quinta-feira, 8 de março de 2012

Era uma vez...

Morava distante, o que a obrigava diariamente a levantar cedo de sua cama para trabalhar. De origem pobre, chamava-se Cynderella da Silva, assim mesmo, como todos os YY e LL cuidadosamente escolhidos por seus pais, que acreditavam com isto, conferir algum status ao seu nome e imprimir alguma força em sua personalidade, o que a levariam longe. Mas, o mais longe que seu nome a levou foi ao seu mundo idílico, existente apenas em sua cabeça de leitora voraz de livros de bancas de revistas.

Era uma moça sem belezas e, por esta razão, jamais fora capaz de despertar paixões em quem quer que fosse. Romântica, devorava todos os volumes de “Sabrina”, “Júlia” e “Bianca” que lhe caíam nas mãos e, sempre que podia, comprava um exemplar. Era um luxo ao qual se permitia. “Gastar com cultura é investimento”, justificava-se. Acostumada à solidão que acompanha a fealdade e íntima dos títulos nos quais a palavra “amor” estava sempre presente, fantasiava inúmeras vidas, similares às que encontrava nas páginas da literatura barata que consumia.

Às vezes era uma belíssima serviçal de uma mulher rica, amargurada e cruel, cujo único herdeiro era um filho garboso e de bom coração. Todos viviam num castelo – que sempre ficava na Escócia (era um nome bonito para um lugar) – mas a rica proprietária transformava sua vida em um tormento, para horror do seu filho, que, num dado instante, descobria-se apaixonado pela pobre injustiçada, que invariavelmente se chamava Jennifer. Com a morte da mãe, o casamento do filho era o caminho inevitável e a ex-criada, agora transformada em uma requintada dama, vivia feliz para sempre ao lado do seu amor. Numa outra ocasião, era uma belíssima órfã, Jennifer, escocesa, que vendia flores, até que, num dia de chuva, um homem garboso de bom coração lhe aparecia e comprava todo o estoque. Era rico, claro. Mas, casado. E sua mulher, como não podia deixar de ser, amargurada e cruel... O final de todas as histórias era sempre o mesmo.

Ia, desta forma, conduzindo sua vida sem atrativos, perdendo-se em devaneios através dos quais conferia alguma graça às horas que gastava no trajeto de casa para o trabalho e às outras tantas que perdia no caminho inverso, em alguma realidade fantástica que tornava mais leve sua vida medíocre. Possuía uma existência insignificante e se dava conta disto quando punha um final em seus pensamentos. Sofria nestes momentos, como quem sofre a perda de uma vida, mas, tão logo era consumida pela dor de ser ela própria, engajava-se na construção de uma nova fantasia e, sem se aperceber de si mesma, enfrentava com resignação a massa informe que, todos os dias, a esmagava na entrada e na saída do metrô.

Naquele dia, como por inspiração divina, constatou, encantada, que poderia se transformar em uma personagem de conto de fadas. Não mais se enxergava na plataforma daquela estação lotada de pessoas que esbarravam umas nas outras como se atraídas por grandes ímãs ou por uma força gravitacional contra a qual era impossível lutar. Cynderella era ela mesma, mas sem os YY e LL, o que a tornava um pouco menos Gata Borralheira. O que antes era uma sirene de aviso, agora era um arauto que anunciava a aproximação, não de sua carruagem, pois queria mudar e ser mais moderna, mas do trem que a conduziria à felicidade eterna, com que se encerram todas as histórias que se iniciam com “era uma vez”.

Mais imaginativa que o habitual, subvertia o conto, adaptando-o ao seu próprio momento, igual a todos os outros de todos os dias. Ela não era mais uma assalariada atrasada para seu trabalho. Havia sido transformada por uma fada madrinha e era agora uma donzela que, trajando um longo vestido e um par de delicados sapatinhos que faziam ainda mais belos seus pés, encantava a todos com suas maneiras refinadas, sua beleza e sua elegância.

Depois de vivenciar todo o esplendor de um baile, repleto de convidados tão nobres quanto a condição que ela própria ostentava, estava atrasada sim, mas para adentrar o trem encantado, que, inexoravelmente, transformar-se-ia em abóbora quando a mágica chegasse ao fim.

Sentia-se tensa e buscava por espaços abertos dentre os convivas, que bailavam cada vez mais próximos uns dos outros, transformando-se em uma verdadeira barreira humana e impediam-na de se aproximar da gare onde tomaria seu luxuoso vagão...

Foi arrancada bruscamente do onírico cenário, quando se deu conta de que o metrô estava parado ali diante de seus olhos e a dança dos convidados adquiriu contornos de turba, dentro da qual empurravam-se uns aos outros, numa tentativa frenética e desesperada de entrarem no vagão apertado, que jamais comportaria de forma adequada todo aquele contingente que se movia como uma manada de animais em debandada. Empurrada para dentro, como um plâncton que flutua ao sabor das ondas, mas, incapaz de nadar, tampouco pode escolher o destino que pretende seguir, olhou para baixo e viu que estava com um dos pés descalços. Tentou voltar à plataforma.

Não conseguiu vencer o caos da multidão e antes mesmo que pudesse se aproximar das portas, o apressado aviso sonoro lhe dera a certeza de que estas se fechariam, encerrando-a para sempre naquele esquife coletivo. A composição partira... E então, sem nenhum glamour, Cynderella da Silva perdera seu sapatinho. Já passara há muito de sua hora, mas, mesmo assim, seu vagão não viraria abóbora. Seria sempre o mesmo metrô de todos os dias e isso era ainda mais triste. A vida nunca seria um conto de fadas... Sem que jamais algum príncipe a tivesse seguido, seu sapato deteriorou-se lentamente naquele trilho, enegrecido com a fuligem que se acumulou a cada trem que por ali passou.

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