quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Um conto de verão

Ela entrou com o bebê no colo. Ele nunca foi um homem bom. Fazia um julgamento de si próprio desprovido de falsa modéstia e acreditava-se com o caráter um nível acima do da grande maioria dos indivíduos e nutria um notório desprezo contra aquilo que se chamava “raça humana”. Não sentia raiva do indivíduo ao seu lado, mas desprezava o grupo de todos os indivíduos que estavam ao seu lado e dentro do qual se inseria. Não se achava bom. Supunha, sim, que a raça humana é que estava a um passo atrás de si. “As pessoas são más”, dizia a si mesmo e, sem se acreditar bom, tinha apenas a impressão de que agia com o mínimo de postura com que deveriam agir todos. Pouco se importava com o maniqueísmo da espiritualidade, mas encontrava em Immanuel Kant um grande aliado. Ele sempre sonhou em mudar o mundo, embora nunca tivesse se dado ao trabalho de acreditar nesta possibilidade. E para não sucumbir por sua falta de fé, ele nunca deixou de desejar. Com tudo que podia. Se o fizesse, acabaria por atirar no próprio ouvido. Perdera a esperança que nem mesmo depositara no homem e desprezava-o por isto. Mesmo assim, tentava praticar boas ações, sempre repetindo para si mesmo: “não é mais que minha obrigação; é o mínimo que todos deveriam fazer.”

Era egoísta e por isto praticava o que diziam ser o bem, o que para ele era só mais uma faceta do seu próprio olhar sobre si mesmo por desejar estar em consonância com seus próprios valores e isto lhe dava prazer. Era a busca por este prazer que o fazia praticar um ato em prol da mesma humanidade da qual não se enxergava como membro, embora o fosse. Não acreditava em altruísmo despropositado, porque no âmago todos fazem algo visando à própria satisfação pessoal. Sua consciência nunca lhe pesou por pensar assim. Pelo contrário, sempre achou bom que existissem pessoas capazes de sentir o tal prazer de ver o bem do próximo e correrem atrás dele. Isso tornava o mundo um lugar um pouco menos insuportável.

Ao vê-la desajeitada segurando aquela criança, ele percebeu que ela era, evidentemente, evangélica. Lutara sempre consigo mesmo para abolir preconceitos e ideias pré fabricadas que costumeiramente conduziam à intolerância e, por esta razão, nunca gostou de conceitos limitantes, tais como “cara de crente”, “jeito de gay” ou “ar da bandido”... “Gay, crente e bandido não têm cara”, dizia. Mas, naquele momento, contra seus princípios, ele teve a certeza de que ela era evangélica, afinal, ela trajava uma sóbria camisa de manga longa e usava uma saia na altura do tornozelo, a despeito do calor escaldante que mordia a cidade com suas presas pontiagudas. Sem se dar conta de que ele mesmo trajava um terno, como trajam os pastores, ele teve a absoluta certeza de que ela era evangélica.

Naquele momento, ele não pensou na resistência que nutria contra crianças e na própria intolerância que tinha em relação a cristãos – mais um preconceito seu do qual ele tinha consciência e o qual tentava não alimentar. Apiedou-se dela. Não por bondade, que ele não era dado a este tipo de pieguice. Apiedou-se porque ele mesmo era arrogante. E viu apenas uma mulher em uma sociedade de homens, uma negra em uma sociedade de brancos e uma evangélica. E também por vê-la obrigar-se a segurar uma criança no colo enquanto lutava para entrar naquele vagão repleto daquilo que ele desprezava: gente.

Mas nada do seu desprezo passou por sua cabeça naquele momento. Não pensou no quão impaciente as crianças normalmente o tornam. Não pensou em todos os embates ideológicos que já travara com um cristão. E assim, sem pensar em nada, mecanicamente, levantou-se e ofereceu-lhe seu lugar. "Jesus lhe abençoe", ela disse, confirmando suas suspeitas. Somente então perguntou-se se ela teria aceitado a sua oferta e sentado no lugar que ele lhe cedera se soubesse que ele era ateu. Divertiu-se com este pensamento e sorriu. Fechou os olhos e prosseguiu sua viagem em pé.

Um comentário:

  1. Entre um e outro espectro que parecia a você o personagem, a todo tempo tomei-me como reagente nesse espaço.
    Era eu, e por outros instantes, ainda sou eu.

    Dam Evangelista.

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