segunda-feira, 30 de março de 2020

Quando o debate público quer virar meme

Tenho visto pessoas de pensamento progressista, que se declaram alinhadas às pautas defendidas pela esquerda, fazendo um uso excessivo de uma ferramenta perigosíssima, bastante utilizada pela direita quando joga para sua plateia. O debate-lacre, pautado, não em aprofundar discussões sobre causa e consequência, mas unicamente voltado a "revelar" incongruências em posturas outrora defendidas pelos seus opositores, comparando-as a suas respectivas posturas atuais.

Nesta esteira, não são poucas as postagens que vejo – e aqui reconheço minha falha, por já ter feito uso da mesma ferramenta – tentando expor contradições dos seus opositores, como aquelas que mostram a inconsistência de quem antes defendia o direito à vida ao brigar contra o aborto, e agora se contradizem ao legitimar a morte de pessoas numa pandemia em prol da economia. Outro exemplo é o dedo apontado na cara de quem agora chama a Globo de golpista e comunista, mas que, quando a mesma Globo manipulava as massas para fomentar o golpe parlamentar que destituiu a presidenta Dilma, davam-lhe credibilidade. E ainda aqueles que riem de quem "acreditou em mamadeira de piroca, mas duvida do Covid-19". Não, gente! Não! Não dá para colocar informação técnico-científica, oriunda de pesquisas sérias, como a pandemia do coronavírus, no mesmo balaio que a lenda urbana do kit gay ou da mamadeira de piroca, criada para manipular os resultados das eleições presidenciais em 2018, como se fossem coisas comparáveis entre si.

Quando o presidente faz campanha baseando-se em idiotices como estas fake news e seu eleitorado lhe dá crédito, o que se está levando em consideração é muito mais o propagador da mensagem que a mensagem propagada em si mesma. Não se trata de dar credibilidade a informações obviamente mentirosas e toscas. Trata-se de dar crédito ao que Jair Bolsonaro e seus multiplicadores espalham. Independentemente do seu conteúdo. Não se trata de dar espaço ao discurso, mas em dar voz a quem o profere. E quem discute simplesmente decidiu eleger como mentirosos os resultados de pesquisas na área da microbiologia e da infectologia. Por isso, não adianta usar como ferramenta de cotejo duas informações que não se correlacionam entre si, e acreditar que, com isto, está se elevando o nível do debate, convencendo seu interlocutor. É preciso ir mais a fundo e buscar formas de demonstrar, não que a mamadeira de piroca é mentira e o Covid-19 é verdade. E sim, que o presidente da república tem interesse em propagar como verdade o que se sabe ser mentira porque, com isto, sabe que está convencendo seu eleitorado a evitar ameaças da esquerda baderneira; da mesma forma, o que devemos é convencer o nosso ouvinte que o interesse por trás do discurso negacionista à ameaça da pandemia é satisfazer as vontades dos detentores de capital, classe privilegiada pela política neoliberal adotada pelo atual governo.

Acho extremamente perigoso fazer do debate público uma tribuna limitada a apontar contradições rasas, sem traçar paralelismos exatos entre as premissas comparadas. Quando um progressista diz que um conservador foi incongruente por condenar o direito ao aborto e não ter qualquer conflito moral ppr condenar à morte quem não interessa para a produção, está colocando em condição de igualdade duas situações que não são semelhantes e comparáveis entre si. A lógica chama isso de falácia da falsa simetria, ou seja, atribuir uma simetria inexistente a situações que não necessariamente são análogas entre si.

A falha desse discurso como enriquecedor do debate pode ser revelada quando invertemos a ideologia de quem o profere, colocando-o do lado oposto. Vislumbre a cena. Você (nós), militante de esquerda, coloca a mão na cintura em um ar desafiador e fala para seu oponente – naquele tom "acabou, Jéssica?" – que é muito irônico que agora chame a Globo de golpista, mas que no passado tenha lhe dado confiança quando se lhe afigurou conveniente. Acredita que, com isso, tenha lacrado, calado a boca do reacinha. Já fez o discurso inverso? Já viu como funciona para o militante de direita dizer que é muito irônico que agora o esquerdopata dê ouvidos à Globo por lhe ser conveniente, mesmo depois de tê-la chamado tantas vezes de golpista?

Assim também é quando dizemos que é contraditório falar em defesa à vida quando os grupos que se posicionam contra o aborto defendem abertamente o envio de 5 a 7 mil idosos e doentes para o cadafalso do coronavírus. Os mesmos pseudodebatedores que ganharam terreno planificando, não somente a Terra, mas também as discussões, dirão que é engraçado como os esquerdistas falam em direito à vida, mas defendem o assassinato de fetos inocentes quando lhes interessa.

Ficou claro o perigo de soltar frase de efeito, apenas com o intuito de jogar para a plateia e criar um tweet genial que possivelmente se tornará um meme? Discutir coronavírus e aborto não deveriam ser postos em pé de igualdade, simplesmente porque não são circunstâncias equivalentes e não guardam semelhança entre si! Da mesma forma que não deve haver qualquer semelhança estabelecida entre a Globo patrocinar o impeachment da Dilma e a Globo divulgar medidas de segurança para a população.

Não se trata de dar ou não ouvidos a uma emissora golpista. Trata-se de saber porque, para essa emissora, foi conveniente promover o golpe em 2016 e porque agora lhe é conveniente endossar as recomendações médicas da Organização Mundial de Saúde, contrariando o discurso do presidente. Trata-se de demonstrar que a Globo atende ainda aos interesses do capital e que, por isso mesmo, esforçou-se para derrubar um governo de esquerda quando a tentativa da conciliação de classes iniciada pelo então presidente Lula não se sustentou durante o governo Dilma. Trata-se de expor que hoje, embora o interesse da emissora continue sendo o do empresariado, não está mais alicerçado no discurso de Jair Bolsonaro, não por causa de sua política neoliberal, mas porque este lhe representa uma ameaça maior em razão de sua hostilidade com órgãos de imprensa e sua aproximação com concorrentes da maior emissora aberta do país, ameaçando seu posto hegemônico.

Esse debate só ganhará corpo quando for abandonada a visão binária de mundo, que insiste em dividi-lo entre bons e maus, mocinhos e vilões, confundindo as mentes das pessoas quando estas deixam de compreender que muitas vezes somos obrigados a lidar com mais de um inimigo e que estes também são inimigos entre si.

Trata-se de demonstrar que defender o direito ao aborto não é um debate sobre a vida, mas uma discussão sobre o direito que as mulheres devem ter sobre seus próprios corpos.

Enquanto nós, que queremos elevar os debates públicos a argumentos sérios, sólidos e fortes para embasarmos decisões sociais, políticas e econômicas, continuamos limitados a usar o "debate-lacre" para fazer bonitinho e "calar a boca do reacinha", esses mesmos reacionários continuarão ganhando terreno falando para seu público cativo, que tem como exemplo de intelectualidade um charlatão como Olavo de Carvalho, e chamam de mito um incompetente como Jair Bolsonaro.

Se não começarmos desde já a falar com nossas bases, e continuarmos pulverizando nossa força na fracassada estratégia de fazer uma frase de efeito para se tornar um meme da estação, não avançaremos no convencimento da sociedade para que nossas pautas sejam ouvidas. Antes, estaremos fadados à ridicularização por quem sequer consegue alcançar nossa crítica. Gente que acredita piamente que não participar de um debate eleitoral, apenas para citar um exemplo, é uma decisão genial digna de um grande estadista. Gente que crê que seu candidato, ao ocultar seu próprio plano de governo e não apresentar qualquer planejamento governamental não está mostrando a própria fraqueza, estupidez e incompetência, mas está pisando em um sistema que se acredita falho e que se deve derrubar. O presidente da frase de efeito é o mito para quem acredita que o debate-lacre encerra discussões e apresenta soluções.

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