sexta-feira, 3 de abril de 2020

Doenças que matam mais

Em uma grave falha argumentativa, vejo muita gente fazendo comparações estapafúrdias, pautadas em falsa simetria, da pandemia do coronavírus com outras doenças que matam muito mais.

Chamo de falha argumentativa porque a linha de defesa comumente adotada por essas pessoas é aquela pautada no fato de que, se há tantas doenças que matam mais do que o coronavírus, não faz o menor sentido mobilizar a população em um alarmismo desnecessário para controlar a pandemia, já que não a mobilizamos para todos os demais casos também.

Este é o pulo do gato que muita gente parece não se dar conta. Tomam como premissa básica, sólida e imutável o fato de que pessoas morrem todos os dias por várias doenças e o fato de que ninguém faz nada para mudar isso. Usam esse pretexto de forma estruturante, como se a sociedade fosse naturalmente constituída sobre a desigualdade social e, consequentemente, sanitária.

Assumem, portanto, como dado posto, que é normal, aceitável e imutável que pessoas morram diariamente de diversas doenças, a maioria delas relacionadas a condições de precariedade de saneamento básico, falta de atendimento nos hospitais públicos, ou dificuldade de acessos a medicamentos caros. Quando se valem desse raciocínio, o que essas pessoas estão dizendo é que está dentro do parâmetro de normalidade que haja uma grande parcela da população sofrendo as consequências da pobreza e que esse fato é o que é, encerrando-se em si mesmo como um axioma, uma espécie de dogma que não precisa ser questionado.

Dentro do raciocínio lógico, a formação de uma sentença passa pelo processo silogístico, que relaciona duas outras sentenças antecedentes, para se chegar a uma conclusão. Sabemos que eu e você morrerei a qualquer momento, não porque isso seja uma informação dogmática, sem outras que a precedem. Mas, porque somos seres humanos. E porque seres humanos são mortais. Se todo ser humano é mortal e se eu sou um ser humano, logo, irei morrer. Continuando a seguir esta linha de pensamento, temos uma sentença (a de que iremos morrer) baseada em outras duas (a de que somos humanos e a de que seres humanos são mortais). Mas, a premissa que estabelece que somos humanos e a premissa que estabelece que humanos são mortais também não foram dados prontos. Vieram de outras premissas, que lhes antecederam. Então, sempre devemos contestar um dado questionando quais foram os processos que o antecederam e que culminaram em sua formação. Quais foram as premissas anteriores que formaram aquela premissa que estamos utilizando como pressuposto?

Trazendo este pensamento para o contexto aqui discutido, quando criamos o silogismo de que não deveríamos nos preocupar em mobilizarmos a sociedade por causa de uma doença porque já temos outras doenças que matam mais, esse raciocínio foi construído da seguinte forma:

PREMISSA 1:
SE temos doenças que matam mais e estão relacionadas à pobreza.

PREMISSA 2:
SE não criamos alarme em razão dessas doenças.

CONCLUSÃO:
LOGO, não deveríamos nos preocupar com o coronavírus.

A fórmula é simples. E parece encerrar-se em si mesma. No entanto, se tomamos a premissa 1 e a premissa 2 como partida para uma conclusão óbvia, precisamos enteder de onde surgiram ambas as premissas. Ou, em outras palavras, essas premissas foram a conclusão de quais outras premissas que a antecederam?

Sim, temos doenças que matam mais e eu poderia tentar dar um exemplo de silogismo que leva a tal conclusão: SE algumas doenças surgem diante de falta de saneamento básico, e SE pessoas pobres têm carência de saneamento básico, LOGO, doenças relacionadas à falta de saneamento básico atingem pessoas pobres. SE doenças matam pessoas pobres e SE isto acontece porque lhes falta saneamento básico, LOGO, a criação de políticas públicas capazes de reduzir a carência de saneamento básico poderia interferir para redução das doenças relacionadas a tal carência.

Sim, ninguém faz nada para mudar isso. E se isso é tomado como uma premissa, temos aqui um novo silogismo. SE pessoas morrem de doença relacionadas à pobreza e SE ninguém faz nada para mudar isso, LOGO pessoas não morreriam de doenças relacionadas à pobreza se houvesse medidas sendo tomadas para evitar.

Gostou do exercício? Continue praticando. Cada premissa que você toma como pressuposto foi construída a partir de outras. E aqui, o que fica claro é que, acrescentando a essa lógica elementos de moralidade sobre o que deveria e o que não deveria ser feito com base nos valores que nossa sociedade usa para se constituir, o que se pode inferir é que se as pessoas estão morrendo por diversas outras doenças e não há qualquer mobilização para com elas, não deveríamos parar de nos mobilizar por causa da pandemia do coronavírus. Deveríamos, sim, começar a nós mobilizar também por todas essas outras doenças que matam mais que o coronavírus.

Se essas doenças estão relacionadas à pobreza, então devemos combater a pobreza. Se a pobreza está relacionada à desigualdade social, devemos combater a desigualdade social. Se a desigualdade social está relacionada à concentração de renda, devemos combater a concentração de renda. Se a concentração de renda está relacionada a políticas públicas ineficientes que priorizam o empresariado em detrimento dos trabalhadores, devemos combater estas políticas públicas. Se o combate a essas políticas públicas está relacionada à mobilização da população para pressionar seus governantes, então devemos pressionar os nosso governantes.

Sociedade se constrói. E se constrói com a colaboração de todos. Pobreza e desigualdade não são fenômenos naturais que devem ser aceitos como fato posto. Doenças que matam mais que o coronavírus não devem servir de parâmetro para impedir medidas de combate ao coronavírus. Pelo contrário, medidas de combate ao coronavírus adotadas por toda a sociedade é que deveriam estar servindo de parâmetro para que deixássemos de naturalizar outras doenças, tomando-as como ponto de partida para nivelar nossa conduta e justificar nossa omissão.

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