Eu gostaria de começar este texto dizendo que eu fico impressionado com a capacidade que as pessoas têm de serem escrotas. Mas, eu não fico. Como o poeta da antiguidade, Terêncio, não me surpreendo com nada que seja do ser humano. Conheci o pior de muita gente para que a essa altura eu fique surpreso com alguma coisa. Indignado sim, surpreso não mais.
Quando se trata de excluir pessoas, tudo é pretexto. Desta vez dei de cara com um vídeo que demoniza a linguagem neutra sob o argumento rasteiro de que sua utilização seria excludente de pessoas com dislexia, de deficientes visuais e deficientes auditivos. O argumento, se é que podemos chamar assim alguém tachar de "imbecilidade" a utilização de termos com o propósito de incluir pessoas não binárias na linguagem escrita ou falada, é o de que pessoas com dislexia, por sua dificuldade de aprendizado, concentração e leitura, teriam problemas de assimilar o conteúdo, da mesma forma que deficientes visuais na utilização de braille ou deficientes auditivos em libras ou em leitura labial.
O que verifico é um esforço imenso a que pessoas reacionárias se propõem na tentativa de justificar seus preconceitos. Partindo de uma premissa equivocada e muito limitada, que toma o idioma como algo estático e imutável, desconsideram que a língua falada e escrita sofre mudanças ao longo do tempo, em um processo decorrente de diversas influências culturais. Desse pressuposto, condenam a utilização de pronomes neutros, atribuindo-lhes adjetivos como "aberração", "ridículo", "desnecessário", dentre outros nada lisonjeiros.
Mas, piora: a outra premissa é a de que quem aprendeu braille ou leitura labial ficaria excluídE de um sistema linguístico que troca um A ou um O por um E ou um U. Na cabeça de quem vocifera contra o uso do pronome neutro, pessoas com dislexia, deficientes visuais ou auditivos são pessoas com limitações cognitivas que as tornam incapacitadas de aprenderem uma nova palavra dentro de uma língua que assimilou para se comunicar.
Tal argumento é capacitista. Subestima sua capacidade de aprendizado, tratando-as como estúpidas e incapazes de elaborar suas próprias reflexões acerca de novos termos incluídos no seu vocabulário. Tanto braille quanto libras têm sua origem em meados do século XIX, mas quando a pessoa tem por premissa a suposta imutabilidade de uma língua, está admitindo que essas formas de comunicação existem quase de maneira metafísica, como se sempre estivessem ali e como se desde sempre nunca sofreram qualquer tipo de alteração, inclusão ou exclusão de termos e regras.
O reacionário linguístico confunde a limitação que obriga uma pessoa deficiente a aprender todo um sistema de códigos, seus significados e significantes e a lógica que lhe é subjacente, com a limitação para incluir um termo novo dentro desse mesmo sistema. Ao fazer isso, o reacionário linguístico pressupõe que uma pessoa, por ser deficiente visual, auditiva ou por ser disléxica, é inapta para aprender uma nova palavra dentro do conjunto sistemático que utiliza para se comunicar.
O inusitado — e aqui falo apenas com base na minha observação, que é limitada ao que vejo ao meu redor e não tem propriedade científica — é que vejo frequentemente críticas à utilização de linguagem neutra, mas não vejo esse mesmo ativismo quando a suposta degeneração do idioma se dá pela inclusão de neologismos oriundos de palavras estrangeiras, que no nosso vernáculo viram até verbo. Quem fala mal de "elu/delu" ou de "todes" tem obrigação de falar mal de "deletar" e "resetar". Nunca vi. Como também nunca vi essas pessoas criticando a inclusão de termos como "telefone celular", "aplicativo", "WhatsApp", "redes sociais" ou outros que se hoje são tão populares na nossa comunicação diária, não eram há vinte anos. E por que um dia essas expressões não eram pronunciadas ou escritas, isso significa que devam ser abolidas hoje?
Enquanto não cancelarmos o português para voltarmos ao latim, não teremos moral alguma para chamarmos de "imbecilidade" a utilização de linguagem neutra. Antes, podemos chamar de imbecilidade a mentalidade colonizada de quem acredita que o idioma não pode ser dinâmico para incluir pessoas que uma sociedade discriminatória já se encarrega constantemente de eliminar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário