domingo, 6 de janeiro de 2019

Dano existencial

(Originalmente postado no meu Facebook, em 31.08.2018)

Dá-se o nome de dano existencial à lesão causada pelo empregador ao empregado quando, em virtude da jornada excessiva do trabalho, este deixa de gozar a própria existência como alguém dissociado do ambiente corporativo no qual está inserido e do qual deveria apenas ser parte. Ocorre quando a pessoa se encontra impossibilitada de fruir e gozar momentos de lazer, vida social, vida acadêmica e projetos pessoais, como cursos, exercícios, hobbies, etc.
O reconhecimento do dano existencial parte do pressuposto de que o trabalho do ser humano deve ser instrumento para sua subsistência e não um fim em si mesmo. Repousa sobre este entendimento a velha máxima popular de que todos devemos trabalhar para viver e não viver para trabalhar. É a própria existência da pessoa que se vê prejudicada quando toma por condição inerente, em uma relação de total submissão e dependência, a ideia de que sua vida se resume à atividade que você pratica para sobreviver.
E o mundo corporativo há muito vende a ideia falaciosa de que a dignificação do indivíduo é consequência direta da sua atividade laboral. De tal forma que costumamos nos definir pela atividade com a qual atuamos. Quando, algum  tempo atrás me perguntavam o que eu era, eu respondia sem pestanjear: sou advogado.
Pressupunha-se, com essa resposta, que o conceito de "ser" resumia-se, ontologicamente, a uma fatia do ser, ou, mais precisamente, a um só (dos inúmeros) campos de atuação do ser. O ente profissional ocupava todo o indivíduo, em uma metonímia cruel que atribuía como o todo apenas uma de suas facetas: a do trabalhador.
Essa cultura mesquinha que resume a pessoa à sua atividade laborativa criou a falsa ideia de que é o trabalho que valoriza o homem, aqui tomado em sua acepção mais ampla, como um exemplar da espécie humana. Não ouso discordar que o trabalho valoriza o homem, mas insisto em dizer que o valoriza também, mas não somente.
Quando eu respondia que eu, Gustavo, era advogado, eu traduzia exatamente a noção de que o ser humano é definido pelo seu trabalho, o que, evidentemente, não corresponde à verdade. Para demonstrar isto, basta que se pergunte "o que você é?" a quem não exerce qualquer atividade laborativa. Invariavelmente, outra faceta que compõe a pessoa preencherá a vaga deixada aberta pela ausência do trabalho: sou filho, sou irmã, sou homem, sou sonhadora.
O mundo corporativo ganha muito com esta visão, de forma que é fácil se perder na reflexão sobre a causa e a consequência: o mundo corporativo propaga essa ideia de que somos aquilo com que trabalhamos por que temos essa percepção ou temos essa ideia por que o mundo corporativo nos ensinou e nos fez acreditar que somos aquilo com que trabalhamos?
Seja como for, o que se nota sem grandes esforços é que as empresas, as grandes corporações, os empregadores, via de regra, insistem em propagar esse pensamento, incutindo na cabeça do trabalhador que ele está sendo agraciado pelo excesso de trabalho que lhe impõem.
Assumo doravante, em caráter generalista para fins de economia argumentativa, que todo empregador seja um explorador do homem, sem que seja necessário explicar, todas as vezes em que eu fizer alusão ao empregador e ao empresariado, que eu deva lembrar que existem aqueles de visão humanista, que reconhecem o valor dos seus subordinados e os veem como pessoas e não como máquinas.
O empresariado capitalista busca o lucro, fato. Necessita, para isto, fazer sua balança pender sempre para o lado da receita, deixando mais leve o lado dos gastos. Para isto, busca utilizar insumos mais baratos, mão obra mais barata, reduzir o quadro de pessoal para enxugar a folha de pagamento.
Consequentemente, passa a ser recorrente a queixa de que a quantidade de atividades impostas ao funcionário é excessiva para ser cumprida na carga horária pela qual ele é pago para trabalhar.
E é aqui que experimentamos o lado mais cruel da realidade corporativa. Você é ensinado que sua definição se mede pelo trabalho que você exerce. Logo, a qualidade do seu trabalho traduz o seu próprio valor como pessoa. E quando você não sabe o que é causa e o que é consequência, enxergando apenas uma intersecção entre o que você é e o que você faz, passa a ser levado a crer que toda responsabilidade sobre tudo o que você faz decorre do que você é.
Se o seu trabalho fracassa, é porque você não se dedica o suficiente. Se você se atrasa na execução de uma atividade, é porque não otimiza seu tempo satisfatoriamente. Se você se cansa, é porque não se prepara para trabalhar sob pressão. Para o sistema aqui explanado, se você não dá conta, nunca é porque lhe impõem um fardo maior do que alguém pode carregar. É culpa sua. Apenas sua. Quem adora essa ideia são os coaches, profissionais da moda que são pagos para te ensinar o que já lhe empurram diariamente goela abaixo. Sou capaz de apostar que não foram poucas as vezes em que você viu anúncios do tipo "Cansado de procrastinar? Nós te ensinamos a administrar seu tempo". Sim, porque, neste sistema massacrante, novamente é você - e só você - o responsável pelo que te acontece.
Diariamente, sou bombardeado por "mensagens de estímulo" do tipo "não reclame da sua vida, trabalhe para mudá-la", "o sucesso demanda esforço", "se não quer fracassar, durma menos, trabalhe mais". Trabalhe, trabalhe, trabalhe, trabalhe, trabalhe. Até que não sobre mais nada de você. Vemos o trabalho por todos os lados, sempre esfregados na nossa cara como algo dignificador do homem, ou mais, como determinante de sua  própria identidade.
Nossa sociedade, etnocêntrica, insiste em criticar alguns grupos tidos como primitivos, a exemplo de certas aldeias indígenas, arguindo que seus membros são preguiçosos (e esta palavra nunca vem de forma não pejorativa), que não trabalham, que não produzem, que não acumulam. Temos até uma palavrinha emprestada do inglês para definir o oposto disto, usada para nomear a pessoa que vive em função do seu trabalho e raramente é mal vista por isto: workaholic. O workaholic passa a ser um modelo de conduta, não importando a quem o vê como um exemplo a ser seguido a sua ausência do meio familiar, as horas passadas longe dos filhos, a saúde sacrificada pela falta de horas dormidas.
Ao contrário, o empregador vende a imagem de que ser um viciado em trabalho é algo excelente. E tão excelente que qualquer forma de questionamento desta premissa será reprovável. Você automaticamente será alçado à categoria de preguiçoso se começar a questionar os prejuízos pessoais decorrentes do excesso de trabalho. Anda de mãos dadas com este pensamento, como uma espécie de venda casada, a pior faceta desse sistema: a ditadura da felicidade e do necessário combate à negatividade.
Não basta a exploração à qual o empregado é submetido com excesso de trabalho, carga horária apertada, cobrança, pressão, exigência de que sua vida esteja inteiramente à disposição do seu ambiente de trabalho, seu celular conectado ao seu e-mail, os famigerados grupos de trabalhos em aplicativos de mensagem instantânea, os acessos remotos gentilmente disponibilizados pelo empregador para que ele trabalhe de casa em fim de semana ou madrugada adentro. Não basta. O funcionário ainda deve estar sempre sorridente e grato por ter sua existência corrompida. Deve irradiar a maldição da positividade, demonstrando entusiasmo por cada tarefa a mais que lhe é atribuída. Afinal, ao empregado que reclama não é dada sequer a presunção de seu real interesse é o de exercer uma atividade de excelência e contribuir com melhores resultados. Em vez disso, a este empregado é apenas atribuída a responsabilidade (mais uma) de ser uma influência negativa aos colegas. Só. O mundo corporativo te quer sorrindo. O contrário disto será apenas uma forma de diminuir o moral da equipe. Uma influência nefasta capaz de prejudicar o bom andamento dos trabalhos. E o empregado deve estar feliz e grato por mais uma oportunidade de integrar aquele ambiente.
Oportunidade. Essa é a palavra coringa, o dois de paus usado no jargão corporativo para mostrar que você não pode revelar jamais sua insatisfação. O empresário determina que você abrace mais tarefas do que aquelas que você já tem e não consegue cumprir com sua jornada diária? Em sua visão egoísta, que te vê como uma peça substituível de uma engrenagem que deve se manter em movimento, é uma oportunidade que está sendo oferecida para você mostrar que pode, que é capaz. O empresário cria grupos estratégicos para que você os integre, com o objetivo de pensarem soluções para problemas diários e recorrentes em sua atividade, mas te lembra que você deverá dispor de alguma horas semanais que não serão descontadas da sua jornada diária. Afinal, você é que deve se organizar para usufruir dessa oportunidade que lhe está sendo oferecida. Trabalhe mais rápido, mas sem perder a qualidade, e aproveite essa chance. O chefe precisa de você para cobrir o funcionário afastado por auxílio-doença, mas não te libera das suas tarefas normais? Eis uma oportunidade que a empresa está lhe dando de adquirir mais conhecimentos exercendo uma tarefa a mais que você passará a dominar.
E te fazem questão de mostrar que essa oportunidade que lhe dão é para poucos. Lá fora há uma fila de gente que também acredita precisar de uma definição embasada em sua atividade laboral, esperando essa mesma oportunidade. Esse é o pensamento do empregador. E o dano existencial? Para o mundo corporativo, não existe. Dane-se a sua existência. Ao final, tomado por estafa, estresse, esgotamento físico e mental, você ainda pode infartar. Mas, se for morrer, por favor, deixe sua agenda cumprida. Obrigado.

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