domingo, 29 de março de 2020

Quando a sociedade se nivela por baixo

O argumento mais frágil da direita neoliberal para defender o fim da quarentena é, ironicamente, o mais utilizado. Recentemente o bom pastor Silas Malafaia deu de ombros com as possíveis mortes que o Covid-19 iria trazer, ao estabelecer um paralelo entre isso e as mortes ocasionadas pelo caos social. "Vai matar gente de coronavírus? Vai. Mas, o caos social vai matar muito mais."

Ainda nesta semana vi uma postagem de um conhecido liberal que, ironicamente, depois de muito defender a necessidade de se manter o isolamento das pessoas, desabafa em tom exasperado que aqui não é a Europa, mas um país onde predomina a informalidade e a precariedade dos trabalhos. Queixa-se, ao final do seu texto, de que haverá um sacrifício grande para as classes menos favorecidas, enquanto privilegiados estarão protegidos nos interiores de suas casas.

Engraçado como quem defende a quebra da quarentena parte sempre do pressuposto de que a economia matará mais porque a sociedade possui um grande desequilíbrio que obriga o trabalhador a ceder aos riscos à sua saúde. Esquecem-se, no entanto, de fazer a pergunta de ouro: DE ONDE SURGE ESSE DESEQUILÍBRIO?

Essas pessoas acreditam mesmo que o ser humano se reuniu em uma sociedade estamental e segmentada por obra divina? Acreditam que existe uma ordem natural das coisas que põe pessoas, homo sapiens, seres da mesmíssima espécie, em condições de oposição nas quais um grupo, coincidentemente formado por pessoas brancas residentes na Avenida Vieira Souto, seria feito para mandar, e outro grupo, constituído por negros favelados, para obedecer.

Quando essas pessoas partem do pressuposto de que a sociedade é naturalmente desequilibrada, como se isso fosse um dado posto, deixam de considerar – e talvez seja onde resida a maior falha do seu argumento – de que as sociedades são construídas a partir de relações em que um grupo estabelece as regras para que todos os demais sigam.

E quando trazem essa suposta "fraqueza natural" da sociedade para o campo econômico, deixam de considerar, convenientemente, que o capitalismo burguês como o conhecemos não tem ainda trezentos anos. Embora para parte da sociedade pareça que seja assim desde o surgimento do homem no planeta. Não, gente. Não é. Todas as mazelas trazidas com o sistema econômico pelo qual uma pequena parcela da sociedade detém a propriedade privada dos meios de produção e exploram a classe trabalhadora, que compõem sua grande maioria, deixam de ser levadas em consideração por quem defende que "o sistema irá matar mais que o Covid-19".

Esse "sistema que irá matar mais" já mata mais. Mata diariamente. Mata exaustivamente. Mata de fome. Mata de doença. Mata por violência. O que deixam de considerar os defensores da quebra da quarentena é que o sistema já mata e o tal desequilíbrio da sociedade que faz com que "aqui seja a África e não a Europa" não se deu antes da Europa colonizar a África e fazer de lá seu fornecedor de riqueza. Riqueza roubada, expropriada, usurpada, pelo uso da força. É para esse sistema que o empresariado pretende que você volte. E se nele há desequilíbrio, não é por causa da disposição natural das pessoas, mas por causa das relações que se construíram quando uma parte do mundo dominou a outra.

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