Embora sempre tivesse defendido
o direito de o cidadão fazer uso da droga que quisesse, uma vez que se trata do
exercício da liberdade sobre seu próprio corpo, por muito tempo condenei aquele
que adquiria qualquer substância ilícita na mão de “vendedores”. Defendia o
direito do maconheiro de fumar seu cigarrinho, mas achava falta de consciência alimentar
o tráfico, financiando-o através da compra nas mãos de “bandidos”. Em minha visão limitada e pouco sistêmica, acreditava que, com
isto, acabavam promovendo a violência, através de uma guerra de facções pelo
melhor ponto de venda ou de uma guerra do tráfico contra a polícia que,
invariavelmente, acabava vitimando pessoas inocentes. “Quer fumar sua
maconha? Fume, mas plante a sua em vez de financiar a bandidagem”, era o
meu principal discurso sobre este tema.
Até começar a perceber que na
construção da nossa sociedade, a guerra ao tráfico é somente um pretexto para
manter estigmatizações e exclusões, através de um discurso moralizante sobre a
utilização de drogas. Comecei a me dar conta de que quem promove a violência é, na verdade, a política
pública que persegue o negro favelado – ontem criminalizando o samba e a
capoeira, hoje criminalizando a droga e amanhã talvez criminalizando o funk – e
não o contrário. Hoje enxergo que ser traficante é resistir (leia-se, ser
excluído social que, na ausência do Estado como garantidor de direitos sociais,
busca pelos próprios meios assegurar sua subsistência). E quando a gente se dá
conta de que a suposta "organização social" (organização para quem?) atende somente aos interesses de um grupo de privilegiados,
mantendo excluída parcela considerável da população no intuito de garantir mão
de obra barata para ser explorada pela burguesia, a gente se dá conta de que “financiar
o tráfico” é assegurar a resistência contra esse regime de opressão que marginaliza
e exclui.
E aí, eu me deparei com este
relato sobre um usuário que esteve pela primeira vez em uma boca de fumo em uma
favela carioca. Não sei se os nomes já estavam alterados. Na dúvida, alterei de
novo. Nomes e referências de lugares a fim de garantir o anonimato dos
envolvidos:
“Entrei na rua que o Manu falou e segui em frente.
Passei por uns rapazes de rádio na mão, dei dois passos e saí da favela
chegando a uma rua classe média do bairro vizinho. Achei estranho, já que o
Manu tinha falado que era só seguir em frente. Voltei. Parei perto dos garotos.
O mais velho não devia ter nem dezoito anos. Rádio na mão na entrada da
comunidade? Pensei "são eles". Não vi ninguém armado durante
todo o tempo em que estive lá (que também não foi muito tempo, mas mesmo
assim...).
Parei perto deles, cumprimentei, um deles estava com o
olho mais vermelho que a bandeira do PT. Eu não sabia como abordar o assunto. Não
sabia se era seguro usar expressões diretas, tipo "droga",
"maconha", etc...
– Cara, um amigo meu falou que se eu entrasse lá na
frente – falei, apontando a rua por onde eu entrei – e seguisse direto, iria sair
num lugar tipo uma feirinha...
Os caras deram um sorrisinho um com o outro e captaram
a mensagem.
– Quer comprar o que? Droga?
– Isso.
– Maconha, coca...?
– Maconha.
– Pô, mano, se quiser a gente vai lá pra você...
– Não precisa, não. A não ser que seja longe.
– Não é, não. É só virar ali naquele muro azul. Você
vai ver logo.
– Pô, valeu, mano! Brigadão!
Voltei a rua, pelo mesmo caminho por onde tinha entrado
e virei o tal muro. E é exatamente como o Manu descreveu. Uma feirinha. Em
escala bem menor, claro. Na verdade, é uma barraca com uns dez garotos, todos
com cara de menor de idade, sentados um ao lado do outro, com uma mesinha à
frente deles...
– Maconha aqui! Maconha aqui! – assim mesmo, gritando,
como se vendessem peixe ou tomate.
Todos te cercando e oferecendo o que tinham para
vender. Vi maconha e o que eu acho que eram pinos de cocaína.
Fiquei de papo com eles uns cinco minutos,
pechinchando. Perguntei se estavam juntos e eles disseram que não. Que eram
concorrência um do outro. Mas, parecia todo mundo amigo entre si, zoando-se
mutuamente, rindo da zoação.
– Aqui, meu chegado, essa aqui é melhor, não liga pra
ele não.
– Qual foi parceiro? Tá azedando minha venda. Olha
aqui, moral, essa aqui é melhor. Essa que ele vende é capim.
Achei graça. Fiquei comovido até. Um monte de coisa
passando na minha cabeça. Aqueles moleques, simpáticos, praticamente crianças,
fazendo atendimento melhor que em qualquer estabelecimento comercial do Rio de
Janeiro... senti vontade de dar um abraço em cada um deles. Eu já estava me
sentindo em casa. Durante aqueles poucos minutos, esqueci completamente que
estava fazendo algo ilícito. Parecia apenas que eu estava numa feira comprando
tempero e negociando. Assumi o controle da compra, falando mais alto que eles
para me fazer entender e para entendê-los também. Aquele tablete que eu pago R$
200,00 ao Anderson quando ele leva lá em casa, eles me ofereceram a R$ 150,00.
A cara não estava boa. Um dos garotos vendia pedaços pequenos a R$ 50,00 cada
um. Falei do tamanho, que era pequeno demais. E vi um tablete grossinho,
quadrado, equivalente à metade do que eu comprava de R$ 300,00 com o Anderson.
Custava 100,00.
Reconheci uma embalagem que eu já havia comprado com o Anderson
e falei "esse aqui eu já conheço, vou levar dos outros hoje". Na hora
falei com o moleque dos pedacinhos de R$ 50,00.
– Aí, irmãozinho, tá difícil pra vc... Olha o dele, tá
bem mais servido...
– Tá nada, tamanho é bobagem, importante é a qualidade.
Esse é menor, mas é melhor.
– Fazer o seguinte, pra ninguém ficar triste... Você aí,
dos tabletes grandes, me dá esse de R$ 100,00. Você, do pacotinho, me dá esse
de 50,00. Quando eu voltar aqui, eu vou fazendo rodízio, pegando de outros pra
poder ser justo com todo mundo.
Paguei e dei tchau pra todos e fui embora.
Cara! Que experiência foda! Foda mesmo, sabe? Humaniza
a figura do "traficante", sabe? Do aviãozinho, na verdade... Eu não vi
ali o “bandido”. Vi só um bando de adolescente vendendo coisas para garantirem
a sobrevivência. Foi tocante mesmo. Desconstruiu muito a minha noção de que
lidar com essas pessoas é lidar com bandidos armados e mal encarados, dispostos
a te matar a qualquer instante por qualquer motivo.
A propósito, acho que tomei prejuízo no de R$ 50,00.
Achei muito fraca, ruim. Não tem nem o cheiro direito. O pedaço maior, de
100,00, parece mais com a que a gente pega com o Anderson. A vontade de
abraçá-lo diminuiu depois que fumei o que ele ofereceu. Hahaha! Zoa.”
O relato correspondia
exatamente ao que penso sobre o assunto. Existe uma “conspiração” que vende uma
imagem do traficante como O Bandido Mais Perigoso do Mundo (alô, Jornal Nacional,
alô, Cidade Alerta!), a fim de reforçar em nós, que vivemos nossa bolha de
privilégio, um medo estigmatizante e excludente, fomentando a visão de que
pessoas possam ser separadas em “nós” e “eles”.
Não se trata de me iludir e
acreditar que não corro perigo. É óbvio que sei que há perigo, que posso ser
vítima de uma bala perdida, ou num assalto, disparada pelo tal “bandido”
querendo apenas o meu telefone celular. A questão é que, mesmo ciente destas
probabilidades, eu não consigo mais deixar de pensar que não é a pessoa que
disparou o gatilho que eu devo combater. É todo o sistema que obriga essa
pessoa a segurar uma arma e a me ver como inimigo por motivos similares aos
meus de vê-lo como inimigo: porque assim fui socializado. Quando uma pessoa,
chamada pela elite dominante de bandido – e por isso, em todas as vezes anteriores
neste texto que usei essa expressão, usei entre aspas, inclusive quando modifiquei
o relato acima transcrito – rouba, atira, mata, devo ter consciência de que a
violência que eventualmente possa me vitimar é promovida por um sistema
opressor, que estimula a desigualdade social. O tal “bandido” é só alguém que
ocupa um posto no qual ele foi jogado para ocupar quando o sistema lhe apontou
o dedo e lhe disse: “Você não é bem-vindo entre nós. Seu lugar não é na
sociedade de consumo. Seu lugar é na periferia, onde não há infraestrutura, não
há lazer, não há educação, não há saúde, não há emprego, não há nada. Nem sequer
esperança. Quer sobreviver? Dê seu jeito!”
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