Estava solteiro há pouco tempo. Tinha acabado de sair de uma relação parasitária e não
tinha maiores pretensões em relação a outras pessoas. Estava me divertindo (bastante)
com minha solteirice. Até que num dia chuvoso de final do inverno, uma foto com
um sorriso encantador me observou num aplicativo de pegação.
As afinidades vieram imediatamente. Claro, tínhamos o mesmo signo e o mesmo ascendente, como não haveria de ser?! Ainda bem que nunca acreditei em astrologia. Os papos tinham tão reiteradamente a construção “eu...” respondida por “eu também” que parecia que eu conversava comigo mesmo.
As afinidades vieram imediatamente. Claro, tínhamos o mesmo signo e o mesmo ascendente, como não haveria de ser?! Ainda bem que nunca acreditei em astrologia. Os papos tinham tão reiteradamente a construção “eu...” respondida por “eu também” que parecia que eu conversava comigo mesmo.
Seguimos o protocolo típico dos
encontros oriundos de aplicativos. E que noite incrível eu tive! Vimos o dia
amanhecer, entremeados de conversa incessante, carinhos, carícias e sexo.
Gozamos três ou quatro vezes, rimos outras tantas. No dia seguinte, eu tinha
certeza de que tinha encontrado alguém diferente de tudo que eu já tinha visto
antes. Certeza que se mantém ainda hoje.
Começamos a nos ver diariamente,
suas inclinações políticas - de acordo com o que dizia, que depois vim descobrir que não eram tão condizentes com o que praticava - eram similares às minhas, e eu adorava ouvi-lo falar. E quando uma noite saímos do seu quarto no meio da madrugada, para a rua,
para confrontarmos dois policiais que estavam achacando um garoto negro da vizinhança, meu encantamento chegou ao ápice.
Minha admiração só crescia e naquele dia eu adquiri uma convicção: era ele que
eu queria para a vida.
Não poderia ser mais perfeito, eu
morava sozinho, ele morava com uma amiga feminista, fã do Belchior e da Frida
Khalo, por quem me encantei de cara. Os jantares em sua casa eram sempre
divertidíssimos e nem mesmo seu cigarro me incomodava. Um dia em minha casa, um
dia na deles. Uma noite romântica só de nós dois, uma noite divertida para nós
três, e assim os dias iam seguindo maravilhosos.
Quem me via dizia que eu
irradiava felicidade. Transbordava. Tudo transbordava! Da forma mais intensa possível.
Até que um dia, aquele cara que se dizia defensor dos direitos humanos mostrou
que andava com um canivete dobrável na carteira e um soco inglês no bolso.
Fiquei chocado, mas, não dei tanta bola para isto. “Claro que eu não pretendo
usar nada disso, mas a cidade anda violenta, você sabe, eu não permitiria
colocar você em risco”.
Com o tempo ele começou a se queixar
de sua amiga de casa. As despesas pesavam em seu bolso, enquanto ela, funcionária
pública desse Estado falido, deixava de receber salário e atrasava as contas. “Vai
com calma, vocês são amigos, ela não tem culpa do que está rolando com os
pagamentos. Além disso, foi ela quem segurou sua barra pesada quando você se
internou no hospital durante todos aqueles dias”.
Eu até sentia uma invejinha da amizade
entre eles. Quando estávamos reunidos, ouvia suas histórias de perrengues e
farras que viveram juntos e achava o máximo quando eles se chamavam de “marido
e marida”. Se eu tinha ciúmes? Jamais. Eu apenas queria fazer parte daquilo
tudo. Queria ter aquilo para sempre. Ele dizia que também queria. Queria tanto
que me propôs casamento.
Naquele momento, senti que
poderíamos estar em descompasso. Eu nunca quis casar. Já tinha experimentado a sensação e tinha odiado. Nunca gostei de dividir meu espaço.
Nunca quis submeter alguém às minhas manias. Recuei. A relação estremeceu um
pouco. Até que argumentos objetivos me convenceram: ele precisava comprovar renda
para obter financiamento e comprar seu carro, eu precisava ser incluído como
dependente no seu plano de saúde empresarial. Mas, eu lidaria com sua bagunça e
desorganização? Ele insistia que a bagunça na sua casa não era dele, mas de sua
amiga. Eu sabia que era de ambos. Dormir noites alternadas em seu quarto me
fazia ver sua tendência para acumular quinquilharias em todos os cantos. Não
quis casar, mas aceitei. “Pura formalidade, ok? Só no papel mesmo, apenas para conseguirmos
seu financiamento e meu plano de saúde. Não quero abrir mão do meu cantinho.”
Para encurtar o papo, o casamento
não serviu para uma coisa, nem para outra. Não compusemos renda e ele conseguiu
o carro por meio de empréstimo, antes mesmo de assinarmos os papeis. Foi
despedido da empresa dias depois e não pude usufruir do seu plano de saúde. Comecei
a ficar incomodado quando todas as vezes em que saíamos de carro, ele só
lembrava de trancá-lo no momento em que via “alguém suspeito” na rua.
O cara das pautas esquerdistas,
defensor do feminismo e que lutava contra o racismo olhava para os lados e travava
as portas. “Sujeito esquisito aquele, não é?” “Não. Negro, você quer dizer...”. Ele se mostrava ofendido. “Você fala como se eu fosse racista!”. Em sua
cabeça, não era. Comecei a perceber sua hipersensibilidade todas as vezes em que
se via contrariado. Seus pés nunca viam um calçado e mesmo quando transitava
onde cães urinavam, sentia-se ofendido quando eu lhe dizia que estavam
sujos. Eu era o neurótico da limpeza. Claro, é assim que começa o discurso abusivo.
A primeira briga séria aconteceu
quando realizamos nossa mudança. Eu estava indo morar em “sua casa” e sua amiga
– que a esta altura também já era minha – iria morar na “minha”. Tudo
ocorreu em paralelo: sua relação com ela estremecera por causa de dinheiro. Fiquei
indignado quando ele destratou sua mãe, levando-lhe as questões que vinha
passando e fazendo-lhe exigências descabidas. “Ela não é culpada!” “Meus amigos,
eu conheço.”
Meu pé estava fraturado e quando eu tentei subir uma escada para averiguar um problema na calha, ele
gritou. De forma absurdamente grosseira e constrangedora. “Desça! Está maluco?!”
Quando tentei protestar, não consegui terminar a frase, por umas três vezes. “Não
vou subir, estou apenas testando...” “Desça!”
Tivemos uma discussão
muito tensa, em altos brados. Ao final, ele se desculpou. Queria apenas me proteger. Nunca gostei
de ser protegido, mas era diferente com ele. Cuidávamos um do outro. Eu acalmava
seus anseios atormentados de pessoa em crise familiar. Ele queria me colocar
numa redoma de vidro. Eu ficava irritado, pois nunca achei que servisse para ser cuidado. Mas, em seguida dizia a mim mesmo que precisava ser
menos independente e mais tolerante. Claro que, para ele, a culpa era minha. Mas, eu não me
sentia culpado. Depois de lidar com outras pessoas abusivas, já tinha
experiência suficiente para reconhecer um discurso manipulador. Mas, no fim, eu começava a me questionar que aquele fato talvez pudesse ser um evento isolado, relevava e seguia adiante.
As questões com sua amiga tomaram
proporções gigantescas e me arrependo de não ter sido mais incisivo quando comprei
a briga. “Você acabou de conhecê-la. Eu sei com quem estou lidando”. Foi seu
argumento que me manteve passivo nesse embate. Depois de ter sido humilhada por ele de
diversas formas, ela decidiu não dar continuidade à nossa dança das cadeiras,
saiu da “minha casa”, obrigando-me a devolvê-la à imobiliária e a custear os ônus
advindos da quebra de contrato. “Essa é a pessoa que você tentou defender.
Deixou-nos na mão!” Se, por um lado fiquei chateado com ela, por outro era impossível
pensar que pudesse ter feito diferente. Passou. Assumi os riscos do meu ato de
morar junto, vendi mobília, paguei multa contratual e parti para “sua casa”,
agora “nossa casa.”
Nunca me senti em casa ali
naquele espaço que estava usurpando, mas arquei com todas as contas, assumi a parte que me cabia, e seguimos em frente. Tivemos alguns dias felizes, claro. Eu estava
revendo meus conceitos, tentando não ser tão inflexível com a ideia de casar.
Quando minha insatisfação aflorava e eu sentia falta de morar sozinho, pensava
que precisava ser mais tolerante. Às vezes conseguia conversar e expor. Na
maioria das vezes, ele tentava me manipular, distorcendo meu discurso e colocando-se na posição de vítima. “É tão insuportável assim viver
comigo?” Felizmente, não funcionava. Conheço chantagem emocional. Eu desistia da argumentação e seguia calado. Comecei a
ouvir sua queixa de que eu não conversava mais. Aos poucos, fui perdendo a vontade de falar. Só falo para quem se dispõe a ouvir. Quando não, sigo mudo.
Às vezes, agarrava-me cheio de carinho
e tesão. Eu retribuía até uma hora em que me sentia sufocado por estar imobilizado
no meio dos seus braços e pedia para soltar. Ele ria e mordia minha orelha. Eu
insistia para me soltar, e sua língua começava a invadir meu ouvido. Eu sentia cócegas e pedia
novamente para me soltar. Ele apenas ria e me segurava com mais força. Até que eu me irritava e o empurrava. Ele se dizia magoado e tentava
me incutir culpa por não ser tolerante com “suas brincadeiras” e “seu carinho”.
Isso aconteceu algumas vezes. Mas não, eu não me sentia culpado. Passei a sentir incômodo por enxergar ali à minha frente uma pessoa que agia da mesma
forma que os homens abusivos que ele tanto criticava, ato a que chamo nada carinhosamente de hipocrisia. “Precisava me empurrar?
Você foi rude” “Não! Você que não prestou atenção quando pedi para me soltar.”
Fomos morar juntos no começo do
verão. Foi o pontapé inicial para a paixão acabar. Casamento é o contrato pelo
qual duas pessoas que se amam decidem ser a hora de começarem a se odiar. Ali
foi o começo do fim. A paixão acabou na mesma velocidade com que começou. Durou quatro
meses. O casamento ainda perdurou por outros cinco. Quando acabou eu tinha
certeza de que ele era diferente de tudo que eu tinha conhecido.
O dia a dia revelou uma pessoa
incapaz de ser contrariada, filho mimado de uma mãe que não o aceitou quando
começou a revelar quem era, criado - de acordo consigo mesmo - por uma família de
pessoas sórdidas, manipulador de discurso, pessoa de dois pesos e duas medidas.
Minha admiração já vinha se perdendo a cada vez em que estacionava em vaga de deficiente
físico, em vaga de idoso, em porta de garagem de vizinho, avançava sinal
vermelho, ameaçava atropelar “aqueles trombadinhas” (todos negros, claro).
Perdeu-se de vez quando, retaliado por seus atos, quis ter razão e não aceitou ser criticado. "Então o vizinho grita comigo e o errado sou sou eu?" "Claro, você estacionou na porta de sua garagem!" "Entendi, não posso nem contar com você para me defender."
Novamente eu não conseguia terminar uma frase que começava, porque ele sempre interrompia com algum tipo de presunção, encerrando em voz mais alta o que eu estava tentando dizer, e minha paciência estava esgotada para conversar com quem não queria ouvir.
Novamente eu não conseguia terminar uma frase que começava, porque ele sempre interrompia com algum tipo de presunção, encerrando em voz mais alta o que eu estava tentando dizer, e minha paciência estava esgotada para conversar com quem não queria ouvir.
“Você está sem emprego. Por que
não tenta...”
“Não vou fazer nada agora, para
receber um salário de merda!”
“Você está doente, procure um
consultório para...”
“Não vou ao médico para me passar
o mesmo medicamento de sempre!”
“Por que não devolve logo os
óculos do...”
“Ele largou aqui porque quis! Que
venha buscar!”
Em um intervalo de uma semana, quando decidi não mais lavar ao
amanhecer seus copos sujos deixados na pia durante a madrugada, depois que eu
deixava a cozinha limpa para dormir, acusou-me de egoísmo. Quando parei de
lavar suas roupas com as minhas porque mandou-me - de forma rude - não misturar os tecidos,
acusou-me de egoísmo. Quando fui de bicicleta comprar medicamentos de que ele necessitava
para tratar uma doença de pele e molhei sua carteira de identidade por causa
da transpiração da garrafa d’água, em vez de “obrigado”, ouvi uma voz irritada
aos brados acusando-me de quase ter estragado seu documento. Quando esvaziei
seu cinzeiro na lixeira, ouvi uma ironia por ter jogado no lixo um resto de seu
cigarro de maconha ou de alface, sei lá, que estava camuflado no meio das
cinzas. Quando tomei seu último comprimido por engano, pensando ser o meu, o
tempo fechou e novamente ouvi grosserias. Explodi, rebatendo à altura por tudo o que vinha
acumulando calado, porque, coitado, ele-estava-passando-pelo-estresse-do-desemprego-pelo-estresse-de-parar-de-fumar-pelo-estresse-de-ter-sido-multado-e-eu-deveria-ter-sido-mais-compreensivo,
e disse-lhe que estava de saco cheio de sua estupidez.
Mas, depois de perceber a
incoerência do seu discurso e depois de tentar conversar algumas tantas vezes sem
conseguir falar, depois de verificar sua habilidade no gaslighting e tentar manipular as discussões, minha vontade de
dialogar caiu a zero. Quando, ao fim de uma semana com a cara amarrada, estourei depois que tentou me impedir de receber visita de amigos, como se a casa fosse sua. Soltei, com plena certeza
do que eu estava sentindo, “eu não quero mais continuar nessa droga de relação!”
E quatro meses depois, chegou ao
fim uma relação abusiva. Com alguém diferente de todo mundo com quem já lidei.
Na discussão da madrugada, tentou me colocar para fora de “sua casa”. Num
ataque de histeria tirou minhas roupas do guarda-roupas e jogou no chão. Quando
se deu conta do que havia feito, devolveu ao lugar. Quando disse que tomaria
minha chave de casa, rebati dizendo-lhe que não faria comigo nada parecido com
o que havia feito com sua então amiga de casa, e que, se ousasse tentar, eu
entraria com a polícia arrombando o portão, já que aquele lugar – gostasse ele ou não – também era meu por direito e que ele teria de me engolir.
Depois do fim, tornou-se uma pessoa ainda mais intratável. Passou a fazer questão de mesquinharias, como "como vamos dividir a carne que está no congelador?". Definitivamente eu não discutiria por causa de comida ou da quantidade de lâmpadas que eu tinha levado para a casa. Houve um tempo em que eu me importava com seu julgamento sobre mim. Agora não mais. À minha frente eu enxergava exatamente a pessoa que ele dizia que sua mãe era. E compreendia, então, seu sentimento de asco quando a viu pela última vez. Eu só queria sair daquela casa, não mais ouvir sua voz, não mais olhar sua cara.
Ainda temos questões praticas pendentes para tratar. Há um contrato de união estável que precisa ser desfeito e contas em comum para serem rateadas. Depois que isto for resolvido, só quero esquecer que um dia o conheci. E manterei minhas convicções acerca da minha ideia de casamento. Aprendi a lição.
Depois do fim, tornou-se uma pessoa ainda mais intratável. Passou a fazer questão de mesquinharias, como "como vamos dividir a carne que está no congelador?". Definitivamente eu não discutiria por causa de comida ou da quantidade de lâmpadas que eu tinha levado para a casa. Houve um tempo em que eu me importava com seu julgamento sobre mim. Agora não mais. À minha frente eu enxergava exatamente a pessoa que ele dizia que sua mãe era. E compreendia, então, seu sentimento de asco quando a viu pela última vez. Eu só queria sair daquela casa, não mais ouvir sua voz, não mais olhar sua cara.
Ainda temos questões praticas pendentes para tratar. Há um contrato de união estável que precisa ser desfeito e contas em comum para serem rateadas. Depois que isto for resolvido, só quero esquecer que um dia o conheci. E manterei minhas convicções acerca da minha ideia de casamento. Aprendi a lição.
Por que toda essa história? Para
mostrar que não vale a pena abrir mão dos seus valores e dos seus sonhos por
causa de ninguém. Existe um limite entre ceder pela harmonia de uma relação e
anular quem você realmente é. Nunca se anule. Nunca! Do contrário, vampiros
sugadores poderão se apossar da sua paz de espírito.
Nossa, chocadíssimo com tudo isso! Nunca imaginei que isso fosse acontecer :'(
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