segunda-feira, 11 de maio de 2020

O neoliberalismo nosso de cada dia

Meu pai é um microempresário, no ramo de produtos alimentícios. Quando eu era criança, testemunhei negociações entre ele e outras pessoas no mesmo ramo, a fim de estabelecerem critérios de produção e mercado que pudessem atender a todos que atuavam na mesma área. Lembro como me causava estranheza ver meu pai dialogando com outros concorrentes, numa tentativa de encontrarem diretrizes que fossem benéficas a todos. Na minha cabeça, concorrente era inimigo. Meu pensamento se estruturava da seguinte forma: o produto comprado na mão de um concorrente deixaria de ser comprado na mão do meu pai. Logo, isto significava que estariam tirando do meu pai a possibilidade de ganhar o seu dinheiro. Portanto, o concorrente deveria ser eliminado do mercado. Um dia experimentei comprar de um concorrente para saber como era seu produto. Fiquei tão envergonhado depois, que nem tive coragem de falar em casa. Receava levar uma bronca. Na minha cabeça, eu havia traído o meu pai.

Depois de adulto, já ingressando no mercado de trabalho, percebi que meus colegas de faculdade eventualmente seriam meus concorrentes. Amigos meus! Camaradas! Brothers and sisters! Como seria aquilo? Como eu lidaria numa mesa de audiência na qual, do outro lado, um/a melhor amigo/a, estaria defendendo interesse diametralmente oposto ao meu?

Percebi que era possível ser concorrente dos meus amigos sem deixar de ser amigo. Em verdade, era mais fácil ser parceiro dos meus amigos. E até hoje funciona assim. "Oi, estou sem tempo para pegar essa causa, quer pegar para você? Posso te indicar se quiser". E assim estabeleci boas parcerias com pessoas de minha confiança. E já me deparei com amigos defendendo empresas que eu estou processando. A amizade não fica abalada. Não é nada pessoal. Cada um precisa obter sua forma de levar a comida para casa.

Mas, a visão de que aquela pessoa é uma potencial concorrente permanece ali, quietinha em algum canto da mente. Hoje, somos parceiros. Até o momento em que tivermos de concorrer a uma mesma vaga no mercado de trabalho. "Boa sorte para a gente, amiga/o", dizemos no processo seletivo meramente por cordialidade, já que desejamos que a vaga seja nossa e não do outro. Até desejamos que o outro se dê bem de alguma forma. Que apareça por milagre outra vaga. Viramos inimigos quando um é selecionado e o outro descartado? Não. Mas, o pensamento enraizado é o de que o nosso amigo, nessas circunstâncias, é o nosso concorrente. E que nossos interesses são antagônicos. Minha sobrevivência pela do outro. Farinha pouca? Meu pirão primeiro. "Poxa, amigo/a, que pena que a vaga não foi sua", dizemos comemorando o fato de termos sido nós os selecionados.

Não, não estou dizendo que somos falsos e que não desejamos realmente que nossos colegas, amigos, parceiros, se deem bem. O que estou dizendo é que a racionalidade neoliberal nos põe constantemente em dilemas, fomentando a concorrência nas nossas relações mais próximas.

Advogado defensor da valorização da profissão, varias vezes já me indispus com colegas muito queridos porque enquanto eu recuso trabalhar por qualquer preço, eles aceitam a causa. "Se não for eu, será outro. Preciso desse dinheiro", dizem, ainda que posteriormente se queixem da desvalorização da profissão e não se deem conta de que são responsáveis por isso a cada caso que pegam em valor abaixo da média.

Agora mesmo, durante a pandemia de Covid-19. A gente lamenta o colapso da saúde pública e chora pelas 300, 400, 1.500 mortes diárias, da falta de leitos e de materiais necessários ao correto atendimento para cada uma das vítimas. Mas, quando o único leito disponível no hospital tiver de ser disputado entre você ou seu filho com uma pessoa desconhecida, filha de alguém também, talvez arrimo de uma família inteira, para quem você torcerá? Estaria disposto/a a abrir mão da vaga da sua mãe no hospital para deixá-la para um desconhecido, tão merecedor de permanecer vivo quanto ela? E se escolher viver, sabendo que pessoas morrerão por isso, isso faz de você um monstro?

Não se culpe. A culpa não é sua. A culpa é do pensamento neoliberal, que precisa fomentar a concorrência para se sustentar. Não à toa, o mercado oferece sempre menos vagas do que a sociedade dispõe de pessoas para preenchê-las. Trabalhadores concorrentes não se unem, disputam. Trabalhadores disputando não reúnem força para combater aqueles que os exploram. O neoliberalismo quer que você seja inimigo do outro trabalhador. Para que você garanta sua vaga com unhas e dentes, dando o máximo de si para enriquecer o seu patrão, já que, se não o fizer, o seu concorrente usurpará a vaga que é sua.

Neste podcast, o juiz Rubens Casara levanta o questionamento: "Qual seria a saída neoliberal? Aproveitar a crise para gerar ainda mais lucro para uma parcela reduzida da população ou aproveitar a crise para mudar o modo de pensar e atuar no mundo?"

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