preenchido pelo inegável talento de quem ali se apresentava. Então, percebi que existe uma futura geração de amantes de música se formando que não deixará a poesia e a melodia se perderem em meio a tantos semi-talentos que surgem e desaparecem todos os dias.

sábado, 7 de maio de 2011

Liza

Sempre fico tenso quando tenho que lhe dar injeções. Sou um pai de coração mole, e após distribuir algumas chineladas, acabo sempre com um remorso monstruoso... E penso que seus dentes nem fariam estrago. É uma mentirinha que acabo contando pra mim mesmo, mas que sempre me deixa com a consciência pesada após uns gritos, mas me traz um alívio imenso quando penso nos próximos dez, doze anos em sua companhia...
Permitam-me apresentá-la. Seu nome é Liza (fala-se “Laiza”, como a Minelli). É uma paixão nova que não escondo de ninguém... O que gera sempre uma falha de interpretação, quando me questionam porque eu não gosto tanto do Ataulfo quanto dela...
Lógico que isso não é verdade. O Ataulfo é meu bebezão, meu filhote primogênito que ainda não cresceu. Um molequinho que muitas vezes faz um monte de coisas erradas e me tira um pouco a paciência. O que, nem de longe, significa que eu goste menos dele.
Mas a Liza é diferente. Não se trata de gostar mais. É uma questão de afinidade. De respeito mútuo. E de orgulho da minha parte, reflexo da vaidade, a cada vez que eu penso no desafio que aceitei no momento em que eu disse “quero esta”.
Foi há pouco mais de um mês... Eu tinha acabado de mudar para o Condado de Village Peña e acreditava que teria a Dolores [Duran] para fazer companhia ao Ataulfo [Alves] e formaria uma dupla imbatível de MPB... Mas por alguns contratempos, acabei trazendo a cadelinha já batizada para casa. E o pior, com o nome de uma amiga minha...
Ao escolher a Liza eu tinha a certeza de que estava fazendo uma grande bobagem. Uma cadela adulta, com medo de gente (e este foi o fator precípuo que pesou na minha escolha) e agressiva com qualquer um que tentasse chegar perto. Mas foi instantâneo: bati os olhos naquela monstrinha maltratada, com uma sarna enorme das costas, que me olhava com ar desconfiado e mostrava os dentes em tom de ameaça ao menor sinal de que pretendia tocá-la... Era uma cadela feia, temperamental e ameaçadora. E isso tudo só significava uma coisa, e no plural: problemas. Mas eu queria tentar! Eu queria fazer algo por ela. E fui arrogante o suficiente para querer aceitar o desafio e mostrar que seria capaz...
Confesso que minutos após trazê-la, minha cabeça rodava e o medo tomava conta de mim. E se ela me atacasse? E se ela atacasse o já assustado Ataulfo? E se ela nunca me deixasse tocá-la? E se ela roesse meus móveis recém comprados?
Meu primeiro contato físico com a Liza foi uma dentada. Fortíssima! Assustadoramente intensa. Fez um furo no meu dedo médio da mão esquerda que me deixou por cerca de quinze dias sentindo dor... Ela tinha uma coleira e eu mal conseguia chegar perto para tirar. Ela tinha um ferimento e eu mal conseguia chegar perto para tratar. Ela tinha carência e eu mal podia chegar perto para acariciar. Era frustrante e cheguei a pensar que eu nunca me apegaria a uma cachorra tão instável, e que, no fim de uma semana, a levaria de volta... Mas essa idéia era insuportável! Eu queria tentar.
Lembro-me de um dia, na primeira semana em que ela chegou. Tentei fazer carinho em sua cabeça e ganhei um rosnado de brinde. Fiquei tenso, irritado por ter uma cachorra que necessitava de cuidados e que não me deixava cuidar. E a indignação aflorou na forma de um choro muito intenso quando me perguntei que diabos tinham feito com ela para deixá-la daquele modo... Como alguém pode ser tão mau com um animal a ponto de transformá-lo numa arma movida a pavor? Ela não era uma cachorra agressiva. Via-se que ela estava apenas assustada e usava a arma que tinha para se defender. O X da questão era saber por quanto tempo este medo permaneceria...
Ela chegou aqui com uma cláusula de devolução, em caso de não adaptação. A pessoa que a deu a mim disse o quanto esperava que eu cuidasse bem dela, mas reconhecia que eu não estava optando por uma aquisição fácil e assegurou-me de que se eu não conseguisse, que eu poderia levá-la de volta, desde que não a abandonasse novamente nas ruas, pois muito provavelmente ela não sobreviveria. Tendo-a conhecido com aquele temperamento, não tenho dúvidas de que ela estava certíssima.
Mas os dias foram passando e eu tentando ter paciência. Só a tocava – timidamente – quando lhe dava comida e qual não foi a minha surpresa quando, cerca de uma semana depois de sua chegada, eu a vi sentar-se entre minhas pernas e me deixar alisá-la, com a mão cheia. Foi uma emoção sem tamanho.
Eu tinha certeza de que levaria pelo menos um mês para conseguir aquela proeza. E, no entanto, para minha satisfação, neste um mês, os avanços foram muito, muito, muito além disso!
Aos poucos fui conhecendo a Liza, sabia onde me era permitido tocá-la e onde não tinha e não teria acesso. Comecei a perceber quando ela estava tensa, quando mostrava seus dentes em sinal de ameaça e quando o fazia brincando. Pois sim, ela brincava! Ou sentia vontade de brincar... Mas seu medo sempre falava mais alto. Até o dia em que voltei do trabalho e a vi pular na minha frente, fazendo festa com a minha chegada. Levantou-se sobre as patas traseiras e se apoiou nas minhas coxas. Foi quando arrisquei um passo perigoso: dei-lhe um abraço. Naquele dia eu tive a certeza que ela era minha e que eu jamais a abandonaria na rua, tampouco a devolveria como uma mercadoria rejeitada. Ela tinha encontrado um lar. E eu tinha encontrado uma filha. A segunda da prole.
Daquele momento em diante, vi muitos avanços! Descobri que ela sentia minha falta e que ficava feliz quando me via. Descobri que poderia dar banho sem fazer uso de sedativo, bastando que eu a segurasse da forma correta. Descobri que, ao ouvir o estourar de fogos, ela se assustou e foi em mim que buscou proteção. Descobri que podia pegá-la no colo...
E assim fui tratando seus problemas, com o auxílio de um amigo Médico Veterinário, aplicando medicamentos quando necessário, dando-lhe banhos, variando seu cardápio com ração, arroz e patê de cachorro...
Ainda não tenho uma cadela ideal. Mas hoje me sinto muito feliz de saber que tenho uma sombra que me segue pela casa. Que sobe no meu colo quando estou sentado no sofá vendo TV. Que late de ciúmes quando a deixo de lado para fazer carinho no Ataulfo... Talvez as dificuldades da nossa relação tenham fortalecido nosso afeto e hoje não tenho dúvidas do quanto eu amo a Liza. E sei que é recíproco.
Ao contrário do que pensam, não amo menos o Ataulfo. Apenas acho que ela precisa mais de mim do que ele. É muito mais fácil gostar de um cachorro manso, bobo, brincalhão, com pelos sedosos e lindo. Todos os que frequentam a minha casa já se renderam. Difícil é gostar de uma cachorra que morde, que rosna, que tem dentes sempre evidentes, tem resquícios em sua pelagem que mostram que ainda está se recuperando de uma sarna e que não é “peludinha, fofinha e lindinha”. E foi essa rejeição que ela recebeu de alguns que fez com que eu me aproximasse mais e conseguisse enxergar a beleza subjacente aos seus olhos pequenos, suas orelhas pontiagudas e seu pelo curto e áspero. E nem de longe enxergo aquela cadelinha feia, de coloração encardida que me mordeu a ponto de tirar sangue do meu dedo naquele comecinho de abril... Acho-a linda quando me olha. Acho-a linda quando dorme. Acho-a linda quando me recebe na porta. Acho-a linda quando levanta a patinha para me pedir qualquer coisa, seja carinho, comida, água ou só um pouco de atenção...
Hoje tivemos que vaciná-la. No local em que a peguei, fui informado de que ela já havia sido, mas como não tinha isso documentado, achei por bem fazê-lo novamente, já que não faria nenhum mal. Como já vem acontecendo em dia de injeção, ela ficou tensa, tentou morder, tentou fugir, tive que dar uns gritos, tive que dar uma chineladas e no fim, nada disso resolveu e acabei perdendo a luta para o uso de sedativo e mordaça. No final, valeu a pena e neste momento em que escrevo, tenho uma cadelinha saindo do efeito do medicamento, acordando aos poucos e que, em meio ao transe e à vigília que se mesclam, escolheu meu colo como local apropriado para recuperar os sentidos...
Ainda tenho uma batalha pela frente e tenho certeza de que muitas vezes virão em que eu me perguntarei porque enfrentar tanta dificuldade diante de um animal temperamental e feroz. E no momento seguinte virá a resposta: por amor. Por saber que ela não é feroz, mas finge muito bem quando se sente ameaçada e consegue, por alguns momentos esconder a docilidade que a acompanha naturalmente.
Saber que esta cachorra poderia estar sendo morta a pedradas ou pauladas no meio da rua onde, um dia, foi abandonada me aterroriza e me dá a certeza de que vale a pena enfrentar suas investidas com intuito de morder, a cada vez que eu precisar cortar suas unhas, limpar seus ouvidos, catar carrapatos e pulgas entre seus dedos e aplicar injeções... Quem sabe um dia isso também mude, como ocorreu com a permissão que eu não tinha para tocá-la. Acho que a vida com ela não será fácil. Mas tenho certeza de que sem ela não será boa.

quarta-feira, 30 de março de 2011

Pai de primeira viagem

Em meio a esta propagação exacerbada de valores politicamente corretos, dentro da qual quaisquer opiniões pessoais manifestadas com um pouco mais de veemência serão categorizadas, inevitavelmente, como homofobia, pedofilia ou racismo, minha afirmação poderá soar um tanto dissonante, para o horror daqueles que defendem a pena capital para o politicamente incorreto: eu gosto de fazer crueldade.
Não. Não sou um assassino, tampouco ladrão, estelionatário, torturador, estuprador... Mas tenho meu rol de pequenas maldades favoritas. E atire a primeira pedra o politicamente correto que não as tem. Aquele que nunca se escondeu atrás de uma parede e gritou “bu!” para o desavisado que vinha logo atrás. Aquele que nunca passou um trote telefônico. Não sou hipócrita.
Mas este texto não se propõe a divagar acerca da moral e dos bons costumes. A ideia é falar de bicho. E apresentei minha introdução justamente para afirmar que, muito embora eu mantenha meu “Pequeno Rol de Maldades, Travessuras e Diabruras Favoritas” sempre atualizado, existem aquelas maldades cometida contra dois tipos de vítimas, que eu simplesmente abomino. As praticadas contra crianças e as praticadas contra animais. E se a perversidade foi direcionada a um animal-criança, tanto pior.
Poucas coisas são tão ruins quanto bater num filhote de cão. Ainda mais se o cachorro é naturalmente assustado e carrega consigo uma quantidade imensa de traumas por maus tratos, sobre os quais apenas ele pode testemunhar.
Adotar o Ataulfo me fez, pela primeira vez, ter uma noção do que deve ser a paternidade. E não estou exagerando. Ao longo da vida, tive outros animais, todos completamente independentes, como peixes, esquilos-da-mongólia e porquinhos-da-índia... Todos lindos e fofos, mas um tanto impessoais (se for cabível o termo pessoalidade a animal de estimação). Bicho que não atende pelo próprio nome, ou que não faz festinha quando chegamos em casa é meio-bicho.
Houve outros cães, mas não eram exatamente meus. Não tive qualquer ingerência em escolhê-los e havia mãe em casa para lhes tomar conta, de forma que a mim cabia apenas a parte boa: rolar no chão, correr pela casa, espalhar pelos nos tapetes a amassar as almofadas do sofá... Houve também o Iago, meu gato do qual até hoje sinto uma falta enorme. Mas quem já teve um gato sabe que não existe relação de paternidade com o bichano. Gatos já nascem adultos. Sabem o lugar exato para suas necessidades fisiológicas, saem e entram a hora que querem, limpam-se sozinhos e você não precisa perder os cabelos quando eles não voltam para casa até a hora de dormir. São autodidatas e nada têm a aprender com seu dono.
Com cães é diferente. E com o Ataulfo, mais diferente ainda. Arranjei mesmo um bebê. Um cãozinho que só come quando você fica ao lado do prato, que acorda você de madrugada, que o estimula a buscar os mais variados tipos de literaturas e manuais no estilo “cuide bem do seu” ou “tudo que você queria saber sobre”, e que faz xixi pela casa inteira, obrigando-o a fazer faxina várias vezes ao dia nos horários mais inóspitos. E como toda criança, exige muita dedicação, amor e paciência. E como toda criança, precisa ser educado. E como toda criança, requer medidas corretivas.
Mas, sou um pai bastante frouxo, quando a ideia é punir. Dentre minhas malvadezas prediletas, de fato, não se encontram castigos a bebês-cães.
Noite passada foi assim. Após um dia extenuante, cheguei a casa e fui recebido pelo meu bichinho, que fez uma pequena cerimônia-do-pula-na-cara-do-papai para mim. Eu apenas desejava um bom banho frio, cair na cama e ficar ali, deitado, fazendo carinho no meu filhote, até que adormecêssemos. Mas, antes que se passassem trinta ou quarenta minutos de minha chegada, ele fez seu primeiro xixi noturno. Dentro de casa. No meio da sala. Eu, que já vinha apresentando um sinal de impaciência com este tipo de incontinência canina, e que já vinha tentando adotar uma educação construtivista ao moleque, apenas ralhando, assim mesmo, verbalmente, decidi que era hora de testar algo novo.
Bati no Ataulfo com um jornal, esbravejando acerca do erro do seu gesto. E ainda que o português do meu cãozinho não esteja muito desenvolvido, tenho absoluta certeza que ele entendeu a mensagem transmitida através da minha linguagem corporal. Ele correu pela casa, tentando se esquivar, ganiu, chorou, escorregou na própria poça amarelinha e saiu espalhando urina pela casa inteira na sua fuga desesperada.
Tranquei-o no quintal e fui forçado a fazer uma faxina completa em casa, o que consegui realizar em um tempo consideravelmente rápido de quarenta minutos. Ainda meio zangado, dei um banho no bebê-cão e tomei o meu em seguida. Supus que então eu teria meu merecido descanso, quando, em um ato de protesto, ele decidiu que precisava de um mictório mais macio e confortável. Ao vê-lo encharcando a cama, perdi de vez a paciência e não corri sequer em busca de um jornal para utilizar como corretivo. Bati com minha mão espalmada, que tem um peso consideravelmente maior que uma folha de papel enrolada.
E enquanto gritava – literalmente – com o rebelde, a mesma corrida pela casa, a mesma tentativa de se esquivar, o mesmo ganido, o mesmo choro. Só não teve escorregão, pois desta vez seu xixi não estava no piso, e sim, sendo rapidamente absorvido pelo meu colchão.
E foi neste momento que começou a minha pungência. Acuado sob a escada, no seu refúgio, meu filho me olhou com aqueles olhinhos escuros de quem não está entendendo coisa alguma – e urinou outra vez. Desta vez de medo! A violência contra animal-criança havia sido praticada por mim mesmo e eu estava odiando aquilo. Toquei nele, e ele tremia, sentado sobre sua terceira poça amarela da noite, ignorando completamente o banho que havia acabado de tomar. Eu já me sentia péssimo e em uma fração de tempo lembrei-me de todos os traumas que eu já sabia que tinham vindo junto com meu cachorro tão lindo. Lembrei do pavor que ele sentia das pessoas e do quanto ele evoluiu nos últimos dias, tornando-se bem mais sociável.
Poucas coisas são tão ruins quanto bater num filhote de cão. E pouquíssimas são piores do que olhar nos olhos do filhote de cão em quem você acabou de bater. Aquela troca de olhares me disse, no português mais claro que o Ataulfo ainda não aprendeu a falar, que ele estava muito mais do que assustado. Estava aterrorizado, sentindo-se confuso e traído, por estar sendo tão duramente repreendido pela pessoa que ele escolheu para confiar, apenas por não conseguir controlar seus instintos naturais de cachorro e sua bexiga incontida de bebê.
Ali, enquanto eu o olhava de forma tão severa, falando num tom de voz que, seguramente, ainda não era o meu natural, normalmente bem menos áspero, eu lutei contra a vontade de fazer carinho no meu bichinho medroso e a necessidade de fazê-lo entender que seu banheiro não fica dentro de casa. Assim, sentindo-me estilhaçado, fechei a porta dos fundos, deixando-o no quintal, e voltei para o quarto para terminar a limpeza e virar o colchão no qual, nesta noite, eu dormiria sozinho...
Felizmente, a dedicação do cãozinho sobrepuja o rancor, típico de nós, humanos. Acordei e, ao abrir a porta dos fundos, lá estava ele, pronto para nova cerimônia-do-pula-na-cara-do-papai, dizendo-me para eu esquecer a noite passada, pois, apesar de tudo, ele me ama e ainda confia em mim. Por sua vez, seus olhinhos de filhote me diziam para que eu me lembrasse daquele segundo terrível em que o vi acuar-se sob a escada, trêmulo e assustado, e para que, a cada vez que o fizer, eu pense, quantas vezes forem necessárias, antes de levantar a mão para castigá-lo. Até porque, no auge deste mea culpa que não sei se algum dia meu cachorro chegará a ler, estou mais certo de que pai de verdade acorda de madrugada quando o bebê chama, troca suas fraldas e o protege quando ele está assustado. E é óbvio, comemora cada aprendizado do seu filhote, recompensando-o – com um ossinho – por ter dado um novo passo.

terça-feira, 8 de março de 2011

Pânico de semiconhecidos

Quem não tem um semiconhecido? Semiconhecidos são seres estranhíssimos. Um tipo de gente que você sabe quem é, mas não entende a razão de ser. É a pessoa que poderia muito bem não existir, pois não te fará falta. Mas existe e você tem pânico só de pensar em um encontro constrangedor. "Não te conheço de algum lugar?". Você fica apavorado e sorri, sem graça (mas sem a menor ideia de quem é aquele ser) "É claro! Tudo bem com você?", você respira aliviado. Livrou-se do semiconhecido sem mostrar seu lado mais relapso, sem demonstrar que simplesmente não sabe quem é. Mas os semiconhecidos são terríveis e insistentes. "Ah, você não deve lembrar de mim, né? Sua espinha gelou. Sua cara de "mas, hein?" o traiu! Mas você é elegante. "Ora, claro que lembrei! Claro que nos conhecemos!" Ufa, escapou de novo. mas não se deu conta de que moveu seu último peão antes do xeque-mate. "E é de onde mesmo que a gente se conhece?"
O semiconhecido é aquele parente distante que só aparece nas festas de fim de ano, cujo laço você nem consegue descrever, pois não sabe mais qual a relação familiar existente entre vocês, puxa um papo sem pé nem cabeça e sempre cita nomes de outros parentes semiconhecidos, de quem você também não lembra. É o vizinho para quem você mal dá bom dia, e que você finge não ver quando encontra na rua, tentando mesmo atravessar para o outro lado, mas o destino impele as partículas de vocês em direção umas às outras, e você se rende, vencido, quando acontece sempre o mesmíssimo diálogo "Opa! Beleza?" "E aí?". É aquela pessoa que você catou na internet e cometeu a imbecilidade de marcar um encontro, para descobrir que não há a menor afinidade entre vocês, mas você não sabe mais como se livrar. É o amigo de infância que tomou um rumo diferente do seu e que, num dia, vocês se vêem ao acaso e descobrem que não conseguem mais conversar...
Há um tipo de semiconhecido que sempre te deixará numa saia justa, independemente de qualquer tentativa sua para evitá-la!
Na mais tenra infância vocês ficaram sem se falar, por alguma bobagem que só crianças mesmo podem justificar. Por causa disso, vocês cresceram e cada um tomou um rumo. Nunca mais se viram, tampouco se falaram... Mas a vida é um rato que passeia pela sua sala (li isso hoje, no MSN de um amigo) e, por mais voltas que ele dê, sempre acabará passando sob o mesmo sofá.
Então um dia, anos mais tarde, você encontra essa figura e por uma obrigação social de ter maturidade - porque as pessoas em sua volta não entenderão o fato de você insistir em alimentar uma rixa por algo que ocorreu mil anos atrás e que nem você mesmo lembra o que foi, e ainda vão te criticar por isso - você se força a colocar a mão na consicência e pensa, tentando enganar a si mesmo, dizendo-se que você cresceu, que virou gente grande e, como se nisso houvesse qualquer relação obrigatória de causa e consequência, que você amadureceu: "não faz sentido continuar sem falar com ele por causa de briga de criança".
E aí, ele te olha por um longo e constrangedor momento. Longo o bastante pra você se tocar que não dá mais para virar o rosto e fingir que não o viu, pois ele sabe que você o viu, sim! Rendido, sem alternativas, você se apercebe apenas que está acontecendo, sem que você possa evitar, uma troca de sorrisinhos forçados, de cuja existência você é incapaz de compreender o sentido. Mas você respira aliviado, pensando "ufa, passou, agora vou atravessar a rua". Mas para seu espanto, ele te encara e diz: "Tudo bem, cara?" (é sempre cara, pois vocês sequer se lembram do nome um do outro). E emenda imediatamente: "Quanto tempo! A gente nunca mais se falou, desde que aquela bola bateu na trave, lá no campinho!".
É nesse momento, após um átimo de segundo, no qual você faz um retrospecto de toda a sua vida pregressa, que você chega à constatação mais aterrorizante daquele encontro: "Que diabos vou falar com essa pessoa agora?"
Veja o impasse em que você se meteu! Se você não falar nada, ficará por toda a eternidade se martirizando, sentindo-se imaturo por não ter superado um fato que ocorreu quando você ainda acreditava em bicho-papão. Se você tentar falar, descobrirá que ficará sem assunto e não falará nada mesmo e, muito embora tenha a consciência limpa por ter tentado fazer sua parte, as pessoas à sua volta só registrarão que você não falou, e te acharão totalmente blasé.Logo você continuará sendo visto como imaturo por não ter superado um fato que ocorreu quando você ainda acreditava em bicho-papão.
Por fim, se você consegue ultrapassar todas as barreiras do passado e dar um sorriso sincero, percebendo até que aquele seu ex-inimigo-mortal-dos-tempos-da-cabra-cega pode ser gente boa e você acredita piamente que pode até criar um vínculo de amizade, pois aquele encontro não aconteceu por acaso, sempre haverá aquele maldito semiconhecido da mesma época, que testemunhou o exato momento em que a tal bola bateu na tal trave ali no tal campinho para lhe apontar o dedo na cara e dizer: "Como você é falso! Todo mundo sabe que vocês sempre se odiaram!"

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Tabuleiro BA - A Bahia de Todos os Sons

Desde que cheguei a esta cidade, pouco menos de quatro anos atrás, tive o privilégio de testemunhar momentos musicais memoráveis, como o show que uniu Virgínia Rodrigues e Naná Vasconcelos, em meados de 2007, no Rival Petrobrás, a apresentação de Zé Renato e Nina Becker no Teatro Carlos Gomes, e que eu quase perdi por causa de uma entrevista de emprego, em junho de 2009, além, claro, do das irmãs Soraya Ravenle e Ithamara Koorax cantando Dolores Duran, no SESC Ginástico, dentre tantos outros que integram a lista “Shows Inesquecíveis”...

Começou hoje no Centro Cultural Banco do Brasil o projeto “Tabuleiro BA – A Bahia de todos os sons”, que trará ao Rio, uma vez por mês, até junho, representantes da música baiana, como a já citada Virgínia Rodrigues, que tem sua apresentação agendada para 26 de abril, além de Lucas Santana, Márcia Castro, Jarbas Bittencourt, Pietro e Ronei Jorge.

Hoje tive a oportunidade de assistir à apresentação da Jussara Silveira, com participação – ou a cereja que dá o toque final no bolo – do Roberto Mendes, e posso assegurar que meu rol “Shows Inesquecíveis” ganhou mais um elemento!

O timbre da Jussara dispensa maiores comentários, e quem a ouviu sabe do que estou falando. Sua voz une de modo harmonioso o potente ao suave, o rouco ao cristalino, e resume musicalmente o conceito de versatilidade. Já no início, a cantora chama atenção pela sua postura elegante, trazendo canções lentas, com uma pegada jazzística reforçada pelos arranjos de Sascha Amback nos teclados e Marcelo Costa na percussão. O intimismo, que contou com uma boa interpretação de “Muito Romântico” (mas que não substitui a gravação da Célia em seu álbum “Faço no tempo soar minha sílaba”) encontra seu auge na devastadora composição do Arnaldo Antunes, “Contato Imediato”, lindíssima música até então minha desconhecida, mas pela qual me apaixonei instantaneamente, arriscando-me mesmo a dizer que foi a mais bela de todo o show. A ela seguiu-se uma “Marcianita” leve e animada, iniciando-se o que poderia ser considerado um segundo ato, mais despojado que o precedente.

Foi neste momento que Roberto Mendes subiu ao palco, resgatando os sambas de roda do Recôncavo Baiano, como “Quem pode mais, dona da casa, eu vim aqui”. Confesso que fiquei impressionado como, em alguns momentos seu timbre grave se metamorfoseava de tal forma, que assumia uma suavidade que me remeteu demais à voz do Gilberto Gil. Coisas da Bahia...

Destaque para a qualidade do som, que nos permitia escutar cada vibração, cada respiração, cada nota. Isso tudo com um cenário simples, em uma iluminação na medida exata!

No bloco final, chamou minha atenção a interpretação quase histérica – como realmente deve ser – da música “Dê um rolê”. E claro, não poderia deixar passar em branco o bis em dueto de Roberto e Jussara, com a canção “Massemba”, que teve seu compasso marcado pelas palmas do público, emendadas à ovação generalizada que seguiu paralela aos versos que resumem o ideal de cooperação na busca de uma sociedade mais justa: “vou aprender a ler pra ensinar meus camaradas”. Inesquecível!