sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Resolução do Banco Central nº 2.682/1999 e a Lei Rouanet

Tem gente comparando a Resolução do Banco Central nº 2.682/1999, que dispõe sobre critérios de classificação das operações de crédito e regras para constituição de provisão para créditos de liquidação duvidosa, com a Lei de Incentivo à Cultura (Lei Rouanet) porque em ambos os casos a União concede isenção no imposto de renda se houver cumprimento de determinados requisitos no âmbito de cada uma das normas.

Isso porque a Resolução do Bacen permite que instituições financeiras que tenham previsão de não receber valores dos quais são credores possam provisioná-los de forma que sobre eles não incida a tributação devida à União. Foi o caso do Bradesco, que sendo credor de R$ 4,9 bilhões das Lojas Americanas, provisionou essa dívida como crédito de liquidação duvidosa, podendo ter isenção de 40% desse valor no imposto devido, o que dá R$ 1,8 bilhões de rombo nos cofres públicos. Sim, o Bradesco garante os lucros para seus acionistas e garante a socialização dos seus prejuízos para que sejam pagos por mim e por você.

Pois bem, por conta dessa manobra garantida por lei — nem preciso mais perguntar para quem o Estado burguês trabalha, preciso? — estão comparando a Resolução nº 2.682/1999 à Lei Rouanet, que permite o abatimento de até 40% do imposto de renda devido sobre os valores que empresas privadas utilizarem para patrocinar projetos culturais. Teve um jornal de idoneidade duvidosa, cujo nome não vou mencionar para não lhe dar publicidade gratuita, que chamou ambos os dispositivos normativos, a Resolução e a Lei, de Lei de Incentivo ao Calote.

Deixou no entanto, de estabelecer uma diferença crucial entre ambas: ao permitir que empresas privadas tenham abatimento em imposto, a Lei Rouanet gera um benefício público, uma vez que a contrapartida é o incentivo à produção cultural. É como se a União estivesse utilizando o valor de impostos para incentivar a cultura, valendo ressaltar que lazer e esporte são essenciais para manutenção da saúde mental das pessoas. Já a Resolução do Bacen garante unicamente os lucros astronômicos de instituições bancárias, que em nada contribuem para a sociedade, senão para aumentar a desigualdade social, com a concentração de renda nas mãos de pequenos grupos de poderosos, não sendo necessário explicar o quão nocivo isto é, já que o aumento de criminalidade está diretamente relacionado com a desigualdade social.

Cabem inúmeras críticas à Lei de Incentivo à Cultura, fato. Alguns dos mecanismos de captação podem ser revistos e critérios podem ser repensados para torná-la mais igualitária e fomentar incentivos aos pequenos artistas e limitar captação dos grandes. Mas, equipará-la à Resolução nº 2.682/1999, que não serve para nada mais senão para socializar prejuízos de empresas privadas, é de uma má-fé estarrecedora.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

Linguagem neutra, dislexia e a má vontade

Eu gostaria de começar este texto dizendo que eu fico impressionado com a capacidade que as pessoas têm de serem escrotas. Mas, eu não fico. Como o poeta da antiguidade, Terêncio, não me surpreendo com nada que seja do ser humano. Conheci o pior de muita gente para que a essa altura eu fique surpreso com alguma coisa. Indignado sim, surpreso não mais.

Quando se trata de excluir pessoas, tudo é pretexto. Desta vez dei de cara com um vídeo que demoniza a linguagem neutra sob o argumento rasteiro de que sua utilização seria excludente de pessoas com dislexia, de deficientes visuais e deficientes auditivos. O argumento, se é que podemos chamar assim alguém tachar de "imbecilidade" a utilização de termos com o propósito de incluir pessoas não binárias na linguagem escrita ou falada, é o de que pessoas com dislexia, por sua dificuldade de aprendizado, concentração e leitura, teriam problemas de assimilar o conteúdo, da mesma forma que deficientes visuais na utilização de braille ou deficientes auditivos em libras ou em leitura labial.

O que verifico é um esforço imenso a que pessoas reacionárias se propõem na tentativa de justificar seus preconceitos. Partindo de uma premissa equivocada e muito limitada, que toma o idioma como algo estático e imutável, desconsideram que a língua falada e escrita sofre mudanças ao longo do tempo, em um processo decorrente de diversas influências culturais. Desse pressuposto, condenam a utilização de pronomes neutros, atribuindo-lhes adjetivos como "aberração", "ridículo", "desnecessário", dentre outros nada lisonjeiros.

Mas, piora: a outra premissa é a de que quem aprendeu braille ou leitura labial ficaria excluídE de um sistema linguístico que troca um A ou um O por um E ou um U. Na cabeça de quem vocifera contra o uso do pronome neutro, pessoas com dislexia, deficientes visuais ou auditivos são pessoas com limitações cognitivas que as tornam incapacitadas de aprenderem uma nova palavra dentro de uma língua que assimilou para se comunicar.

Tal argumento é capacitista. Subestima sua capacidade de aprendizado, tratando-as como estúpidas e incapazes de elaborar suas próprias reflexões acerca de novos termos incluídos no seu vocabulário. Tanto braille quanto libras têm sua origem em meados do século XIX, mas quando a pessoa tem por premissa a suposta imutabilidade de uma língua, está admitindo que essas formas de comunicação existem quase de maneira metafísica, como se sempre estivessem ali e como se desde sempre nunca sofreram qualquer tipo de alteração, inclusão ou exclusão de termos e regras.

O reacionário linguístico confunde a limitação que obriga uma pessoa deficiente a aprender todo um sistema de códigos, seus significados e significantes e a lógica que lhe é subjacente, com a limitação para incluir um termo novo dentro desse mesmo sistema. Ao fazer isso, o reacionário linguístico pressupõe que uma pessoa, por ser deficiente visual, auditiva ou por ser disléxica, é inapta para aprender uma nova palavra dentro do conjunto sistemático que utiliza para se comunicar.

O inusitado — e aqui falo apenas com base na minha observação, que é limitada ao que vejo ao meu redor e não tem propriedade científica — é que vejo frequentemente críticas à utilização de linguagem neutra, mas não vejo esse mesmo ativismo quando a suposta degeneração do idioma se dá pela inclusão de neologismos oriundos de palavras estrangeiras, que no nosso vernáculo viram até verbo. Quem fala mal de "elu/delu" ou de "todes" tem obrigação de falar mal de "deletar" e "resetar". Nunca vi. Como também nunca vi essas pessoas criticando a inclusão de termos como "telefone celular", "aplicativo", "WhatsApp", "redes sociais" ou outros que se hoje são tão populares na nossa comunicação diária, não eram há vinte anos. E por que um dia essas expressões não eram pronunciadas ou escritas, isso significa que devam ser abolidas hoje?

Enquanto não cancelarmos o português para voltarmos ao latim, não teremos moral alguma para chamarmos de "imbecilidade" a utilização de linguagem neutra. Antes, podemos chamar de imbecilidade a mentalidade colonizada de quem acredita que o idioma não pode ser dinâmico para incluir pessoas que uma sociedade discriminatória já se encarrega constantemente de eliminar.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

Papo para você, lulista

ATENÇÃO LULISTAS, HOJE O PAPO É COM VOCÊS.

Sim, falo para vocês que são da turma "o amor venceu" e defendem toda e qualquer política do Lula, a qualquer custo, porque supostamente tudo que ele faz é válido, lindo, impecável e não pode ser contrariado, porque nunca é o momento de cobrar nada. É para você mesmo que eu estou falando agora.

Vamos esquecer por um momento que sou comunista e supor que eu acredito nas instituições do estado burguês. Só por um momento vamos assumir que estamos todos felizes com a eleição do Lula e acreditamos realmente que tudo vai mudar a partir de então. No que nos baseamos para pensar nisso? Estamos pelo menos prestando atenção no que o Lula está falando? Vocês que baixam a cabeça e dizem amém para qualquer coisa que o presidente diga ou faça estão mesmo aprovando suas falas, suas atitudes?

Pergunto isso porque tenho acompanhado alguns dos discursos do presidente e venho observando que constantemente ele repete a frase "a população precisa cobrar" e algumas das suas variantes, como "é necessário que o povo se mobilize".

Reforço aqui que não estou sequer pensando em revolução, e sim dentro da lógica positivista do estado democrático de direitos, assumindo para fins didáticos que o problema do Brasil é que não sabemos votar e que faltam políticos sérios dentro das instituições. Este é meu ponto de partida e estou pensando aqui no que temos para hoje.

Vocês têm ouvido o presidente que nós elegemos praticamente implorar para que haja mobilização popular? Vocês sabem o que isto significa? Significa que o presidente da república sozinho não pode muita coisa, por mais que tenha boa vontade e intenção de fazer muito. É por isso que ele nos pede o tempo inteiro para que façamos pressão para haver aumento de salário mínimo, revogação da reforma trabalhista, reforma tributária com isenção de imposto de renda para quem tem renda até cinco mil reais, dentre outras medidas.

Nossa democracia é construída pela divisão dos poderes em executivo, legislativo e judiciário. Os dois primeiros por via eleitoral. Por isso votamos no presidente da república, chefe do poder executivo, e nos deputados e senadores, que compõem o poder de criar as leis. Por isso, nem sempre o presidente consegue colocar em prática suas promessas, uma vez que os representantes do poder legislativo nem sempre estão de acordo com as propostas do executivo. É por isso que o presidente pede que façamos pressão. Não adianta nada você votar e esperar que a partir da eleição, o seu candidato eleito resolva tudo sozinho. Ele precisa de você.

Quando as leis são pensadas em prejuízo da população, precisamos pressionar para que não sejam aprovadas nas votações dentro das casas legislativas, Câmara e Senado. Da mesma forma, medidas propostas pelo presidente da república, mesmo quando nos favorecem, nem sempre são aprovadas pelos deputados e senadores.

Pensando dentro da lógica do estado democrático de direitos, todo poder emana do povo. E os políticos sabem disso, por isso puxam nosso saco para ganhar nosso voto. Se não os pressionamos a fazerem o que queremos, tiramos nosso voto e ele não se elege na próxima votação.

Quando o Lula pede que façamos pressão para vermos as medidas que queremos serem implantadas, o recado que ele passa é o de que, se fizermos pressão e nos mobilizarmos, os deputados e senadores verão o que o povo efetivamente quer e não nos contrariarão, já que sabem que, agindo contra nosso interesse, não terão nossos votos.

Portanto, amiguinhos lulistas, escutem o seu presidente e retribuam o tanto que vocês acham que ele está fazendo por nós e pelo país. Ele não pede muito, pede apenas que nós o apoiemos fazendo pressão e cobrando dos demais políticos por aquilo que queremos. Então, não seja gado, o Lula não precisa de puxa-sacos, ele precisa de nós para mostrarmos ao Congresso Nacional que as medidas que queremos devem ser cumpridas. Já que você o ama assim, tão incondicionalmente, faça o que ele pede: cobre e pressione.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

Pequena Crônica Ficcional que Poderia Ter Sido Real

PEQUENA CRÔNICA FICCIONAL QUE PODERIA TER SIDO REAL

— Como advogado, já atuei para um banco, em ações de cobrança, penhora, arresto, sequestro de bens para pagamento de dívidas. Para um comunista, não é nada louvável saber que minha fonte de renda era cobrar dinheiro de gente pobre endividada, ainda mais quando os motivos desse endividamento é justamente a manutenção de um sistema que privilegia os bancos, como aquele que um dia fui obrigado a defender. Sim, se você se forma em direito, em algum momento, poderá ter que defender bandido. A gente precisa pagar conta, colocar comida no prato e garantir um cantinho para dormir. Não tomo para mim a responsabilidade por viver num sistema que me obriga a ser um babaca. Prestei serviço a um grande conglomerado econômico, atuando diretamente a serviço dos burgueses, proprietários daquela instituição financeira para quem eu vendia minha força de trabalho em troca de um pagamento não correspondente à quantidade de trabalho que eu exercia. Eu era um proletário explorado, fudido, como nunca deixei de ser. Minha consciência, no entanto, me obrigava a tomar certas medidas que pudessem, de alguma forma, atrapalhar o bom funcionamento desse sistema de exploração. Obviamente, dentro dos limites possíveis na ínfima posição que eu ocupava na minha área de atuação. Algumas vezes, informei propositalmente o endereço errado da parte ré nas ações para que, quando fosse procurada por oficiais de justiça não fosse localizada e o processo ficasse parado, atrasado. Era pouco, muito pouco, quase nada. Mas, era o que dava para fazer. Não faria diferença para o sistema, mas faria diferença para aquela família atolada em dívidas com o banco.

— Mas, isso não é antiético, Doutor? O Estatuto da Advocacia diz que o advogado deve conjugar todos os esforços para atuar de forma mais eficiente possível para atender aos interesses do sei cliente!

— É por isso que estou falando para você e não para meu cliente ou para a OAB. Mas, cá para nós, o que você me diz sobre ter de usar uma ferramenta que deveria ser uma garantia de paz social, como é o Direito, para penhorar a casa de uma família? Não é antiético deixar pessoas sem moradia para pagar uma instituição que já é bilionária e que lucra a partir do endividamento dessas pessoas? Não é antiético cobrar, mesmo sabendo que essas pessoas foram obrigadas a utilizarem um empréstimo bancário exatamente porque são exploradas por causa de uma estrutura que transforma tudo em mercadoria, inclusive suas vidas, impedindo-as de terem uma vida plena? E sem "doutor", por favor.

— Mas, está na lei e a lei nem sempre é justa.

— E o que você quer para o mundo? Que se cumpram leis que não atendem às reais necessidades das pessoas ou que se faça justiça? Quando a lei é injusta a subversão passa a ser um dever moral.

— Mas, não sou eu quem decide o que é ou não é justo.

— E aí, por causa disso, você prefere deixar que uma burguesia, cujos interesses são diametralmente opostos aos seus, decida por você? O Estado é um campo de disputa no qual se trava uma guerra: a luta de classes. Hoje quem detém o Estado é a burguesia, a mesma do banco, a mesma que cria a lei que favorece o banco, a mesma que toma a casa de quem deve ao banco... E quem permite isso? O Direito, que é emanado deste mesmo Estado a serviço da burguesia e que atua através da lei criada por representantes políticos da burguesia, aplica por juristas a serviço da burguesia. Esse Direito deveria deixar de existir...

— O Direito é uma Ciência!

— Balela liberal! O Direito é um instrumento de controle nas mãos da burguesia. É por isso que você trabalha feito um cachorro e nunca tem tempo de viver a sua vida. É o Direito burguês quem diz quanto tempo você deve passar trabalhando e quanto deve receber por isso. Para nós trabalhadores não serve para nada. Por isso, também é um campo a ser disputado. Quando a classe trabalhadora vencer a luta de classes e tomarmos para nós o Estado, aí faremos o nosso Direito.

domingo, 5 de fevereiro de 2023

Sou comunista, não franciscano

Quando falo que sou comunista sempre aparece um idiota para dizer "se você é comunista, por que não doa tudo que é seu?" E eu sempre respondo que se eu doar tudo e ele não, não haverá comunismo. Normalmente, ainda completo com a frase "sou comunista, não franciscano".

O grande entrave no pensamento dominante que faz as pessoas fecharem os olhos às soluções coletivas como alternativas para transformação do mundo é justamente achar que tudo é sobre o indivíduo. Doe você. Faça você. Lute você. Mude você. Cuide você.

Para que o comunismo possa se consolidar enquanto organização da sociedade, é necessário antes transformar as mentes das pessoas para que entendam que as coisas não giram apenas em redor dos seus umbigos.

Tenho amigos que falam que não são gordofóbicos, mas que não se sentem bonitos quando engordam. "Não é gordofobia porque estou falando de mim", dizem. Como pessoas negras que juram não serem racistas quando alisam os próprios cabelos. "Não é racismo, é gosto, é sobre mim, não discrimino ninguém". E os gays homofóbicos que juram que não são homofóbicos, justamente porque, como são gays, acham que não seria possível agir com uma postura atentatória contra a própria existência.

Tudo isso só reforça a problemática da individualização da pessoa enquanto processo desagregador da coletividade. Inclusive, do ponto de vista moral, que limita como o indivíduo deve ou não se comportar, com base em valores meramente pessoais. Dane-se se você não se sente racista porque não está sendo babaca com terceiros, mas está apenas alisando seu próprio cabelo. O racismo que apontamos dentro de você não é sobre a sua conduta compassiva com o cabelo crespo de alguém, mas que lhe permite dispor do seu próprio como você bem quiser por ser o seu cabelo. O racismo dentro de você é justamente o que lhe move a intolerar sua própria forma de ser, mas para o qual você permite ser condescendente por acreditar que partindo de si para si, não há mal algum nisso. Não é sobre você agir correta ou incorretamente. É sobre como nosso comportamento naturalizado pelo pensamento dominante nos conduz a posturas que discriminam e privilegiam, independentemente da nossa vontade pessoal.

Comunismo não é sobre eu ter ou não ter bens, sobre ser bonzinho e dar tudo que tenho para os outros, abdicando do meu luxo ou meu capricho para provar que sou superior a você. Comunismo é sobre um grupo de pessoas viver de forma coesa através de uma teia colaborativa respeitadora da subjetividade de cada um dos seus membros, tendo como ponto de partida a noção de que todos têm o mesmo direito à vida plena. Desta forma, qualquer movimento tendente a desprezar a necessidade de existência plena de cada um deve ser rechaçado com firmeza.

É por isso que minha doação e sua caridade não são comunismo. São ações individuais que não mudam em nada a estrutura social. Sou comunista e não faço voto de pobreza. Meus votos são para que pobreza deixe de ser algo sobre a qual se pensar, por se tornar obsoleta quando a preocupação de cada será viver em função de todos.