segunda-feira, 26 de março de 2012

Oásis de Bethânia

Dá-se o nome de oásis às pequenas porções de terras férteis, próximas a nascentes de água, dentro de um deserto. Tratam-se de territórios extremamente valiosos por possibilitarem paradas estratégicas de caravanas e permitirem repouso e abastecimento das frotas que singram as imensidões áridas. São locais visados para a restauração das energias esvaídas de viajantes e animais combalidos pelas condições inóspitas do trajeto. Em sentido figurado, oásis significa renovação, prazer ou consolo diante de adversidades.

Renovação. Ultimamente tenho tocado com certa frequência neste tema. E nos mais variados contextos, dentre os quais incluo os debates inflamados sobre a carreira da Madonna, passando por uma necessidade de desenvolver estratégias de marketing para renovar a imagem da empresa onde sou empregado, chegando à análise dos últimos trabalhos de Maria Bethânia.

Dissidente dentre grande parcela dos fãs da Abelha Rainha, costumo dizer que o tempo foi generoso com sua voz, diferentemente do que aconteceu com inúmeros cantores e cantoras que sentiram em suas cordas vocais o peso dos anos. Os trabalhos antigos de Maria Bethânia me conquistaram, mas não tanto por sua voz intensa, porém não lapidada, muitas vezes evocando uma agressividade que julguei desnecessária (como se verifica no “Soneto de Fidelidade” gritado de “Rosa dos Ventos”, em 1971). Atualmente, sem perder a gravidade, seu timbre vem ganhando certa maciez que talvez desagrade aos que guardam como paradigma a crítica social entoada nos versos de “Carcará”.

Quando falamos sobre o atual momento na carreira de Dona Maria, ouço com bastante frequência uma crítica sobre a mesmice que pairou em seus trabalhos mais recentes, nos quais se tem verificado uma reiterada alternância entre violas caipiras e sonoridade sertaneja de um lado e referências africanas, candomblé e rodas de samba de outro. E, divergente que sou, acho um tanto injusta a permanência da crítica diante de álbuns modernos como o elegante “Tua” e o conceitual “Mar de Sophia”.

Agora, ouvindo o “Oásis de Bethânia”, cujo lançamento oficial está previsto para o próximo 1º de abril, deparei exatamente com isto: renovação. E não me refiro apenas à sonoridade, mas à própria temática das músicas. Com apenas 38 minutos, as dez faixas de “Oásis de Bethânia” cantam a transformação. A mudança dos rumos, os amores que se vão e a superação da dor. Como na Betânia bíblica, onde, de acordo com a lenda, Lázaro voltou da morte, o álbum, de um modo ou de outro, deixa claro que nada é eterno e que tudo pode ser revisto, revisitado e reformulado. É o reverso daquilo que está posto, descortinando novas existências, reais ou imaginárias. Os conselhos entoados na terceira faixa, “Vive”, composição de Djavan, “Desencana, meu amor/Tudo seu é muita dor/Vive!”, fazem crer ser possível reverter em alegria as vicissitudes, da mesma forma que “Lágrima”, faixa que abre o disco, traz a ilusão de ser plausível “fazer das lágrimas que choro estrelas a brilhar”.

Pesando contra a qualidade da obra, somente os desnecessários agudos que Dona Maria assume na execução da excelente “Carta de Amor”, composição de Paulo César Pinheiro, com texto de autoria da própria cantora, que passeou bravamente na seara da literatura. Além disso, há uma desaceleração à medida que as faixas se sucedem, dando a impressão de que o melhor foi aproveitado no começo, e deixado para o final, não exatamente o pior, porque o álbum não se encerra com uma música ruim, mas talvez o mais frio. Ocorre que as faixas que o abrem são mais comoventes, mais intensamente dramáticas, adequadas para o dedinho em riste, enquanto aos poucos, vão adquirindo uma levada jazzística, mais cool, o que não tira a qualidade da produção.

Com uma concepção minimalista, o disco valoriza sobretudo a voz da cantora, priorizando arranjos discretos e elegantes, como o bandolim de Hamilton de Holanda na já citada “Lágrima”, o sax de Marcelo Martins em “Casablanca” e o piano de Vítor Gonçalves em “Barulho”, estas duas, composições de Roque Ferreira, que também assina a melancólica “Fado”. Além disso, conta com um delicado repertório, escolhido pela própria Bethânia, que inclui faixas inéditas, bem como obras arraigadas no cancioneiro popular brasileiro, como “Calúnia”, de Paulo Soledade e Marino Pinto, eternizada na voz de Dalva de Oliveira, e “Velho Francisco”, belíssima música de Chico Buarque.

Melancólico, lento, às vezes arrastado, conjugando verbos no passado, evocando tempos que se foram e incertezas sobre o que virá, sem, no entanto, deixar esvair a esperança de que o futuro incerto se revelará bom, “Oásis de Bethânia” é um disco nostálgico, que colaciona a sonoridade daquela Maria de álbuns épicos, como “Mel”, “Álibi” e “Ciclo”. Reconfortante, é para ser ouvido à meia luz, com a gravata afrouxada no colarinho.

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