sábado, 7 de maio de 2011

Liza

Sempre fico tenso quando tenho que lhe dar injeções. Sou um pai de coração mole, e após distribuir algumas chineladas, acabo sempre com um remorso monstruoso... E penso que seus dentes nem fariam estrago. É uma mentirinha que acabo contando pra mim mesmo, mas que sempre me deixa com a consciência pesada após uns gritos, mas me traz um alívio imenso quando penso nos próximos dez, doze anos em sua companhia...
Permitam-me apresentá-la. Seu nome é Liza (fala-se “Laiza”, como a Minelli). É uma paixão nova que não escondo de ninguém... O que gera sempre uma falha de interpretação, quando me questionam porque eu não gosto tanto do Ataulfo quanto dela...
Lógico que isso não é verdade. O Ataulfo é meu bebezão, meu filhote primogênito que ainda não cresceu. Um molequinho que muitas vezes faz um monte de coisas erradas e me tira um pouco a paciência. O que, nem de longe, significa que eu goste menos dele.
Mas a Liza é diferente. Não se trata de gostar mais. É uma questão de afinidade. De respeito mútuo. E de orgulho da minha parte, reflexo da vaidade, a cada vez que eu penso no desafio que aceitei no momento em que eu disse “quero esta”.
Foi há pouco mais de um mês... Eu tinha acabado de mudar para o Condado de Village Peña e acreditava que teria a Dolores [Duran] para fazer companhia ao Ataulfo [Alves] e formaria uma dupla imbatível de MPB... Mas por alguns contratempos, acabei trazendo a cadelinha já batizada para casa. E o pior, com o nome de uma amiga minha...
Ao escolher a Liza eu tinha a certeza de que estava fazendo uma grande bobagem. Uma cadela adulta, com medo de gente (e este foi o fator precípuo que pesou na minha escolha) e agressiva com qualquer um que tentasse chegar perto. Mas foi instantâneo: bati os olhos naquela monstrinha maltratada, com uma sarna enorme das costas, que me olhava com ar desconfiado e mostrava os dentes em tom de ameaça ao menor sinal de que pretendia tocá-la... Era uma cadela feia, temperamental e ameaçadora. E isso tudo só significava uma coisa, e no plural: problemas. Mas eu queria tentar! Eu queria fazer algo por ela. E fui arrogante o suficiente para querer aceitar o desafio e mostrar que seria capaz...
Confesso que minutos após trazê-la, minha cabeça rodava e o medo tomava conta de mim. E se ela me atacasse? E se ela atacasse o já assustado Ataulfo? E se ela nunca me deixasse tocá-la? E se ela roesse meus móveis recém comprados?
Meu primeiro contato físico com a Liza foi uma dentada. Fortíssima! Assustadoramente intensa. Fez um furo no meu dedo médio da mão esquerda que me deixou por cerca de quinze dias sentindo dor... Ela tinha uma coleira e eu mal conseguia chegar perto para tirar. Ela tinha um ferimento e eu mal conseguia chegar perto para tratar. Ela tinha carência e eu mal podia chegar perto para acariciar. Era frustrante e cheguei a pensar que eu nunca me apegaria a uma cachorra tão instável, e que, no fim de uma semana, a levaria de volta... Mas essa idéia era insuportável! Eu queria tentar.
Lembro-me de um dia, na primeira semana em que ela chegou. Tentei fazer carinho em sua cabeça e ganhei um rosnado de brinde. Fiquei tenso, irritado por ter uma cachorra que necessitava de cuidados e que não me deixava cuidar. E a indignação aflorou na forma de um choro muito intenso quando me perguntei que diabos tinham feito com ela para deixá-la daquele modo... Como alguém pode ser tão mau com um animal a ponto de transformá-lo numa arma movida a pavor? Ela não era uma cachorra agressiva. Via-se que ela estava apenas assustada e usava a arma que tinha para se defender. O X da questão era saber por quanto tempo este medo permaneceria...
Ela chegou aqui com uma cláusula de devolução, em caso de não adaptação. A pessoa que a deu a mim disse o quanto esperava que eu cuidasse bem dela, mas reconhecia que eu não estava optando por uma aquisição fácil e assegurou-me de que se eu não conseguisse, que eu poderia levá-la de volta, desde que não a abandonasse novamente nas ruas, pois muito provavelmente ela não sobreviveria. Tendo-a conhecido com aquele temperamento, não tenho dúvidas de que ela estava certíssima.
Mas os dias foram passando e eu tentando ter paciência. Só a tocava – timidamente – quando lhe dava comida e qual não foi a minha surpresa quando, cerca de uma semana depois de sua chegada, eu a vi sentar-se entre minhas pernas e me deixar alisá-la, com a mão cheia. Foi uma emoção sem tamanho.
Eu tinha certeza de que levaria pelo menos um mês para conseguir aquela proeza. E, no entanto, para minha satisfação, neste um mês, os avanços foram muito, muito, muito além disso!
Aos poucos fui conhecendo a Liza, sabia onde me era permitido tocá-la e onde não tinha e não teria acesso. Comecei a perceber quando ela estava tensa, quando mostrava seus dentes em sinal de ameaça e quando o fazia brincando. Pois sim, ela brincava! Ou sentia vontade de brincar... Mas seu medo sempre falava mais alto. Até o dia em que voltei do trabalho e a vi pular na minha frente, fazendo festa com a minha chegada. Levantou-se sobre as patas traseiras e se apoiou nas minhas coxas. Foi quando arrisquei um passo perigoso: dei-lhe um abraço. Naquele dia eu tive a certeza que ela era minha e que eu jamais a abandonaria na rua, tampouco a devolveria como uma mercadoria rejeitada. Ela tinha encontrado um lar. E eu tinha encontrado uma filha. A segunda da prole.
Daquele momento em diante, vi muitos avanços! Descobri que ela sentia minha falta e que ficava feliz quando me via. Descobri que poderia dar banho sem fazer uso de sedativo, bastando que eu a segurasse da forma correta. Descobri que, ao ouvir o estourar de fogos, ela se assustou e foi em mim que buscou proteção. Descobri que podia pegá-la no colo...
E assim fui tratando seus problemas, com o auxílio de um amigo Médico Veterinário, aplicando medicamentos quando necessário, dando-lhe banhos, variando seu cardápio com ração, arroz e patê de cachorro...
Ainda não tenho uma cadela ideal. Mas hoje me sinto muito feliz de saber que tenho uma sombra que me segue pela casa. Que sobe no meu colo quando estou sentado no sofá vendo TV. Que late de ciúmes quando a deixo de lado para fazer carinho no Ataulfo... Talvez as dificuldades da nossa relação tenham fortalecido nosso afeto e hoje não tenho dúvidas do quanto eu amo a Liza. E sei que é recíproco.
Ao contrário do que pensam, não amo menos o Ataulfo. Apenas acho que ela precisa mais de mim do que ele. É muito mais fácil gostar de um cachorro manso, bobo, brincalhão, com pelos sedosos e lindo. Todos os que frequentam a minha casa já se renderam. Difícil é gostar de uma cachorra que morde, que rosna, que tem dentes sempre evidentes, tem resquícios em sua pelagem que mostram que ainda está se recuperando de uma sarna e que não é “peludinha, fofinha e lindinha”. E foi essa rejeição que ela recebeu de alguns que fez com que eu me aproximasse mais e conseguisse enxergar a beleza subjacente aos seus olhos pequenos, suas orelhas pontiagudas e seu pelo curto e áspero. E nem de longe enxergo aquela cadelinha feia, de coloração encardida que me mordeu a ponto de tirar sangue do meu dedo naquele comecinho de abril... Acho-a linda quando me olha. Acho-a linda quando dorme. Acho-a linda quando me recebe na porta. Acho-a linda quando levanta a patinha para me pedir qualquer coisa, seja carinho, comida, água ou só um pouco de atenção...
Hoje tivemos que vaciná-la. No local em que a peguei, fui informado de que ela já havia sido, mas como não tinha isso documentado, achei por bem fazê-lo novamente, já que não faria nenhum mal. Como já vem acontecendo em dia de injeção, ela ficou tensa, tentou morder, tentou fugir, tive que dar uns gritos, tive que dar uma chineladas e no fim, nada disso resolveu e acabei perdendo a luta para o uso de sedativo e mordaça. No final, valeu a pena e neste momento em que escrevo, tenho uma cadelinha saindo do efeito do medicamento, acordando aos poucos e que, em meio ao transe e à vigília que se mesclam, escolheu meu colo como local apropriado para recuperar os sentidos...
Ainda tenho uma batalha pela frente e tenho certeza de que muitas vezes virão em que eu me perguntarei porque enfrentar tanta dificuldade diante de um animal temperamental e feroz. E no momento seguinte virá a resposta: por amor. Por saber que ela não é feroz, mas finge muito bem quando se sente ameaçada e consegue, por alguns momentos esconder a docilidade que a acompanha naturalmente.
Saber que esta cachorra poderia estar sendo morta a pedradas ou pauladas no meio da rua onde, um dia, foi abandonada me aterroriza e me dá a certeza de que vale a pena enfrentar suas investidas com intuito de morder, a cada vez que eu precisar cortar suas unhas, limpar seus ouvidos, catar carrapatos e pulgas entre seus dedos e aplicar injeções... Quem sabe um dia isso também mude, como ocorreu com a permissão que eu não tinha para tocá-la. Acho que a vida com ela não será fácil. Mas tenho certeza de que sem ela não será boa.

Um comentário:

  1. Nossa, estou encantada com a sua história e da Liza...me fez derramar umas lágrimas ao ler. Posso entender o que passou, porque também tenho um cãozinho levado, e quando ele era novinho ficou muito doente, perdeu todo o pêlo e ficou só o coro e o osso e eu acordava tarde da noite só pra ver se ele ainda estava respirando. Hoje ele se recuperou, e voltou a ser lindo e arteiro como antes, voltou a ser o meu Marley.
    Beijos. Estou a te seguir por aqui.
    Quando puder dê uma passadinha no meu 'Momentos' http://momentosdegina.blogspot.com

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