Desde que ingressara no movimento, conciliava seu tempo entre os afazeres da universidade, seu estágio de meio turno e a construção da transformação do mundo. Sonhava com uma revolução sociocultural emancipatória que sabia, morreria sem ver. Quando fora posta na clandestinidade em razão do seu ativismo, trancou os estudos. Sonhava com o momento de poder retomá-los quando foi presa usando documentos falsos.
Quando a transmissão pirata sintonizou a câmera escondida na sala onde estava sendo torturada ela não sabia, não teria como ser avisada se o plano dera certo ou não. Só sabia que teria de tentar. Jamais teria oportunidade como aquela. Sempre fora elogiada por sua coragem. Ali, só sentia medo. Muito medo. Já estava debilitada física e mentalmente.
Na primeira coronhada cuspiu um dente com sangue e escarro.
— A professorinha acha que pode tudo, né? — usava um tom bastante sarcástico quando pronunciava "professorinha". Virou-se outro que amarrava os fios no pulso da moça – a gostosa aí fala bonito. Bora ouvir o que ela diz? Essa mulherada adora falar que macho não ouve? Que macho isso, que acho aquilo. Bora ouvir essa lindona! Molha ela, molha! Dessa vez com água mesmo, já que parece que ela não fica molhadinha com homem. — era um sujeito asqueroso, como são os policiais.
— Quero ver é gaguejar – disse o outro tocando pontas soltas de fios fazendo sair faisca.
Ninguém ali sabia, mas se tudo desse certo haveria um escândalo capaz de parar o pais. Agora a revolução viria. Todos finalmente conheceriam a verdade. As câmeras estavam ali, plantadas por um infiltrado que não tinha acesso à sua cela. Soube que o interrogatório seria ali e fez o que deu com os recursos que o grupo tinha. Tudo já havia sido pensado, os celulares ali eram proibidos por segurança. Ninguém telefonaria alertando para pararem a sessão quando a principal emissora estivesse transmitindo o horror. Até que alguém chegasse para avisar, o país inteiro teria visto uma sessão de tortura promovida pelo Estado Democrático televisionada ao vivo. A farsa do estado finalmente estaria desmontada. O dia seguinte, estariam todos nas ruas destruindo as instituições. A revolta seria inevitável. Seria o caos. Seria lindo.
Ela teria poucos segundos, sabia que perderia a consciência com os choques e não sabia mesmo se iria sobreviver.
— Fala mal do estado aí agora, professorinha. Pede aí democracia. Nós é a democracia agora. Fala pra gente quem a gente é. Pro-fes-so-ra!
Ela só conseguiu falar:
— Vocês são o Estado. E o Estado é quem está me torturando agora. O estado é só uma organização – gritou e se retorceu ao primeiro choque – é uma organização, uma forma de dispor as pessoas. Quando o povo diz o que deve ser, assim será. O povo não me quer torturada. – levou uma martelada na unha do polegar esquerdo e grunhiu feito um porco como os agentes queriam fazer com ela se sentisse. A desumanização começara com as violência sexuais desde que fora presa, dois dias antes.
— Ela quer ensinar a gente, a professora. Deixa ela falar — ele ria enquanto tocava as pontas dos fios estalando em faíscas.
— O estado é só uma forma. É todo mundo junto decidir como a sociedade vai funcionar. — um soco na barriga a fez vomitar.
— Joga água aí que eu vou fazer foguinho no fio! — ninguém naquela sala sabia, mas a sessão de tortura estava sendo televisionada por sinais que seu grupo conseguira aparelhar. Não duraria muito tempo.
Oficiais de todas as forças amadas davam telefonemas histéricos. A população estava atônita. As televisões em todas as casas estavam sintonizadas no mesmo canal. A farsa fora revelada e quando o exército conseguiu interceptar o sinal, ela já tinha perdido a consciência pendurada ensanguentada enquanto os agentes riam. Desta vez, não haveria justificativa para o país não parar de uma vez.
Na manhã seguinte as pessoas estupefatas, comentando sobre o absurdo que tinham visto. Esse era o estado a quem chamavam de democracia? O país viu uma moça jovem apanhar frente das TVs e não se falava em outra coisa. Os trens e metrôs lotados de gente indo para o trabalho, e aquele burburinho que não parava. Na portaria do prédio dois colegas se esbarraram em frente ao elevador.
— Você viu que horror?
— Eu vi, fiquei indignado! É inadmissível. Mas, é o que é, né?
Quando saíram do elevador, entraram para trabalhar. Despediram-se. Um deles sentou à mesa.
— Bom dia! — deu um telefonema, pediu um café, enquanto lia e-mails dos clientes pensando no relatório que teria que entregar às 10h daquela manhã. Sua agenda estava cheia. O dia prometia.
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