segunda-feira, 11 de maio de 2020

O Brasil que matou Flávio Migliaccio

"Me desculpem, mas não deu mais. A velhice neste país é o caos como tudo aqui. A humanidade não deu certo.
Eu tive a impressão que foram 85 anos jogados fora num país como este. E com esse tipo de gente que acabei encontrando. Cuidem das crianças de hoje!"
Nunca costumo postar notícias meramente informativas sobre a morte de alguma personalidade famosa, se não for com uma intenção para além de dar ciência às demais pessoas. Normalmente, quando um ator, uma cantora, um escritor famoso morrem, quase todos os contatos divulgam ao mesmo tempo "Fulano morreu", como se fosse uma informação desconhecida. Furto-me de ser mais um na multidão.

No entanto, desta vez, não venho aqui apenas para dizer "Flávio Migliaccio morreu". Venho aqui para denunciar que o Brasil matou Flávio Migliaccio.

Divulgar uma carta de suicídio de uma pessoa pública como ele é muito mais que puro sensacionalismo, é um convite à reflexão: O QUE NOSSA SOCIEDADE TEM FEITO DE TÃO ERRADO A PONTO DE FAZER COM QUE PESSOAS QUEIRAM SAIR DO PALCO DESCENDO AS CORTINAS SEM APLAUSOS?

É preciso lançar holofotes sobre o caso e denunciar o que a política, o caos social, a economia, o descaso desse governo para com as pessoas, em especial às pessoas idosas, vem causando.

A política neoliberal escolhe pessoas por sua utilidade prática: quem deve viver é quem produz e quem consome, necessariamente conjugando ambas as características, sob pena de ser descartável.

Quem não tem força física para continuar vendendo mão-de-obra ao mercado está fora. A reforma da previdência veio demonstrar como nosso Estado burguês trata pessoas de idade. São despesas. O Estado instrumentalizado pelos detentores do grande capital não tem o menor interesse em investir no idoso. Ele nem trabalha mais! Aposente-o de qualquer maneira, de forma capitalizada, financiando instituições financeiras e ganhando uma miséria no final da vida.

Velho dá gasto. Velho gasta com remédio. Velho gasta com saúde pública. Velho gasta até espaço nos ônibus quando sai de casa e é obrigado a ouvir desaforo porque não tem nada que fazer na rua, então para que ocupar o assento de um trabalhador cansado?

Esse tratamento está incutido no pensamento neoliberal em sua gênese: o mercado precisa se regular. E para se regular precisa de quem produz. Suga a força vital do trabalhador até que uma doença ocupacional ou a idade o descarte, quando então poderá ser substituído. Há tanta gente sem trabalho querendo uma oportunidade, não é mesmo?

Nesta pandemia de coronavírus, verificamos na fala do Ministro da Saúde Teich, aquele que faz cosplay de Frankenstein, que o Estado, ao ter de fazer a escolha por quem deve ocupar um leito escasso no sistema de saúde pública, pode descartar um velho para fazer viver um jovem. Afinal o jovem ainda tem muita vida pela frente. Leia-se: o jovem ainda tem tanto vigor para produzir e enriquecer o empresariado, deixemos para descartá-lo quando surgamos dele toda essa energia. O velho? "Lamentamos profundamente, mas é uma escolha difícil. Nosso sistema nos obriga a isso. Sentimos muito. O Estado não pode arcar com os custos de tudo sozinho."

E ainda há quem se compadeça. Não, não do velho. Do Estado cooptado pela burguesia para atender às suas vontades. Do sistema. Como se o sistema fosse uma criação da natureza e não uma construção humana.

É para esse sistema que a direita liberal nos quer levar de volta, tirando-nos de casa, obrigando-nos a trabalhar para a economia não quebrar. A direita liberal não considera a possibilidade de mudar o sistema, de romper suas estruturas e permitir a implantação de um outro sistema, gerador de uma sociedade mais justa e igualitária.

"O que podemos fazer?"
"As coisas são assim mesmo."
"Que ódio! Ninguém faz nada!"
"Por isso que eu não voto, não adianta nada mesmo."
"Vai ser sempre assim, então não gastar minha energia lutando."

Não estamos dispostos a gastar nossa energia lutando, mas nos dispomos a gastar nossa vida inteira perdendo energia em troca de um trabalho qualquer que nos garanta apenas um salário baixo. Até envelhecermos e sermos descartados.

Toda vez que você vir um idoso massacrado pelo sistema capitalista, não se isente da sua responsabilidade com um carinho oco na sua consciência, dizendo-se frases como "tadinho, mas não havia o que ser feito". Antes, diga, "sim, havia o que ser feito, e nós não fizemos nada!"

O Brasil de Bolsonaro segue assassinando pessoas. Uma maioria anônima, que não comove ninguém. Que não faz ninguém postar "Morreu hoje o Zé da Padaria". Mas, o mesmo Brasil que assassina o Zé da Padaria assassina um ator reconhecido do grande público.

A humanidade que falhou, deixada na despedida de Flávio Migliaccio, não é uma humanidade deixada lá longe, como um grupo do qual não fazemos parte. Somos nós. As crianças, de quem ele pediu que cuidássemos, são as nossas. Não as dos outros. Chega de achar que o inferno são sempre os outros. Que valores NÓS estamos dando a quem NÓS educamos? Que sociedade NÓS queremos construir e como NÓS estamos fazendo isso?

Queremos continuar descartando idosos como se fossem produtos inúteis ou queremos viver em um sistema que nos possibilite salvar as pessoas da angústia de não serem toleráveis, por serem um fardo improdutivo?

Não é tempo de salvarmos a economia que mantém girando a engrenagem desse sistema cruel e excludente. É tempo de deixarmos asfixiá-la, sufocando todas as estruturas que dependem dela para sobreviver, até que todo o maquinário se desmonte. Salvar o neoliberalismo é continuar permitido que idosos sigam se suicidando pelo desamparo de serem um peso.

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